REFLEXÕES DE UM CIRURGIÃO PASSADOS MAIS DE 30 ANOS
Parte I
Sempre
quis ser cirurgião, e realizei esse desejo. Tive a sorte de nascer para a
cirurgia geral ao mesmo tempo que nasciam para todo o país o Serviço Nacional
de Saúde, as Carreiras Médicas e os Internatos Médicos. Os quatro fomos companheiros
ao longo destes anos e não me agrada a ideia de podermos vir todos a desaparecer
um dia ao mesmo tempo (Parte I destas Reflexões). A cirurgia geral que aprendi
e tenho praticado tem sofrido, ao longo destes anos, progressos e outras
alterações que talvez o não sejam, e por isso merece com certeza a reflexão de
nós todos, cirurgiões gerais (Parte II).
Serviço
Nacional de Saúde (SNS)
O SNS foi
uma ideia nascida no Reino Unido e depois aplicada no nosso país com um êxito notável.
De tal modo que foi sobrevivendo sob a governação dos vários partidos que,
sozinhos ou em combinações várias, dela estiveram encarregados. A ideia era o
Estado prestar cuidados de saúde a todos os cidadãos, como parte das suas
funções e aplicação dos impostos recebidos. Por isso os meios para essa
prestação foram a pouco e pouco espalhados por todo o território nacional, em zonas
urbanas e rurais e independentemente da sua concentração populacional, na forma
de centros de saúde para cuidados primários e hospitais para os secundários.
Estes últimos foram hierarquizados em termos de diferenciação, partindo do
princípio de que todos os doentes, vivessem onde vivessem, teriam um contacto
rápido e fácil com um hospital, capaz de lhes resolver a maior parte dos
problemas de saúde ou de os direccionar para outros se precisando de cuidados
mais específicos ou diferenciados.
Estabeleceu-se
por todo o país uma rede de hospitais estatais de boa qualidade, tratando os
doentes que os hospitais das Misericórdias até aí não possuíam capacidade de
tratar. E que tinham por isso de “ir para Lisboa” (ou para o Porto, ou para
Coimbra, onde estavam os hospitais com os meios, ligados às Faculdades de
Medicina e onde o ensino pré e pós-graduado era feito).
Houve,
assim, que construir muitos e equipar adequadamente todos, também com recursos
humanos, estes capazes de assegurar as funções que não eram mais as de
canalizar doentes para os hospitais dos grande centros, antes fornecer uma
medicina com a mesma qualidade em todo o território nacional.
Carreiras
Médicas
Ao mesmo
tempo desenvolveram-se as Carreiras Médicas, cujo embrião residiu nas carreiras
médicas dos Hospitais Civis de Lisboa: as Carreiras Médicas Hospitalares desde
logo estenderam os seus princípios gerais aos Cuidados de Saúde Primários,
embora se tivessem sentido desde sempre diferenças, sobretudo pelo facto de o
trabalho médico hospitalar ser necessariamente muito mais de equipa e
interactivo.
Os quadros
dos hospitais públicos foram preenchidos por especialistas com vários graus de
diferenciação, estabelecidos por apreciação da sua actividade profissional,
clínica e científica, e exames com provas públicas entre pares. O exame de
entrada houve tempos em que era o mais difícil e exigente, e os graus
conseguidos na sua carreira profissional hospitalar permitiam e obrigavam os
médicos a um envolvimento e uma responsabilidade cada vez maiores na gestão dos
Serviços e dos Hospitais.
Desse modo
se espalharam por todos os hospitais do país cirurgiões competentes e motivados
para trabalhar, aplicando as suas capacidades e conhecimentos, em vez de ficarem a gravitar em torno dos
hospitais centrais já preenchidos, ou de irem para o interior trabalhar nos
hospitais das Misericórdias locais, realizando toda a vida apenas a cirurgia
que as condições limitadas desse hospitais lhes permitiam fazer. Aproximar cirurgiões e doentes em instalações
de qualidade, com bons resultados, foi um avanço notável em termos de saúde.
Com o
estabelecimento dessa actividade cirúrgica em todo o território nacional,
incluindo os hospitais mais periféricos, foi possível, e natural, estender a
todo o país a formação pós-graduada, com qualidade homogénea, aumentando de
forma decisiva a capacidade para essa formação. O que, por sua vez, contribuiu
também, e decisivamente, para a fixação de médicos nesses hospitais.
Internatos
Médicos
Os
Internatos Médicos, para formação pós-graduada até à especialização, foram
organizados no nosso país de um modo que teve muito de original, e que incluiu
aspectos mais tarde recomendados pelo Advisory
Committe on Medical Training, da Comissão Europeia: remunerados, acompanhados
por um orientador, com um currículo mínimo estabelecido e um programa de
formação, avaliação contínua, com direitos e deveres legalmente estabelecidos,
com o objectivo de criar as condições necessárias para uma boa formação, quer teórica
quer prática.
Esta
organização para ensino, a que os jovens médicos têm acesso por meio de um
exame público nacional, veio substituir a especialização por convite dos directores
dos Serviços (em geral acompanhando nos hospitais ligados às Faculdades de
Medicina o convite para assistente), ou a formação chamada “voluntária”, feita
a título de favor, sem programa específico e sem direito a qualquer remuneração
pelo trabalho prestado nessa actividade, com tónica no exame final pela Ordem
dos Médicos, no que antigamente se chamava “tirar a especialidade à Ordem”.
Na sequência
directa dessa situação anterior, já depois de estabelecidos os internatos e com
o seu acesso regulamentado mantiveram-se dois exames finais, pelo Ministério da
Saúde e pela Ordem dos Médicos (na base de “o meu exame é melhor que o teu”...),
até a titulação ser unificada, tal como se mantem hoje.
O trabalho
dos internos é pago, mas as responsabilidades de que são encarregados devem estar
de acordo com o seu ano de formação e os conhecimentos que entretanto
adquiriram, reconhecidos pela sua avaliação contínua. Há uma relação óbvia com
as carreiras na sua estruturação, ambos com formação progressiva avaliada
continuadamente e com responsabilidades crescentes dela decorrentes. Das quais
faz parte integrante e obrigatória a ajuda à formação e ao trabalho dos mais
novos.
Entretanto
Entretanto,
foram criados os hospitais empresa (EPE), ideia que até poderia ser boa no
sentido de tornar mais ágil e responsável a gestão dessas instituições,
concedendo a cada uma a possibilidade de se destacar das outras pelos
resultados e pelo melhor aproveitamento das condições existentes. No entanto, a
primeira consequência dessa empresarialização é que passou a dominar a gestão
puramente administrativa dos hospitais, eclipsando a gestão clínica, e os médicos
passaram a ser apenas técnicos a fazer serviço numa empresa dentro do plano
definido pela hierarquia administrativa. Contratados para funções especificas e
às vezes transitórias, por objectivos individuais ou ao molhe, a ideia de
equipa a fazer escola aperfeiçoando-se dia a dia foi sendo substituída pela de
uma máquina produtiva que interessa sobretudo manter o mais oleada possível. A
empresarialização, reclamada como mecanismo de agilização e maior eficiência,
redundou numa mais completa funcionarização dos médicos, agora até com horários
ao minuto e relógios de ponto. Que discutem e reivindicam acima de tudo
contratos, horários e remunerações.
Como
cúmulo do triunfo da gestão administrativa, alguns colegas, em vez de lutarem
pela primazia da gestão clínica a cargo dos médicos, com a ajuda administrativa
julgada necessária, renderam-se a esta e também quiseram ter um curso rápido de
administrador. E alguns até se desligaram da medicina por isso... É o caminho
inverso do que faz falta.
É claro
que os médicos tiveram de continuar a desempenhar funções de direcção técnica,
mas por nomeação aleatória, já que a hierarquização pela competência traduzida
na avaliação periódica entre pares esbateu-se por completo. Dito por outras
palavras, as carreiras, se bem que nominalmente mantidas, deixaram de ter
sentido. Os concursos dentro delas passaram a ser apenas uma espécie de subida
de escalão remuneratório, apesar do esforço meritório de alguns Colégios para
reservar pelo menos a direcção dos Serviços para os mais graduados dentro de
cada Serviço. O que nem sempre se verifica, prevalecendo às vezes o critério
discricionário “amigo” e todo poderoso da direcção do hospital.
Desvalorizadas
as carreiras médicas, o esforço para nelas singrar necessariamente feneceu, isto
é, o esforço pela maior diferenciação, no sentido de mais experiência, conhecimentos,
trabalho produzido (e não de sub ou super-especialização, que serão alvo de
reflexões futuras). Sendo certo, e valha-nos isso, que o brio e vontade de
fazer melhor de muitos de entre nós compensarão essa falta de estímulo externo,
continuará a faltar a avaliação independente
e comparativa dos resultados conseguidos, e com ela a possibilidade de
se acreditar verdadeiramente na ascensão por mérito.
Quando da
minha permanência profissional no Reino Unido, explicava eu a dada altura com
algum orgulho que os concursos das carreiras no meu país, nomeadamente o de
entrada no quadro do hospital, tinham um júri de maioria de fora do hospital,
com o intuito de garantir isenção na avaliação. O comentário feito pelos
ingleses presentes, “Então são os outros hospitais que escolhem a equipa do
teu?”, abalou seriamente a minha visão nessa matéria.
Os
hospitais EPE vieram permitir a contratação directa de cirurgiões, de acordo
com as necessidades de cada hospital. O desejo de contratar os melhores deve
estar sempre presente em qualquer empresa, e deve poder ser posto em prática. Surgem
de vez em quando concursos para admissão nos hospitais, mas que, na ausência de
exames com provas públicas, funcionam como entrevistas de emprego, com a
subjectividade que as mesmas necessariamente têm. Mesmo quando se lhes quer
imprimir alguma objectividade, como nos concursos fechados para
recém-especializados, cujo “background” profissional não extravasa o internato
de formação específica terminado e avaliado imediatamente antes, vemos resultados
extraordinários como o de em seis candidatos o pior classificado no internato
ficar em primeiro lugar, ou em quatro o melhor ficar em último. Pensando bem,
no Reino Unido é uma coisa, por cá é outra...
Uma alteração
positiva foi a possibilidade de os especialistas poderem mudar de local de
trabalho com facilidade, por interesse próprio ou das instituições, sem se ter
de passar por concursos morosos e que tornavam essas mudanças muito difíceis. Com
o aspecto negativo de a gestão administrativa, por vezes demasiado enfeudada a
políticas locais ou partidárias, aí ter passado a poder interferir, inclusivamente
usando essas mudanças como arma de pressão política eleitoral. E fala-se de os
hospitais passarem de novo para as Misericórdias, ou para as Câmaras
Municipais, tornando-os ainda mais locais e dependentes da política local e das
suas tricas.
O Estado
continua a providenciar cuidados de saúde à população, mas sob a tónica do
corte nas despesas com a saúde e com os funcionários públicos. E essa tónica
tem sobretudo justificado duas acções: por um lado, encerramento de algumas
instituições, fusão de hospitais e concentração de Serviços; por outro, pagamento
a instituições privadas da função de tratar doentes públicos. Isto levou ao
aparecimento nos grandes centros urbanos de muitos hospitais privados, e
clínicas, com boas condições técnicas, muitos deles já com um quadro de
especialistas próprio mas que dão também trabalho a muitos outros a trabalhar
nos hospitais públicos.
A redução
de capacidade instalada no público, a par duma provável emigração forçada de
especialistas que entretanto se vão formando arrastará consigo uma redução
significativa da capacidade formativa. E esta virá agravar o resultado do desaparecimento
das carreiras hospitalares, que eram um estímulo fundamental para a formação.
Com a agravante ainda de os especialistas das instituições privadas, no
momento, provirem todos dos hospitais públicos.
Há sempre a possibilidade de se vir um dia a assistir a uma mudança de
paradigma na formação médica pós-graduada em Portugal, com envolvimento significativo
da medicina privada, mas por agora, tendo sido os internatos médicos
construídos lado a lado com as carreiras, a derrocada destas é de temer que acabe
por levar aqueles a ruir também.
Como
última destas reflexões, uma preocupação, em termos de saúde pública nacional,
com a concentração obrigatória que se anuncia de tudo o que seja patologias
mais complexas e meios técnicos e humanos mais diferenciados nos grandes
centros urbanos, quer no público quer no privado. Essa concentração poderá
levar a uma nova desertificação de todo o interior em termos de cirurgiões diferenciados,
capazes, ambiciosos do ponto de vista profissional, que mais uma vez irão
gravitar nesses grandes centros, embora agora com a possibilidade de trabalhar
nas instituições de saúde privadas entretanto instaladas, pelo menos nas que
quiserem investir em cirurgia diferenciada com a qualidade necessDesse modo os doentes do interior vestir em
grande cirurgia mais diferenciadis uma vez ir levs condiç meu paabalo,ária.
Desse modo os doentes do interior de novo terão de “ir para Lisboa”... E a
capacidade formativa pós-graduada voltará progressivamente a circunscrever-se
aos grandes hospitais (tornados entretanto ainda maiores). É, de certo modo, o
caminho inverso do que se percorreu nestes últimos trinta anos. Apesar de isso,
ao fim e ao cabo, acompanhar tudo o que tem levado a concentrar a população e
os meios nos nossos grandes centros populacionais, com desertificação da
periferia (o que é, aliás, característico de qualquer país pobre e com
dificuldades sociais), não creio que seja um modelo a desejar para o futuro. Esta
é uma questão de bom senso e de não ignorar o que previamente deu bom
resultado.
In Revista Portuguesa de Cirurgia, Dezembro 2014