domingo, 4 de setembro de 2022

                                           A CULPA VEM DE TRÁS, É VERDADE

A ministra da Saúde saiu. Ou pediu para sair, ou vai sair quando o primeiro-ministro a deixar sair, diz que depois de enviar para publicação o novo Estatuto do SNS que elaborou.  

Sai porque obviamente não era capaz de continuar. Já se devia ter percebido isso há mais tempo, muito mais tempo. A pandemia veio facilitar-lhe as coisas, permitindo-lhe dois anos em que as falhas crescentes do SNS ficaram disfarçadas, e até como que justificadas, pela pressão da Covid-19.  A que foi possível dar resposta quando se concentraram todos os recursos da Saúde para tratar uma única doença. Tudo o resto ficou para trás, no que foi um agravamento do que já se passava, mas a que o medo que na altura grassava pelo país tirou importância. Não que não se desse por isso, mas em tempo de guerra não se limpam armas: o que era então necessário era ultrapassar a temida morte pela epidemia, e isso, na verdade, foi feito. Nesse aspecto o SNS funcionou. Foi bom. Devemos estar-lhe agradecidos e, sobretudo, ao enorme esforço dos seus profissionais. Mas o que ficava para trás reapareceu depois, agora, como não podia deixar de ser.

Ministro da Saúde é, sem dúvida, uma função difícil, sobretudo porque diz respeito à saúde das pessoas, e a tratar dela. Se fosse apenas uma função administrativa seria muito mais fácil. Mas não é. E é precisamente o ser o que é que explica fundamentalmente como o SNS durante muitos anos funcionou muito bem com menos recursos e mais entusiasmo de quem trata os doentes, e depois da sua administrativização teve a evolução negativa agora largamente à vista de todos!

Claro que esta é a visão dum médico… E, como também se sabe, esses deixaram de ser centrais no SNS, enquanto mais uma empresa que se encarrega do tratamento de doentes… E que, para isso, apenas dá emprego aos profissionais de saúde que quem foi posto a dirigi-la entender que sejam necessários para os fins definidos por quem manda nela. Nestas condições, não sei como se possa insistir em que “a culpa é dos médicos”…  Seria muito mais útil – do que exigir responsabilidade de alguém que deixou de ser responsável pela empresa! – comparar o funcionamento, e o rendimento, do Serviço Nacional de Saúde em duas épocas diferentes. Digamos, nos primeiros trinta anos com os subsequentes, até ao momento presente.  

Aliás, a agora quase ex-ministra da Saúde disse que “a culpa vem de trás”. E disse bem. Vem de quando, no início deste século, a gestão administrativa dos Hospitais se sobrepôs, e se impôs, à sua gestão clínica, tal como era feita até aí, com o nosso SNS num 12º lugar mundial em 2000, com muito menos gasto do que agora.  Essa administrativização, na verdade, acabou por destruir a parte clínica hospitalar, tornando os clínicos que cumprem a função que justifica a existência dos Hospitais em simples executantes do que os gestores administrativos lhes determinam fazer. Foi esta a diferença que fez a grande diferença entre o que o SNS era e o que é.

O Serviço Nacional de Saúde, em si, continua a ser uma excelente ideia, que já deu provas mais que concludentes da sua capacidade. O que mudou foi o modo como é dirigido. E quem foi posto a dirigi-lo. Porque “os operários” da empresa são os mesmos… Já por muitas vezes, ao longo dos anos, este assunto foi debatido, e pormenorizado, do ponto de vista técnico, enquanto estabelecimentos de Saúde, mostrando as verdadeiras causas das dificuldades encontradas; agora só há a repetir o que foi dito. Mas, infelizmente, o que se vê diariamente no SNS é o agravamento do que está mal. E o que é anunciado, marcando a saída da ministra, vem exactamente nessa mesma linha. Digo eu, que sou só médico. E que tenho receio de ficar doente.

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

                        OS MÉDICOS TROCAM O PÚBLICO PELO PRIVADO

(Comentário a uma notícia de jornal sobre o tema)

Não é de modo nenhum de espantar que o sector público esteja a perder muitos dos seus melhores médicos para o privado. As instituições privadas multiplicam-se a olhos vistos, vindo ocupar o espaço deixado vazio pela recessão economicista imposta aos hospitais públicos. Por outro lado, o que se vai passando em muitos dos hospitais EPE não convida realmente a lá trabalhar, e isso sim, é de estranhar, porque se lhes foi criado um estatuto empresarial deveria ser para serem geridos numa lógica de competitividade, e isso implicaria obviamente criar condições para que os melhores lá quisessem trabalhar com gosto e entusiasmo. Mas não, o ambiente gerado por muitos dos conselhos de administração nomeados pelo ministério para esses hospitais foi precisamente o contrário, utilizando o poder que lhes foi atribuído não em prol da instituição mas sim desbaratando-o em nomeações de amigos sem a qualidade necessária, e pior, afastando dos lugares de chefia, por motivo de retaliações e pequenas vinganças pessoais, profissionais de prestígio, com provas dadas e que vinham fazendo a gestão clínica dos seus serviços o melhor possível, cumprindo e ultrapassando até o que estava contratualizado. A passagem a EPE nesses hospitais foi sentida não com entusiasmo mas como uma punição, e uma punição imerecida, o que não ajuda nada à produtividade e ao progresso das instituições.

A desierarquização ostensivamente estabelecida nesses hospitais, por um lado, o corte constante no orçamento para tratar os doentes, por outro, são suficientemente motivadores duma saída dos melhores para outras paragens menos inóspitas.

Em cima disto tudo, o “administrativismo” instalou-se no sector público empresarial, deslocando uma boa fatia do orçamento hospitalar para essa área, com prejuízo óbvio da área clínica. Com a ânsia de ganhar dinheiro – parece ser o único aspecto que foi implementado em muitos dos “empresarializados” – os gestores lá colocados multiplicaram os que fazem contas mas negligenciaram os que produzem, isto é, os que tratam os doentes, o sector produtivo da empresa. Em vez destes serem estimulados, com prémios, com regalias, com mimos, com condições de trabalho melhoradas – como os competidores privados fazem - aqueles portam-se como capatazes e vigilantes, espremendo os trabalhadores para produzir sumo sem laranjas. 

Não sei se era isto o pretendido com esta nova forma de gestão hospitalar, que para levar a esta situação acabou com as carreiras médicas. E este é outro problema de difícil resolução. Mas foi o que foi criado. A verdade é que começam a existir condições para os médicos poderem escolher onde querem trabalhar, onde se querem realizar profissionalmente, e o sector privado, onde já existe em força, está a levar a melhor.

Artigo de 2007, in Farpas pela Nossa Saúde, 2009, MinervaCoimbra