quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

A RELAÇÃO MÉDICO-DOENTE

Este é um assunto de crucial importância para médicos e doentes desde que Hipócrates fez emergir da medicina mágica e religiosa da altura a medicina ao jeito da que hoje praticamos. Faz parte da arte médica que se mantém para além da cada vez maior tecnologia, e por isso nunca perde actualidade. Ainda no recente Congresso Nacional de Medicina, em Coimbra, ele mereceu uma mesa redonda onde foram feitas palestras de grande interesse e profundidade, focando-a sobretudo em dois aspectos: empatia e tempo. Eu teria posto antes a tónica noutro: profissionalismo.
Ser médico é uma profissão, e por isso a relação entre o médico e o doente é uma relação profissional. Diz-se frequentemente que “o maior risco para um doente é ser amigo do médico”, o que significa que este pode ter o seu raciocínio clínico toldado pela amizade por aquele, por exemplo não querendo sujeitar a pessoa de quem gosta a exames ou tratamentos que podem ser desagradáveis, seguindo sem se dar conta a convicção que os seus amigos não vão ter doenças graves que os possam matar, não tomando medidas drásticas que às vezes se impõem, etc. Quer dizer, é perigoso para o doente que a afectividade do médico em relação a ele possa interferir na relação profissional entre ambos. Por isso o médico deve abster-se o mais possível de tal afectividade. Doutra maneira a sua relação com os doentes estaria dependente dela, tratando aqueles de quem gosta de maneira diferente dos que não gosta. E isso, obviamente, não pode acontecer. Porque é a sua profissão.
O profissional médico deve, pois, tratar os doentes sem afectividade por eles, de modo a manter o raciocínio frio e a tomar sem envolvimento pessoal as decisões mais correctas, enquanto técnico, em cada caso. Mas se não envolve a sua própria afectividade, não pode de maneira nenhuma pôr de parte a do doente. Porque é um profissional, e o seu objecto enquanto tal – o paciente - tem sentimentos, estados de alma, receios, esperança, desespero, e tudo isso pode ter influência física na evolução da doença, através provavelmente de mediadores químicos, alguns já conhecidos, a maior parte ainda não. Isto é, os afectos fazem parte do doente, e ele não deve ser considerado sem eles.
É nesta conformidade que é fundamental estabelecer empatia com o doente. Empatia é a capacidade de se entender a emoção dos outros, de compreendermos os seus sentimentos em cada altura, procurando nós experimentá-los de forma objectiva e racional como se estivéssemos na mesma situação vivenciada por eles. É compartilhar a dor psicológica dos outros, é saber ouvi-los sem julgar, sentindo-nos no seu lugar e transmitindo-lhes essa sensação. A empatia assim estabelecida ajuda a compreender melhor o seu comportamento e motivações em determinadas circunstâncias, e a forma como tomam decisões. E orientar a terapêutica de acordo com isso. E leva à confiança do doente no seu médico, sentimento que contribui seguramente para se conseguirem melhores resultados.
Empatia deriva do grego “empatheia”, que significa “paixão, emoção, sentimento”, e pressupõe uma comunicação afectiva com outra pessoa, sendo desse modo um dos fundamentos da identificação e compreensão psicológica de outros indivíduos. É muito importante que o médico tenha em conta a emoção do seu paciente, a sinta, comungue com ela, mas sem se consumir nela. Isto é, a empatia estabelecida deve fazê-lo compreender os problemas do doente, e que este sinta essa compreensão e que existe preocupação e vontade em o entender e ajudar, mas sem que isso tolde a sua visão clara, objectiva e não emocional da pessoa doente que tem à sua frente e com quem fala. Porque empatia não é sinónimo de simpatia, e muito menos de amizade, ou amor, e devemos procurar estabelecê-la com todos os doentes, quer nos sejam simpáticos ou mesmo gostemos deles, quer exactamente o contrário. E também não é sinónimo ou implica compaixão, porque aí também se sente a emoção do outro como se fosse nossa mas sofremos com ela. A procura de empatia na relação médico-doente tem de fazer parte integrante do profissionalismo médico, e deve sem dúvida ser treinada na sua preparação enquanto tal, e depois aperfeiçoada ao longo da sua vida profissional.
Estabelecer empatia com o doente implica conversar com ele, ouvi-lo, questioná-lo, olhá-lo nos olhos, mostrar-lhe que estamos ali, diante dele, a procurar entendê-lo e ajudá-lo. Mais, que o vamos ajudar e acompanhar no esforço que vai ter de fazer até ficar curado. Olhar para o computador e escrever enquanto ele fala, parecendo um polícia a tomar conta duma ocorrência, não ajuda. Ignorar com ar mais ou menos enfadado as queixas menos relevantes ou não relacionadas, também não. Estabelecer um diálogo vivo com ele, orientando-o para o clinicamente importante, e construindo uma história clínica, sim. E é importante tentar perceber os seus receios (algumas vezes cuidadosamente disfarçados, não vão ser confirmados…), e procurar fazê-los desaparecer ou atenuar, não dando falsas esperanças mas nunca as tirando por completo. A empatia médico-doente é na verdade uma arte, fácil e intuitiva para alguns, mais complexa para outros, mas todos a devem procurar atingir e melhorar. Porque é fundamental quando se lida com pessoas, e com elas a parte científica e tecnológica da medicina, só por si, é pouco.
Outro aspecto de relevo na relação empática com o doente reside na forma como o chamamos. É importante tratá-lo pelo nome – o problema coloca-se sobretudo em ambiente hospitalar -, de modo a personalizar o nosso relacionamento com ele, identificando-o no meio de todos os outros doentes. E como ele não está a cumprir pena, ou a ser castigado, antes está num momento particularmente difícil da sua vida, e forçosamente fragilizado, deveremos ter o cuidado de nos dirigirmos a ele do modo por que é tratado habitualmente. Quer dizer, entre nós em geral pelo apelido (embora às vezes pelo primeiro nome), e com algum título que lhe pertença e seja usado no dia a dia. Isto de modo nenhum colocando-o em qualquer pedestal na enfermaria, com privilégios especiais (todos os doentes têm de ser tratados da melhor maneira possível), mas no sentido de não o agredir chamando-o de modo a que não está habituado. E sabemos que qualquer agressão é negativa para o nosso esforço de o ajudar a recuperar da sua doença.
Para além de tudo isso, e para não quebrar eventualmente a empatia criada com o doente, deverá sobremaneira evitar-se qualquer discussão clínica diante dele que demonstre algum desconhecimento nosso sobre o seu processo. Por isso a visita médica deverá ser preparada previamente, recolhendo-se todos os dados que durante ela venham a ser necessários, sobretudo nos Hospitais e Serviços mais evoluídos informaticamente em que já não há papel a acompanhar a visita, se bem que nalguns desses, ainda mais diferenciados nesse aspecto, ela já seja seguida em tempo real por tablet  ou smartphone (como há muito se faz no Serviço onde trabalho).
Também o tempo dedicado aos doentes tem de ser o que um profissional necessita. Nem mais, nem menos. Ainda dentro da noção de empatia, nunca se deve dar a impressão ao doente que estamos com pressa – mesmo que seja o caso. O doente tem de sentir que temos para ele todo o tempo de que necessita, o que não significa, claro, que passemos com ele horas de conversa social! Admito que seja considerado um tempo médio de consulta - como de intervenções cirúrgicas, ou de outros quaisquer procedimentos – mas devemos lembrar-nos que o tempo necessário depende do médico, do doente e de cada caso clínico. O tempo médio não pode ser um tempo absoluto, ao fim do qual o guichet se fecha ou o doente tem de dar lugar a outro! Ou o médico é penalizado, e por isso fica condicionado para despachar mais depressa os seus doentes mais difíceis ou que ele não consegue observar ou tratar devidamente no tempo definido como regra. Se é verdade que há consultas que podem ser bem feitas em muito pouco tempo, há outras que para o ser vão muito além do tempo médio. A querer seguir-se a tónica da “produção”, hoje tão na moda dos que tornaram os hospitais centros de produção, calcule-se então essa média num período de trabalho suficientemente alargado, para que todos os doentes possam ser observados e tratados no tempo de que necessitem sem que o médico que o faz seja penalizado por o fazer. Assim se preservando acima de tudo a qualidade do acto médico praticado.
Concluindo, a relação médico-doente não é uma relação simpática com alguém simpático. É uma relação profissional, que deve ser baseada numa empatia estabelecida entre o médico e o seu doente, e em que aquele dedica a este o tempo necessário, e cria condições para o acompanhar durante a sua doença e enquanto ele estiver ao seu cuidado.
In Revista Portuguesa de Cirurgia

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