BRINCANDO ÀS CARREIRAS
É ponto assente entre os médicos portugueses já com prática clínica
significativa que as carreiras médicas foram um dos pilares do nosso serviço
nacional de saúde, e condição que permitiu que, a par de uma formação médica
pré-graduada de qualidade e que não coloca de maneira nenhuma mal o nosso país
no mundo ocidental, os nossos especialistas também possam ombrear com os seus
colegas ocidentais. Apresentando uma preparação profissional com o mesmo nível
de qualidade num país muito mais pobre, e agora a ficar decididamente para trás
nesta Europa superalargada - se não se conseguir entretanto aumentar o nosso
produto interno bruto, em fase descendente.
As carreiras não só permitiram uma formação médica estruturada e contínua,
como souberam criar, com naturalidade e insensivelmente, os estímulos
necessários e suficientes para a obtenção dessa formação. E, aspecto muito
importante, uma formação homogénea, nos grandes hospitais como nos pequenos,
quer no litoral quer no interior mais recôndito, com uma cobertura nacional de
especialistas de qualidade, permitindo que todos os portugueses possam aspirar
a ser bem tratados sem terem de se deslocar para longe da sua casa e da sua
família, e muito menos para o estrangeiro.
Mas a verdade é que as carreiras médicas acabaram. Não por decreto ou
anúncio na televisão, mas na prática e na decorrência directa do novo regime de
gestão hospitalar. Foi este, na verdade, que as matou.
Passou a haver contratações apenas em regime individual de trabalho, e para
os médicos que já estavam integrados nas carreiras o grau ou o lugar que nelas
ocupavam deixou de contar seja para o que for, a não ser para, prosaicamente e
como sinal dos novos tempos que aí estão, de primado do dinheiro na saúde,
ganharem de maneira diferente uns dos outros. Mas o sinal mais evidente, e o
primeiro a mostrar que as carreiras já estavam condenadas a desaparecer pelo
governo e seus comissários políticos nos hospitais, foi o modo como se passaram
a nomear os directores de serviço nos hospitais EPE, e até já antes nalguns
hospitais SPA, nestes ao arrepio da lei mas com a cobertura da tutela.
O director de serviço é o encarregado da gestão do serviço, sendo que esta
não se pode entender separadamente da actividade clínica, estando forçosamente
imbricada com ela, uma vez que não se deve confundir – como alguns,
intencionalmente ou por ignorância, pretendem – com uma gestão contabilística
ou de guarda-livros. O director de serviço tem, pois, de ser uma referência
profissional entre os colegas, o profissional com mais experiência e provas
dadas, mais graduado em termos de hierarquia técnico-científica, mais
conceituado dentro e fora do serviço e do hospital. É a ele que é confiada a
formação pós-graduada, quem escolhe os orientadores de formação, o responsável
pelos internos e pela actividade científica e de investigação do grupo de
trabalho que o Serviço constitui.
Com lógica, a sua escolha, definida na lei, era feita entre os que no
Serviço tinham atingido o topo da carreira médica, depois de ouvidos todos os
outros para se auscultar a sua aceitação. Agora é imposto pelo conselho de
administração, independentemente do grau da carreira, sem quaisquer regras ou
critérios definidos, a não ser o de possuir o “perfil” adequado. Qual perfil? O
que o conselho de administração ache que é o adequado. Porventura o mesmo que
alguém achou também que eles tinham para integrar aquele conselho. É o
“achismo”, a nova forma de nomeação nos hospitais públicos no nosso país. Que,
como se adivinha, abre as portas escancaradas ao “amiguismo” e ao compadrio, os
quais, valha a verdade, sempre tentaram marcar presença entre nós. Mas que só
agora ficaram institucionalizados.
E as nomeações sucedem-se, de amigos e compadres por amigos e compadres,
num “achismo” eventualmente temperado por quezílias pessoais, pequenas ou
grandes invejas, desentendimentos e vinganças, e muito, muito oportunismo. E
sem falar também do modo deselegante – para dizer o menos – como muitos
directores têm sido afastados e substituídos, sem qualquer explicação,
manifestação só por si preocupante de desrespeito humano, impunidade e
arbitrariedade.
É claro que um dia se irá inevitavelmente regressar ao primado da
competência, das provas dadas, da diferenciação técnica, da hierarquia
profissional assente em conhecimentos e experiência, e uma onda virá que leve
de volta ao local de onde saíram tantos dos noveis gestores de serviço agora
achados. Mas não sem que fiquem marcas negativas nos Serviços, nos Hospitais e
na Saúde, e por isso é bom que tudo se registe agora, como memória futura para
se poderem mais tarde fazer as correcções adequadas.
Ora, paralelamente a esta situação, continuam nos hospitais EPE os
concursos da carreira médica, seja para a graduação em consultor seja para o
lugar de chefe de serviço. E para quê?! Concursos numa carreira acabada?
Brinca-se às carreiras médicas? Ou desempenha-se um papel imaginário numa
realidade desaparecida, como loucos encerrados num manicómio que piedosamente
se deixam viver convencidos que são personagens que já não existem? E que assim
vão continuar até morrerem ou, neste caso, até se reformarem, extinguindo-se os
seus lugares mal isso aconteça. Porquê isto?
Com certeza que todos têm direito a progredir na carreira, todos tinham
expectativas de o fazer e ficamos contentes que o façam, isso não está em causa. Como também os
que tinham atingido o topo tinham expectativas acerca disso, agora goradas.
Porque um facto é que a carreira médica acabou, e a progressão nela deixou de
ter finalidade, a não ser ganhar mais fazendo exactamente o mesmo.
Se o único objectivo desses concursos agora parece ser o de permitir que
alguns médicos passem a ganhar mais, por que razão eles são abertos na lógica
governamental vigente de poupar o mais possível na saúde? A explicação razoável
é que se gasta algum dinheiro para procurar manter os médicos de carreira
hospitalar entretidos, na ideia de que está, afinal, tudo na mesma, iludindo
assim os seus próprios protestos. Porque eles são os que compreendem melhor a
importância das carreiras médicas e serão os primeiros a protestar pelo seu
desaparecimento. Que já aconteceu, apesar dos concursos a decorrer…
Estes concursos, na verdade, não fazem sentido no momento actual, embora se
devam, com certeza, aproveitar. O que não nos devem é fazer esquecer o fim real
das carreiras médicas, nem abrandar sequer o movimento de lutar pelo seu
ressurgimento, como factor verdadeiramente crucial de qualidade e progresso na
medicina e na saúde do nosso país, pese embora o que delas o ministério da
saúde pensa – ou não pensa.
2007, in Farpas pela nossa Saúde, 2009, Ed. MinervaCoimbra
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