A CULPA VEM DE TRÁS, É VERDADE
A ministra da Saúde saiu.
Ou pediu para sair, ou vai sair quando o primeiro-ministro a deixar sair, diz
que depois de enviar para publicação o novo Estatuto do SNS que elaborou.
Sai porque obviamente
não era capaz de continuar. Já se devia ter percebido isso há mais tempo, muito
mais tempo. A pandemia veio facilitar-lhe as coisas, permitindo-lhe dois anos
em que as falhas crescentes do SNS ficaram disfarçadas, e até como que
justificadas, pela pressão da Covid-19. A
que foi possível dar resposta quando se concentraram todos os recursos da Saúde
para tratar uma única doença. Tudo o resto ficou para trás, no que foi um
agravamento do que já se passava, mas a que o medo que na altura grassava pelo
país tirou importância. Não que não se desse por isso, mas em tempo de guerra
não se limpam armas: o que era então necessário era ultrapassar a temida morte
pela epidemia, e isso, na verdade, foi feito. Nesse aspecto o SNS funcionou. Foi
bom. Devemos estar-lhe agradecidos e, sobretudo, ao enorme esforço dos seus profissionais. Mas o que ficava para trás reapareceu
depois, agora, como não podia deixar de ser.
Ministro da Saúde é, sem
dúvida, uma função difícil, sobretudo porque diz respeito à saúde das pessoas,
e a tratar dela. Se fosse apenas uma função administrativa seria muito
mais fácil. Mas não é. E é precisamente o ser o que é que explica
fundamentalmente como o SNS durante muitos anos funcionou muito bem com menos
recursos e mais entusiasmo de quem trata os doentes, e depois da sua
administrativização teve a evolução negativa agora largamente à vista de todos!
Claro que esta é a
visão dum médico… E, como também se sabe, esses deixaram de ser centrais no
SNS, enquanto mais uma empresa que se encarrega do tratamento de doentes… E que,
para isso, apenas dá emprego aos profissionais de saúde que quem foi posto a dirigi-la
entender que sejam necessários para os fins definidos por quem manda nela. Nestas
condições, não sei como se possa insistir em que “a culpa é dos médicos”… Seria muito mais útil – do que exigir responsabilidade
de alguém que deixou de ser responsável pela empresa! – comparar o funcionamento,
e o rendimento, do Serviço Nacional de Saúde em duas épocas diferentes. Digamos,
nos primeiros trinta anos com os subsequentes, até ao momento presente.
Aliás, a agora quase
ex-ministra da Saúde disse que “a culpa vem de trás”. E disse bem. Vem de quando,
no início deste século, a gestão administrativa dos Hospitais se sobrepôs, e se
impôs, à sua gestão clínica, tal como era feita até aí, com o nosso SNS num 12º
lugar mundial em 2000, com muito menos gasto do que agora. Essa administrativização, na verdade, acabou
por destruir a parte clínica hospitalar, tornando os clínicos que cumprem a
função que justifica a existência dos Hospitais em simples executantes do que os
gestores administrativos lhes determinam fazer. Foi esta a diferença que fez a
grande diferença entre o que o SNS era e o que é.
O Serviço Nacional de
Saúde, em si, continua a ser uma excelente ideia, que já deu provas mais que concludentes
da sua capacidade. O que mudou foi o modo como é dirigido. E quem foi posto a
dirigi-lo. Porque “os operários” da empresa são os mesmos… Já por muitas vezes,
ao longo dos anos, este assunto foi debatido, e pormenorizado, do ponto de vista
técnico, enquanto estabelecimentos de Saúde, mostrando as verdadeiras causas
das dificuldades encontradas; agora só há a repetir o que foi dito. Mas, infelizmente,
o que se vê diariamente no SNS é o agravamento do que está mal. E o que é anunciado,
marcando a saída da ministra, vem exactamente nessa mesma linha. Digo eu, que
sou só médico. E que tenho receio de ficar doente.