COMENTÁRIOS BREVES SOBRE O
PROJECTO DE NOVO ESTATUTO DO SNS
O que, na verdade,
foi causa remota do progressivo descalabro do SNS a que se tem vindo a assistir,
com diminuição do empenhamento dos médicos nele e o seu posterior abandono por
parte de muitos, cada vez mais acelerado – e sem médicos não há SNS, por mais
que os administradores se queiram convencer do contrário! – foi a criação dos hospitais
EPE, os hospitais chamados públicos empresariais. Não em si mesma – porque os
hospitais, tal como as clínicas, são na realidade empresas -, mas porque na prática
foi completamente secundarizada a governação clínica, pondo-se de parte os médicos
na gestão dos hospitais, e condenando desde o início as Carreiras Médicas ao
que acabaram por ser hoje: um vestígio sem verdadeiro significado prático, uma espécie
de fantasma. Esquecendo que foram elas, juntamente com os Internatos Médicos,
que mais fizeram pelo êxito de trinta anos do SNS.
Quer dizer: o que foi
feito foi o que logo na altura se classificou como administrativização da
Saúde. De que outros países, aliás, se queixaram também: o Reino Unido, para
começar, depois a Alemanha, os EUA… Nestes, 40% do gasto na sua saúde (o maior
do mundo) é com a parte administrativa! Quer dizer, é dito que reduzindo desse valor
a orçamento para a Saúde os doentes norte-americanos poderiam continuar a ter
acesso ao mesmo tipo de cuidados clínicos…
Ora o que este novo
estatuto do SNS vem fazer é reforçar esse triunfo administrativo, essa
preponderância da gestão administrativa sobre a governação clínica, em suma,
essa administrativização. Com toda a burocracia escusada que ela arrasta.
Vejamos algumas notas
particulares sobre este projecto de Estatuto do SNS:
- O SNS passa a ser
uma enorme entidade pública empresarial, com um conselho de administração
nomeado pelo ministro da saúde, a chamada “direcção executiva do SNS”, com
polos espalhados por todo o território nacional, por onde os médicos podem ser
feitos circular à vontade de quem manda e arranjar justificação para isso.
- Esse SNS diz-se que
é público, mas pode ser integrado por estabelecimentos privados ou de carácter
social. Ou fazer contrato com eles, ou até com profissionais individuais
independentes.
- Fala-se de
proximidade dos cuidados de saúde à população, mas o caminho, já encetado e não
revertido, tem sido de fechar estabelecimentos e concentrar cuidados em centros
hospitalares e ACES. Cria-se o chamado “sistema local de saúde”, sem existência
jurídica mas com três coordenadores, eventualmente pagos, e que, como está
descrito, dificilmente poderá vir a ser mais que um artigo no Estatuto.
- A contratação para
o “quadro” – mas que quadro?? – pode ser feita de todos os modos administrativos
possíveis e imaginários. Inclusivamente de modo temporário, e enquanto se entender
haver necessidade do profissional! Com que critérios?...
- Os contratados num
local do SNS podem ser mandados fazer trabalho noutros locais de trabalho,
incluindo trabalho suplementar, pelo qual, aliás, poderão receber mais do que
recebem no seu local habitual de trabalho. E sem que essas horas suplementares
contem para o seu limite de horas de trabalho semanal.
- Na administração do
hospital é criado um lugar de “eleito pelos trabalhadores”. Mas o director clínico,
que já foi eleito pelos médicos, continua a ser nomeado, e por alguém
administrativo…
- A carreira médica
foi totalmente esquecida neste documento. Nem nele é, aliás, definido o modo como
um profissional médico pode progredir profissionalmente dentro deste Serviço Nacional
de Saúde.
- Como também nele
não é devidamente previsto, acautelado, muito menos estimulado, na verdade nem
sequer é considerado, o ensino pós-graduado. E também não o pré-graduado nos
hospitais.
- Diz-se que a organização
hospitalar tem como unidade central o serviço, com unidades funcionais e departamentos
nos extremos, mas depois surge o CRI. É o quê? Uma associação comercial no meio
do hospital? Uma organização técnico-comercial? Que relação tem com os
serviços? Quem vai trabalhar para cada um deles? Que por isso vão ganhar mais
que os outros profissionais do hospital. Porque vão tratar mais doentes, porque
lhes fornecem mais meios e mais pessoal? Quem é o responsável do CRI? Como é
escolhido e por quem? Que relação têm todos com as carreiras médicas, a que esta
própria lei, aliás, diz que pertencem?
- Vá que é considerado
que o director de serviço deve ser “preferencialmente do mais elevado grau da
carreira”… embora este seja o último dos factores a considerar! Mas para o CRI
já não conta…
- Depois, a criação
da chamada “dedicação plena”. De que ficam excluídos os médicos em
exclusividade – aliás, esta parece ser a extinguir quando acabar – ou em
trabalho parcial. É, na verdade, um outro contrato de trabalho dentro do contrato
com o hospital, renovável de três em três anos, para se produzir duma certa
maneira ganhando doutro modo. Com mais horas de trabalho? Sem limite de horas
de trabalho no hospital? Isto não é claro. Mas com limite de horas fora do
hospital, isso sim. Também é, digamos, um subcontrato obrigatório para quem
quiser ser director dum serviço, ao mesmo tempo que o impede de ser director ou
coordenador de qualquer coisa fora do hospital.
- Como avaliação
global final, pode-se dizer que, face a este projecto, não estamos perante um verdadeiro
Serviço Nacional de Saúde, com todos os aspectos, assistencial, formativo, de
investigação, de desenvolvimento, que se estruture e se mantenha a si próprio, em
termos de futuro, pela simples prática diária, que deveria ter, mas antes uma
organização para fornecer cuidados de saúde com delegações espalhadas pelo país.
Como qualquer outra entidade privada do género. É muito curto para SNS.