O CAPÍTULO DE
CIRURGIA VASCULAR E
A FORMAÇÃO EM
CIRURGIA GERAL
O Capítulo de Cirurgia Vascular da Sociedade
Portuguesa de Cirurgia foi criado há 20 anos, por iniciativa dum grupo de
colegas com interesse e prática particulares na área vascular, tendo eu próprio
sido o seu primeiro coordenador. Na altura eleito, tendo acontecido que nesse
mesmo Congresso fui eleito também como coordenador da Capítulo de Trauma. Nesse
tempo ninguém se propunha aos lugares de coordenador, e a escolha recaía, por
votação, em quem os colegas entendiam reunir as melhores condições para exercer
essa função, pelo que conheciam da pessoa e da sua actividade.
Não creio que seja despiciendo esse acaso de eleição
simultânea para a coordenação de dois capítulos. Significa, sim, que um
cirurgião geral pode ter interesse, prática e capacidade particulares em mais
do que um aspecto da vasta matéria da cirurgia geral, demonstrados perante os
seus pares e por eles reconhecidos. Com certeza que não poderão ser iguais em
todas as áreas, mas a ideia de fragmentar o conhecimento da especialidade e
isolar o fragmento com que ficamos, reduzindo-o a tudo o que tendemos a saber,
é, por um lado, a negação da essência da própria especialidade e, por outro, a
condenação a um conhecimento truncado, de apenas um pormenor do quadro
completo.
O Capítulo começou por ser de Cirurgia Venosa, por
haver já a especialidade de Cirurgia Vascular (na realidade Angiologia e
Cirurgia Vascular) e pretendermos evitar qualquer atrito com os colegas com
essa especialidade. Apesar de não podermos, obviamente, afastar os cirurgiões
gerais dos vasos arteriais, sendo que alguns destes necessitam seguramente, em
muitas ocasiões, de cirurgiões gerais à altura de com eles lidar,
inclusivamente com risco de morte ou estropiamento do paciente se assim não
for. Nessa conformidade, deveu-se à visão dum Presidente da Sociedade – o
Professor Francisco Castro e Sousa, honra lhe seja feita – a mudança, que não
do âmbito, mas do nome do Capítulo, para Cirurgia Vascular, por sugestão nossa
mas também insistência dele.
E assim se tem mantido, no nome e no âmbito. Com uma
actividade intensa nestas duas dezenas de anos, visando sempre a formação
contínua dos cirurgiões gerais na área vascular, arterial e venosa. Sobretudo
venosa, na medida em que a patologia vascular periférica, envolvendo varizes e
tromboses venosas, é por larga maioria tratada pelos cirurgiões gerais, dado o
seu volume e o relativo pequeno número de cirurgiões exclusivamente vasculares,
em grande parte assoberbados pela patologia arterial isquémica e aneurismática.
A convivência entre os dois grupos profissionais tem sido pacífica, havendo
espaço e doentes para os dois. E ressaltando a importância de que se reveste o
cirurgião geral estar também preparado na área vascular em tantas situações
clínicas, umas previsíveis outras não.
As especialidades cirúrgicas saíram todas da cirurgia
geral, mas nunca por as intervenções cirúrgicas em si necessitarem duma prática
exclusiva ou quase, antes por aspectos médicos da sua clínica e, sobretudo, do
estudo específico dos doentes. Foi, primeiro, a arteriografia, mas depois,
especialmente, os meios não invasivos, o doppler e o ecodoppler, que levaram a
cirurgia vascular a separar-se da cirurgia geral. Claro que esse estudo hoje em
dia passou em grande parte para os imagiologistas, mas tem de ser conhecido e
praticado por quem lida com a patologia vascular. Os cirurgiões vasculares com
certeza, mas os cirurgiões gerais não se podem dar ao luxo de os ignorar: há
que ter deles conhecimento.
A formação dos cirurgiões gerais tem sido ecléctica,
apenas abrandando nalgumas áreas em que se definiram outras especialidades.
Abrandar não significa esquecer ou pôr de parte, o que iria limitar muito a sua
actuação global. Que foi o que aconteceu com algumas das especialidades
cirúrgicas, que tiveram a veleidade de passar a ignorar a cirurgia geral na
formação dos seus especialistas, os quais, por isso, ficam agora frequentemente
suspensos da chegada dum cirurgião geral. Ou, se se fragmentar mais a nossa
especialidade, dum cirurgião do órgão lesado.
O Serviço Nacional de Saúde e as Carreiras Médicas
tiveram o imenso mérito de espalhar por todo o território nacional
especialistas competentes, bem preparados, mas ao mesmo tempo com vontade de
evoluir, de construir, de ensinar outros ao mesmo nível ou maior. Porque esse
mérito lhes foi reconhecido e para isso lhes foram dadas condições. Se se
enveredar pela subespecialização saída da cirurgia geral, de especialistas
cirúrgicos tratando cada um o seu órgão, não creio que o país aguente ter tanto
especialista em cada hospital. A solução será a que já se vai delineando:
concentração de doentes e de meios técnicos e humanos apenas nalguns hospitais,
reduzindo a importância e o interesse clínico dos outros, o que afastará deles
os que a eles acorreram cheio de vontade de fazer. Nada tenho, obviamente,
contra o reconhecimento de centros de referência nalgumas áreas, desde que
sejam abertos e todos possam concorrer a esse reconhecimento – única maneira de
poderem ser escolhidos os melhores.
Houve há algum tempo uma proposta para remodelar o
programa de formação do internato específico de cirurgia geral, apresentada
publicamente, aos directores de serviço do país e à Sociedade Portuguesa de
Cirurgia, na qual toda a experiência em cirurgia vascular era retirada. Com a
explicação na altura de que não devia haver sobreposição de matérias com outras
especialidades cirúrgicas. O que na verdade não colhe, de modo nenhum, porque o
corpo humano e os doentes não são compostos por partes separadas e estanques
segundo as especialidades que se quiserem definir ou deixar de definir. É
evidente que haverá sempre sobreposições, por maioria de razão com uma área
“geral”, de onde tantas outras emergiram, pelas razões atrás apontadas. E que
continua a ser chamada em momentos de aflição por desconhecimento. Além de que
os vasos se cruzam a cada passo com o cirurgião geral, nas mais variadas
situações e patologias. Redigi na altura um protesto veemente, enquanto
cirurgião geral e coordenador do Capítulo de Cirurgia Vascular, mas também como
antigo director do internato do meu hospital e membro das comissões Regional da
Zona Centro e Nacional do Internato Médico. Esse documento foi mal interpretado
e mal aceite por alguns colegas, mas o que importa é que teve o mérito de
ajudar – devo dizer que rapidamente – a que a formação do cirurgião geral,
proposta pelo Colégio da Ordem, continuasse a contemplar obrigatoriamente a
cirurgia de varizes. Ficou, no entanto, de fora a cirurgia arterial, quanto a
mim muito mal, mas continuarei a batalhar nesse sentido: não se pode entender
um cirurgião geral sem qualquer formação nem sequer contacto com cirurgia
arterial. Do mesmo modo, a obrigatoriedade de um cirurgião geral saber
diagnosticar, tratar e prevenir a trombose venosa profunda é de importância
vital; o seu desconhecimento dessa matéria, nalgum caso concreto, não poderá,
obviamente, ser desculpado pelo programa de formação que tiver sido obrigado a
seguir. Será uma responsabilidade sua.
Dentro das funções variadas do cirurgião geral está o
tratamento do pé diabético. Também nesta área o Capítulo de Cirurgia Vascular
tem sido muito insistente, na formação dos cirurgiões gerais e no contacto e
colaboração destes com todos os colegas que tratam os pés dos diabéticos,
médicos de família, internistas, endocrinologistas, ortopedistas, cirurgiões
vasculares, fisiatras, neurologistas, bem como outros profissionais, como os
enfermeiros e os podologistas. Foram, nas Normas emitidas pela DGS relativas a
essa patologia, reconhecidas a intervenção e a importância da Cirurgia Geral nos
primeiros níveis de cuidados, mas desaparecendo no nível mais elevado, onde
figuravam apenas a Ortopedia e a Cirurgia Vascular. Mais uma vez, enquanto
cirurgião geral e coordenador do Capítulo, redigi um enérgico documento
contestando isso, dirigido à DGS. Dessa feita este foi bem entendido por todos,
o presidente da SPC e o presidente do Colégio também o assinaram, como vários
outros colegas, e a resposta veio rápida, com uma correcção oficial à dita
Norma, incluindo a Cirurgia Geral também no nível mais elevado de cuidados no
Pé Diabético.
Em suma, a formação de base dum cirurgião geral tem de
ser ecléctica e bem conseguida, embora mais tarde se possa vir a dedicar apenas
a uma parte da cirurgia geral, numa superespecialização, sem esquecer,
naturalmente, tudo o que aprendeu antes e lhe deu um know-how cirúrgico mais
completo, num conjunto de recursos técnicos de que poderá lançar mão sempre que
necessitar. A cirurgia vascular é transversal a toda a cirurgia geral, e não se
pode ignorar. Muito para além das varizes, que temos de tratar mas que, para
isso, temos de aprender a tratar. Nos Serviços, de Cirurgia Geral ou de
Cirurgia Vascular, onde elas sejam bem tratadas, de acordo com as regras
modernas, terapêuticas e de diagnóstico.
O Capítulo de Cirurgia Vascular foi criado para isto,
e tem mantido todo o empenho nesse objectivo. Com a compreensão e o interesse
de muitos e muitos colegas, médicos e cirurgiões, e outros profissionais,
frequentando os debates, os cursos teóricos e práticos, os simpósios, que foram
levados a cabo ao longo destes vinte anos. E que esperamos continuarão a ser,
pese embora o espartilho que se vai abatendo sobre os cirurgiões gerais e a
nossa especialidade.
In Revista Portuguesa de Cirurgia, nº 38, Setembro 2016