quarta-feira, 17 de novembro de 2021

                          COMENTÁRIOS BREVES SOBRE O

                   PROJECTO DE NOVO ESTATUTO DO SNS

O que, na verdade, foi causa remota do progressivo descalabro do SNS a que se tem vindo a assistir, com diminuição do empenhamento dos médicos nele e o seu posterior abandono por parte de muitos, cada vez mais acelerado – e sem médicos não há SNS, por mais que os administradores se queiram convencer do contrário! – foi a criação dos hospitais EPE, os hospitais chamados públicos empresariais. Não em si mesma – porque os hospitais, tal como as clínicas, são na realidade empresas -, mas porque na prática foi completamente secundarizada a governação clínica, pondo-se de parte os médicos na gestão dos hospitais, e condenando desde o início as Carreiras Médicas ao que acabaram por ser hoje: um vestígio sem verdadeiro significado prático, uma espécie de fantasma. Esquecendo que foram elas, juntamente com os Internatos Médicos, que mais fizeram pelo êxito de trinta anos do SNS.

Quer dizer: o que foi feito foi o que logo na altura se classificou como administrativização da Saúde. De que outros países, aliás, se queixaram também: o Reino Unido, para começar, depois a Alemanha, os EUA… Nestes, 40% do gasto na sua saúde (o maior do mundo) é com a parte administrativa! Quer dizer, é dito que reduzindo desse valor a orçamento para a Saúde os doentes norte-americanos poderiam continuar a ter acesso ao mesmo tipo de cuidados clínicos…

Ora o que este novo estatuto do SNS vem fazer é reforçar esse triunfo administrativo, essa preponderância da gestão administrativa sobre a governação clínica, em suma, essa administrativização. Com toda a burocracia escusada que ela arrasta.

Vejamos algumas notas particulares sobre este projecto de Estatuto do SNS:

- O SNS passa a ser uma enorme entidade pública empresarial, com um conselho de administração nomeado pelo ministro da saúde, a chamada “direcção executiva do SNS”, com polos espalhados por todo o território nacional, por onde os médicos podem ser feitos circular à vontade de quem manda e arranjar justificação para isso.

- Esse SNS diz-se que é público, mas pode ser integrado por estabelecimentos privados ou de carácter social. Ou fazer contrato com eles, ou até com profissionais individuais independentes.

- Fala-se de proximidade dos cuidados de saúde à população, mas o caminho, já encetado e não revertido, tem sido de fechar estabelecimentos e concentrar cuidados em centros hospitalares e ACES. Cria-se o chamado “sistema local de saúde”, sem existência jurídica mas com três coordenadores, eventualmente pagos, e que, como está descrito, dificilmente poderá vir a ser mais que um artigo no Estatuto.

- A contratação para o “quadro” – mas que quadro?? – pode ser feita de todos os modos administrativos possíveis e imaginários. Inclusivamente de modo temporário, e enquanto se entender haver necessidade do profissional! Com que critérios?...

- Os contratados num local do SNS podem ser mandados fazer trabalho noutros locais de trabalho, incluindo trabalho suplementar, pelo qual, aliás, poderão receber mais do que recebem no seu local habitual de trabalho. E sem que essas horas suplementares contem para o seu limite de horas de trabalho semanal.

- Na administração do hospital é criado um lugar de “eleito pelos trabalhadores”. Mas o director clínico, que já foi eleito pelos médicos, continua a ser nomeado, e por alguém administrativo…

- A carreira médica foi totalmente esquecida neste documento. Nem nele é, aliás, definido o modo como um profissional médico pode progredir profissionalmente dentro deste Serviço Nacional de Saúde.

- Como também nele não é devidamente previsto, acautelado, muito menos estimulado, na verdade nem sequer é considerado, o ensino pós-graduado. E também não o pré-graduado nos hospitais.

- Diz-se que a organização hospitalar tem como unidade central o serviço, com unidades funcionais e departamentos nos extremos, mas depois surge o CRI. É o quê? Uma associação comercial no meio do hospital? Uma organização técnico-comercial? Que relação tem com os serviços? Quem vai trabalhar para cada um deles? Que por isso vão ganhar mais que os outros profissionais do hospital. Porque vão tratar mais doentes, porque lhes fornecem mais meios e mais pessoal? Quem é o responsável do CRI? Como é escolhido e por quem? Que relação têm todos com as carreiras médicas, a que esta própria lei, aliás, diz que pertencem?

- Vá que é considerado que o director de serviço deve ser “preferencialmente do mais elevado grau da carreira”… embora este seja o último dos factores a considerar! Mas para o CRI já não conta…

- Depois, a criação da chamada “dedicação plena”. De que ficam excluídos os médicos em exclusividade – aliás, esta parece ser a extinguir quando acabar – ou em trabalho parcial. É, na verdade, um outro contrato de trabalho dentro do contrato com o hospital, renovável de três em três anos, para se produzir duma certa maneira ganhando doutro modo. Com mais horas de trabalho? Sem limite de horas de trabalho no hospital? Isto não é claro. Mas com limite de horas fora do hospital, isso sim. Também é, digamos, um subcontrato obrigatório para quem quiser ser director dum serviço, ao mesmo tempo que o impede de ser director ou coordenador de qualquer coisa fora do hospital.

- Como avaliação global final, pode-se dizer que, face a este projecto, não estamos perante um verdadeiro Serviço Nacional de Saúde, com todos os aspectos, assistencial, formativo, de investigação, de desenvolvimento, que se estruture e se mantenha a si próprio, em termos de futuro, pela simples prática diária, que deveria ter, mas antes uma organização para fornecer cuidados de saúde com delegações espalhadas pelo país. Como qualquer outra entidade privada do género. É muito curto para SNS.