ONDE OS CIRURGIÕES SE ENCONTRAM
Os
cirurgiões encontram-se, do ponto de vista profissional, em muitos sítios e em
múltiplas situações. E esses encontros são fundamentais para o exercício da sua
especialidade, que é como quem diz, para o tratamento dos doentes que a eles
acorrem ou que lhes são confiados. Ninguém pode ter a veleidade – seja por
sobranceria, por falta de tempo ou outra razão qualquer – de querer permanecer
isolado, ou barricado no seu pequeno grupo, e ainda assim tratar os seus
doentes da melhor maneira possível, isto é, tratá-los acompanhando toda a
evolução que se vai passando na medicina. Quer dizer, não pode ignorar as experiências
doutros e deve querer deles, ou através deles, tirar ensinamentos e obter os recursos
cirúrgicos que no dia a dia, ou um dia, lhe possam ser tão úteis que
justifiquem até salvar vidas, ou a vida dum só paciente que seja.
O trabalho
em equipa é fundamental, e essa é uma forma de encontro. Diário, nas reuniões
de sector, nas reuniões de serviço. Onde os mais experientes ensinem os mais
novos, estes possam colocar dúvidas e ter opiniões, onde todos possam aprender
uns com os outros. Projectos apresentados e discutidos (sejam mais gerais ou
mais específicos), resultados avaliados, eventuais correcções planeadas. Que
ninguém fique de fora, isento de aprender, impedido de sugerir, porque às vezes
quem está mais longe dum determinado quadro, ou o vê menos vezes, consegue
detectar alguns pormenores que quem o vê de muito perto e fixamente durante
muito tempo deixou de perceber.
Os
cirurgiões encontram-se também em cursos teóricos ou práticos focados num
determinado assunto. E encontram-se em reuniões científicas de maior dimensão,
simpósios, congressos, promovidos por serviços ou por outros grupos maiores ou
menores de colegas associados entre si. Para além do que se ouve, se ensina e
se aprende nas palestras e mesas redondas dessas reuniões, é usual dizer-se que
se calhar uma das suas partes mais eficazes e importantes é o que se fala e se
discute em termos médicos nos seus corredores. É aí outro ponto de encontro
muito especial dos cirurgiões.
Não poucas
vezes nas salas dos congressos se ouve sobretudo “contar vantagem”, fazer
afirmações que se parecem muito menos com a verdade do que o rigor científico
exigiria, dizer mais o que se gostaria que tivesse acontecido do que o que realmente
aconteceu, fazer avaliações em causa própria que pecam por demasiado
optimistas. Todos sabemos isso, e há que lhe estar com atenção, mas com certeza
que, e apesar dessa realidade, esses encontros de cirurgiões são fundamentais
para o nosso próprio progresso. Mas é verdade também que fora das salas de
sessões, nos corredores e no bar, no espaço dos posters electrónicos, sempre disponíveis, é que muita discussão é feita,
muitos resultados cotejados, alguns projectos imaginados. De maneira mais
aberta, mais espontânea, sem ser para impressionar ninguém, unidos pelo que
leva todos os cirurgiões realmente a encontrar-se: o seu amor pela cirurgia. O
gostarem todos de contribuir para ela, e de a praticarem o melhor possível.
No último European Venous Forum, para que fui convidado,
discutiu-se, naturalmente, a doença venosa crónica, a insuficiência venosa e as
varizes dos membros inferiores, e as suas diferentes modalidades de tratamento,
bem como os respectivos resultados. Trata-se duma patologia que, como se sabe,
ainda não tem cura mas tem tratamento, podendo os doentes manter a doença sem
sintomatologia durante muito tempo, desde que adequadamente tratados. Devo
dizer que pouco de novo surgiu, a não ser alguma investigação em curso, mas
mesmo essa aparentemente não muito promissora. É sem dúvida, por isso, uma área
a precisar do maior empenho e do entusiasmo de todos os que a ela se dedicam. E
que interessa transversalmente várias especialidades médicas e cirúrgicas (umas
existentes entre nós, outras não): desde a cirurgia vascular e a cirurgia geral
à dermatologia, à angiologia, à flebologia, entre outras.
Pois nesse
Venous Forum o trabalho que me
impressionou mais foi o dum serviço de cirurgia plástica duma universidade de
Taiwan (a “nossa” Formosa), a Kohsiun Medical University, liderado pelo Prof.
Sin-Daw Lin. Esses colegas excisam veias varicosas subcutâneas por meio dum
pequeno corte na pele e dissecção endoscópica da hipoderme circundante,
laqueando as varizes e retirando-as em bloco através da incisão cutânea, sem
necessitar de qualquer arrancamento e sem hemorragia. É mais uma aplicação de
técnica endoscópica para tratamento de varizes, esta com abordagem supra-aponevrótica,
enquanto que a laqueação endoscópica de perfurantes insuficientes que o nosso
serviço pratica é subaponevrótica, abordando as veias abaixo da aponevrose.
Não
conhecíamos a operação deles, e eles não conheciam a que fazemos. Da conversa informal
sobre elas resultaram informações técnicas mútuas, com proveito para as duas
partes, e o plano de partilhar experiências e resultados neste campo. E como
hoje é muito mais fácil aprender seja o que for, logo mostrámos filmes das
intervenções, discutindo face às imagens pormenores de cada uma das técnicas, e
até o modo de ultrapassar alguns problemas e dificuldades. E é neste aspecto
que os cirurgiões também se encontram. No da cirurgia e das técnicas
cirúrgicas, no campo dos recursos técnicos que um cirurgião deve ter para
aplicar sempre que for necessário.
Não é com
certeza a prática mais habitual em Taiwan um cirurgião plástico operar varizes.
Mas eis que este grupo conseguiu translacionar skills e know-how da sua
área cirúrgica videoassistida mais específica para a patologia varicosa,
fazendo investigação, tratando doentes, avaliando resultados (vd. bibliografia
respectiva neste número), contribuindo com uma técnica cirúrgica para outros
desconhecida, e que a poderão aproveitar se para isso tiverem abertura de espírito
e capacidade, desse modo aumentando o seu armamentário cirúrgico para uso especializado.
E é assim
que os cirurgiões também se devem encontrar. Não se deve cada um acantonar no
seu pequeno mundo, ignorando e mesmo desprezando, senão guerreando, tudo o
resto. Todos devem manter o espírito aberto, e procurar aprender da cirurgia e
com os cirurgiões que os rodeiam. E o cirurgião geral, no meio de todos os
cirurgiões, é seguramente o que tem melhores condições para o fazer. Mesmo que se
vá progressivamente focando mais num só tipo de cirurgia, é dele com certeza
que se espera a capacidade de abarcar todos os recursos cirúrgicos da sua
profissão e fazê-los aplicar quando necessários. Seja onde e quando o forem.
Julho
2017, in Newsletter da Cirurgia C, 2018