segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

ONDE OS CIRURGIÕES SE ENCONTRAM

Os cirurgiões encontram-se, do ponto de vista profissional, em muitos sítios e em múltiplas situações. E esses encontros são fundamentais para o exercício da sua especialidade, que é como quem diz, para o tratamento dos doentes que a eles acorrem ou que lhes são confiados. Ninguém pode ter a veleidade – seja por sobranceria, por falta de tempo ou outra razão qualquer – de querer permanecer isolado, ou barricado no seu pequeno grupo, e ainda assim tratar os seus doentes da melhor maneira possível, isto é, tratá-los acompanhando toda a evolução que se vai passando na medicina. Quer dizer, não pode ignorar as experiências doutros e deve querer deles, ou através deles, tirar ensinamentos e obter os recursos cirúrgicos que no dia a dia, ou um dia, lhe possam ser tão úteis que justifiquem até salvar vidas, ou a vida dum só paciente que seja.

O trabalho em equipa é fundamental, e essa é uma forma de encontro. Diário, nas reuniões de sector, nas reuniões de serviço. Onde os mais experientes ensinem os mais novos, estes possam colocar dúvidas e ter opiniões, onde todos possam aprender uns com os outros. Projectos apresentados e discutidos (sejam mais gerais ou mais específicos), resultados avaliados, eventuais correcções planeadas. Que ninguém fique de fora, isento de aprender, impedido de sugerir, porque às vezes quem está mais longe dum determinado quadro, ou o vê menos vezes, consegue detectar alguns pormenores que quem o vê de muito perto e fixamente durante muito tempo deixou de perceber.

Os cirurgiões encontram-se também em cursos teóricos ou práticos focados num determinado assunto. E encontram-se em reuniões científicas de maior dimensão, simpósios, congressos, promovidos por serviços ou por outros grupos maiores ou menores de colegas associados entre si. Para além do que se ouve, se ensina e se aprende nas palestras e mesas redondas dessas reuniões, é usual dizer-se que se calhar uma das suas partes mais eficazes e importantes é o que se fala e se discute em termos médicos nos seus corredores. É aí outro ponto de encontro muito especial dos cirurgiões.

Não poucas vezes nas salas dos congressos se ouve sobretudo “contar vantagem”, fazer afirmações que se parecem muito menos com a verdade do que o rigor científico exigiria, dizer mais o que se gostaria que tivesse acontecido do que o que realmente aconteceu, fazer avaliações em causa própria que pecam por demasiado optimistas. Todos sabemos isso, e há que lhe estar com atenção, mas com certeza que, e apesar dessa realidade, esses encontros de cirurgiões são fundamentais para o nosso próprio progresso. Mas é verdade também que fora das salas de sessões, nos corredores e no bar, no espaço dos posters electrónicos, sempre disponíveis, é que muita discussão é feita, muitos resultados cotejados, alguns projectos imaginados. De maneira mais aberta, mais espontânea, sem ser para impressionar ninguém, unidos pelo que leva todos os cirurgiões realmente a encontrar-se: o seu amor pela cirurgia. O gostarem todos de contribuir para ela, e de a praticarem o melhor possível.

No último European Venous Forum, para que fui convidado, discutiu-se, naturalmente, a doença venosa crónica, a insuficiência venosa e as varizes dos membros inferiores, e as suas diferentes modalidades de tratamento, bem como os respectivos resultados. Trata-se duma patologia que, como se sabe, ainda não tem cura mas tem tratamento, podendo os doentes manter a doença sem sintomatologia durante muito tempo, desde que adequadamente tratados. Devo dizer que pouco de novo surgiu, a não ser alguma investigação em curso, mas mesmo essa aparentemente não muito promissora. É sem dúvida, por isso, uma área a precisar do maior empenho e do entusiasmo de todos os que a ela se dedicam. E que interessa transversalmente várias especialidades médicas e cirúrgicas (umas existentes entre nós, outras não): desde a cirurgia vascular e a cirurgia geral à dermatologia, à angiologia, à flebologia, entre outras.

Pois nesse Venous Forum o trabalho que me impressionou mais foi o dum serviço de cirurgia plástica duma universidade de Taiwan (a “nossa” Formosa), a Kohsiun Medical University, liderado pelo Prof. Sin-Daw Lin. Esses colegas excisam veias varicosas subcutâneas por meio dum pequeno corte na pele e dissecção endoscópica da hipoderme circundante, laqueando as varizes e retirando-as em bloco através da incisão cutânea, sem necessitar de qualquer arrancamento e sem hemorragia. É mais uma aplicação de técnica endoscópica para tratamento de varizes, esta com abordagem supra-aponevrótica, enquanto que a laqueação endoscópica de perfurantes insuficientes que o nosso serviço pratica é subaponevrótica, abordando as veias abaixo da aponevrose.

Não conhecíamos a operação deles, e eles não conheciam a que fazemos. Da conversa informal sobre elas resultaram informações técnicas mútuas, com proveito para as duas partes, e o plano de partilhar experiências e resultados neste campo. E como hoje é muito mais fácil aprender seja o que for, logo mostrámos filmes das intervenções, discutindo face às imagens pormenores de cada uma das técnicas, e até o modo de ultrapassar alguns problemas e dificuldades. E é neste aspecto que os cirurgiões também se encontram. No da cirurgia e das técnicas cirúrgicas, no campo dos recursos técnicos que um cirurgião deve ter para aplicar sempre que for necessário.

Não é com certeza a prática mais habitual em Taiwan um cirurgião plástico operar varizes. Mas eis que este grupo conseguiu translacionar skills e know-how da sua área cirúrgica videoassistida mais específica para a patologia varicosa, fazendo investigação, tratando doentes, avaliando resultados (vd. bibliografia respectiva neste número), contribuindo com uma técnica cirúrgica para outros desconhecida, e que a poderão aproveitar se para isso tiverem abertura de espírito e capacidade, desse modo aumentando o seu armamentário cirúrgico para uso especializado.

E é assim que os cirurgiões também se devem encontrar. Não se deve cada um acantonar no seu pequeno mundo, ignorando e mesmo desprezando, senão guerreando, tudo o resto. Todos devem manter o espírito aberto, e procurar aprender da cirurgia e com os cirurgiões que os rodeiam. E o cirurgião geral, no meio de todos os cirurgiões, é seguramente o que tem melhores condições para o fazer. Mesmo que se vá progressivamente focando mais num só tipo de cirurgia, é dele com certeza que se espera a capacidade de abarcar todos os recursos cirúrgicos da sua profissão e fazê-los aplicar quando necessários. Seja onde e quando o forem.

Julho 2017, in Newsletter da Cirurgia C, 2018


 O LÍDER

O termo “líder” vem do inglês “leader”, com origem no verbo “to lead”, que significa guiar, dirigir, comandar. É frequentemente confundido com “chefe”, mas as duas palavras não têm o mesmo significado, embora muitas vezes se possam aplicar com justeza à mesma pessoa. E também “liderança”, conquanto signifique a capacidade ou a acção do líder, também pode ser entendida de outra maneira, embora derivando daquelas: quando é exercida por todos os membros dum grupo, sob o estímulo do líder, cada um desenvolvendo as suas capacidades próprias e pondo-as ao serviço da prossecução dos objectivos comuns. 

Um líder é reconhecido pelos seus pares, um chefe é-lhes imposto. Seria com certeza desejável que líder e chefe dum grupo coincidissem no mesmo elemento, mas isso nem sempre acontece, muitas vezes porque quem nomeia não é capaz de perceber quem no grupo em questão tem a capacidade de o liderar, outras por não haver mais ninguém disponível. Há anos, numa palestra sobre liderança no Departamento de Formação Contínua aqui do Hospital, o prelector começou por perguntar: “Quem é que se acha um líder?” Na assistência apenas dois levantaram um dedo. E ele continuou, ignorando-os: “É assim, quem é líder não se apresenta como tal, os outros é que o apontam”. Quer dizer, um líder é o membro dum grupo que tem a capacidade reconhecida pelos seus companheiros de os influenciar, fazendo-os eventualmente mudar de opinião e seguir a sua, para além de os conseguir incentivar no trabalho e na procura de soluções para os problemas do conjunto. É quem, na verdade, cria as condições para que o grupo avance, o que traça caminhos e ajuda a rasgá-los; o chefe limita-se a segui-los, conduzindo os outros. Por isso o líder não é forçosamente o que vai à frente, ou o que sabe mais, ou o que faz mais e melhor; pode até ir atrás, orientando os companheiros, estimulando-os, permitindo que os mais rápidos vão à frente e os mais lentos os sigam com ânimo e sem desistirem. Nas palavras de Nelson Mandela, um líder incontestável: “Um líder é como um pastor. Fica atrás do rebanho, deixando os mais rápidos ir à frente, seguindo depois os outros, não percebendo que durante o tempo todo estão a ser dirigidos da rectaguarda”.

Um aspecto muito importante do líder é esse, o de conseguir que os mais aptos do grupo que lidera se mostrem como tal e sejam colocados nos lugares certos para terem o melhor desempenho que conseguirem, em benefício de todos. A brilhante personagem televisiva do “eu é que sou o presidente da Junta”, além de risível, exemplifica claramente o que um líder não deve ser. Recentemente, num concurso para o lugar de topo da carreira médica, o júri perguntava ao candidato, já director de Serviço há vários anos, por que razão tinha várias ajudas numa dada intervenção cirúrgica mas nela não tinha sido nunca cirurgião. A resposta foi: ”Porque há no meu Serviço quem a faça melhor do que eu”. É a atitude que se espera dum líder.

“Ao dar mais poder a outros, um líder não diminui o seu poder, em vez disso pode estar a aumentá-lo - especialmente se toda a organização tiver melhor desempenho”, palavras da Prof. Rosabeth Kanter, da Harvard Business School. E o mundialmente conhecido Steve Jobs dizia: “O meu trabalho número 1 na empresa é certificar-me que os trabalhadores no topo são realmente os melhores. Se assim for, tudo o resto vai resolver-se por si mesmo e isso reflecte-se em toda a organização”. No século XVI Nicolau Maquiavel escrevia, no seu extraordinário ensaio “O Príncipe” (na verdade sobre liderança): “O primeiro método para avaliar a inteligência de um governante é olhar para os homens que reuniu à sua volta”. Isto é, o “presidente da Junta” escolhe os com menos qualidade que ele, para poder sobressair no meio deles; o líder escolhe os melhores, até melhores que ele, para fazer sobressair a sua obra. 

Não é sempre líder o mais carismático, o que melhor fala, o que desperta mais interesse, fazendo que individualmente cada um queira ser como ele. Esse pode não passar dum chefe palavroso e com ar convincente. O líder reconhece-se pelos resultados que o grupo que lidera alcança, de acordo, naturalmente, com as circunstâncias e os elementos que o constituem.  É aquele que  faz com que os seus colaboradores se excedam no trabalho, façam o que gostam e o que não gostam mas é preciso que façam, com satisfação e sem se aperceberem sequer disso, envolvidos nos objectivos do grupo a que pertencem e que ele lidera. Truman (presidente dos EUA) fazia notar que “a liderança é a capacidade de conseguir que as pessoas façam o que não querem fazer e gostem de o fazer”. Por isso se diz atrás que a liderança é mais do que o líder faz, ela é na verdade também exercida pelo grupo que ele lidera e sob o seu estímulo. Andrew Carnegie (magnata do aço do início do século XX e que se tornou num dos homens mais ricos do mundo) afirmava: “Ninguém será grande líder se quiser fazer tudo sozinho, ou ter todos os louros por o ter feito”. 

O conceito de liderança define uma influência exercida sobre os outros que permite incentivá-los a trabalhar com entusiasmo por um objectivo comum. Embora dependa directamente do líder, este não deve ser considerado como parte única no processo, sendo que os liderados também nele participam, desenvolvendo a sua acção de forma eficiente. A liderança implica uma empatia criada entre o líder e os liderados, pela qual estes o acompanham sem esforço aparente, compreendendo-se todos emocionalmente, sentindo da mesma maneira. É, pois, totalmente diferente de simplesmente mandar. Essa empatia, que se traduz numa espécie de cumplicidade, é biunívoca, o líder não desrespeitando ou violentando os seus companheiros de grupo, comungando com eles dos seus anseios, das suas dúvidas, dos seus entusiasmos, conquistando-os desse modo para sua liderança e obtendo assim os melhores resultados. A prepotência, às vezes pecha dalguns chefes, que abusam da autoridade que lhes foi conferida, não é apanágio dos líderes. Dizia Jean de La Bruyère que “os lugares de chefia fazem maiores os grandes homens, e mais pequenos os pequenos homens”. O nosso povo diz: “se queres conhecer o vilão, mete-lhe um caco na mão…”. 

Paralelamente ao respeito e consideração pelo seu grupo, o líder tem de ter a capacidade de ouvir e aceitar as críticas que de dentro dele lhe façam, tendo-as em consideração e discutindo-as, interagindo assim com os companheiros que o têm como líder. Mais uma vez, alguns chefes “não se dão ao luxo” de o fazer. Mas, de novo segundo Mandela, “os líderes sabem bem que a crítica construtiva no seio das estruturas da organização, por mais agressiva que seja, é um dos métodos mais eficazes de resolver problemas internos”. Essa interacção é muito importante para os resultados conseguidos pela liderança. De acordo com o economista Prof. Robert Townsend, “a maioria das pessoas nas grandes empresas são geridas, não lideradas. São tratadas como pessoal, não como pessoas”, por chefes que não são, obviamente, líderes e, por isso, a liderança nesses casos não existe. 

O líder é o estímulo, mas é também o refúgio e a esperança do grupo nos momentos difíceis. É o elemento a quem os outros se acolhem e a quem recorrem naturalmente perante as dificuldades sentidas colectivamente. É aquele de quem os outros esperam que os conduza pelo meio dos escolhos e encontre um caminho de saída. No dizer de Napoleão Bonaparte, “um líder é um vendedor de esperança”. “O líder acredita e faz acreditar” (Rui Nabeiro). 

A capacidade de liderança é inata, é própria de quem é líder, não pode ser adquirida, mas pode ser treinada e melhorada, como uma competência. Por isso é razoável haver tantos artigos, palestras, opiniões expressas sobre ser líder e liderança. Tudo isso chama a atenção para a sua importância nas organizações, permite perceber a diferença entre ser chefiado e ser liderado, e leva a que quem tem condições de liderança o possa assumir em plenitude. Muitas vezes são as circunstâncias que fazem um líder mostrar-se como tal, e são elas sobretudo, no seu tempo e no seu modo, que “criam” lideres, muito mais que quaisquer cursos de liderança. Não é que estes sejam inúteis, servem sem dúvida para que quem o é possa melhorar e aproveitar as suas capacidades, mas também para os outros perceberem como podem e devem seguir um líder, contribuindo positivamente para a sua liderança sem se anularem nela. 

Há, por vezes, dentro duma organização, um ou vários líderes que não querem assumir funções de chefia, por não pretenderem essa responsabilidade formal, mantendo-se como líderes informais; funcionam então frequentemente, até de modo involuntário, como guardiães das expectativas do grupo e contribuem para a sua coesão. Enquanto que há quem, sem ser líder, se ponha em bicos dos pés para chefiar. Como atrás se disse, o desejável é que chefe e líder coincidam nas mesmas pessoas. 

Finalmente, de tudo o que fica dito sobre as qualidades gerais que um líder tem de ter para o ser, compreende-se, porque as pessoas não são todas iguais, que haja diversos tipos de líder, e de liderança, de acordo com a personalidade de cada um e as suas circunstâncias e as do grupo onde está inserido. Poderemos ter, assim, liderança autocrática, democrática ou liberal. E perfis diferentes para os próprios líderes, como: carismático, exigente, autocrático, liberal, visionário, democrático, treinador, burocrático, transaccional. Seja como for, o líder e o exercício da liderança são definidos do modo enunciado atrás, e avaliados sobretudo pelos resultados do colectivo liderado em questão. Por vezes é visível a acção do líder durante a sua actuação, com líderes mais carismáticos, noutras ela só se torna evidente quando ele se vai embora e a liderança desaparece. Segundo Lao Tsé, “quando o líder efectivo dá o seu trabalho por terminado, as pessoas dizem que tudo aconteceu naturalmente”. Até parece que ele não fazia falta…

2017, in Newsletter da Cirurgia C, 2018


sexta-feira, 27 de novembro de 2020

FORMAÇÃO PÓS-GRADUADA: EM QUE PONTO ESTAMOS?

A política de saúde nacional é da responsabilidade de quem nos governa, num sistema democrático legitimado por eleições. Concorde-se ou não se concorde com ela, temos de admitir que foi o que a maioria escolheu, pelo menos para algum tempo, e é com ela que teremos de viver nesse tempo. Mas nunca se poderá, por certo, entender que o que estava bem passe a estar mal, ou que o que parecia planeado e exequível ao longo dos anos se torne problemático e sem futuro perceptível. E falamos aqui de situações que devem ser independentes de quaisquer opções políticas vigentes, como a saúde, o bem-estar das pessoas, o direito à justiça e à educação. Aquilo que o Estado, enquanto tal, a nossa organização colectiva, para que todos nós contribuímos e que defendemos, até com a nossa vida se preciso for, nos deve providenciar a todos, da maneira mais igual possível em termos de necessidades mínimas. Deixando, para além disso, cada um fazer da sua vida o que conseguir, na sua iniciativa pessoal dentro das regras comuns.

Ao longo de mais de trinta e cinco anos, e passando por muitos governos mais ou menos socialistas democráticos e social-democratas, a Saúde foi um problema resolvido em Portugal. Preparação pré-graduada adequada, boa formação pós-graduada, acesso fácil e universal a cuidados de saúde de qualidade, quer especializados quer básicos, em hospitais centrais como em hospitais periféricos e centros de saúde. Não é um quadro cor de rosa agora pintado a posteriori, é o substrato real duma saúde classificada então entre as melhores do mundo, em 5º lugar na Europa comunitária, com o menor gasto per capita de toda ela. Por muito que custe agora a alguns, é este o termo de comparação – algo palpável, possível, que existiu, e há pouco tempo.

Há alguns anos um ministro da Saúde introduziu mudanças, administrativas e de gestão, que foram depois continuadas por outros, com o fim declarado de tornar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) sustentável no futuro. Que é agora. Nos últimos três anos o défice desse ministério duplicou, mas o que mais evidente se tornou foi a extinção, por inoperatividade e falta de objectivos, das carreiras médicas. E elas eram uma parte estruturante do SNS, garante duma autoavaliação dos profissionais, com progressão profissional e salarial e estímulo para fazer mais e melhor. E foi através delas que se conseguiram colocar em hospitais do interior, até aí praticamente abandonados a alguns autóctones desejosos de voltar à terra natal, muitos especialistas bem preparados e com vontade de praticar a sua boa medicina, em prol dos doentes dessas regiões.

Essa cobertura sanitária do país teve outra grande virtude: foi a extensão dos internatos médicos a todos os hospitais que entretanto ganharam, por via dela, idoneidade para os administrar. E os jovens internos lá colocados foram ficando depois de formados, estabelecendo-se desse modo um esquema sustentável e barato de manter  boa medicina na periferia do país, sem ter de se concentrar tudo nos grandes centros, com todos os inconvenientes que desde sempre se apontaram a esta prática.

Os internatos médicos assentam em Serviços considerados idóneos para os fornecer, mercê do preenchimento de vários itens, estabelecidos e avaliados pelas comissões de internato, nacional e regionais, estatais, e os colégios das várias especialidades, da Ordem dos Médicos. Implicam eles condições físicas e de trabalho, de organização, e de pessoal, englobando estas últimas número, formação, experiência e diferenciação dos profissionais que lá trabalham. Cada interno tem de ter um programa individual de preparação estabelecido pelo seu director de Serviço e responsável pela sua formação, acompanhada esta por um especialista que o irá orientar na aquisição dos conhecimentos e habilitações que o transformarão finalmente também num especialista.

Ora, neste momento, as carreiras perderam eficácia, não sendo sequer consideradas nas nomeações para lugares directivos feitas nos hospitais, e a maioria dos contratados, e os a contratar, estão fora delas. Coloca-se por isso um problema crucial: quem é responsável pela formação dos internos?

Como se avalia a qualidade de cada um para ensinar ou orientar outros? Por que dados objectivos se deve reger a escolha de um director de serviço responsável último pela formação de um ou de muitos internos? Teremos de deixar essa escolha ao “achismo” de alguém ocasionalmente colocado na posição de “achar”? E com os contratos precários de trabalho que se anunciam, sobretudo quando mão de obra fornecida por uma agência de “temp jobs” (em português, “trabalho temporário”), quem poderá ser orientador e formador dum interno? Quer dizer, que condições, em termos de recursos humanos, devem ser exigidas a um Serviço para ter idoneidade para ter internos? Ou melhor, haverá muitos Serviços que possam continuar a ter idoneidade para ter internos?

É esta a situação actual e a previsível a muito curto prazo. Foi todo um paradigma de estruturação profissional hospitalar que foi modificado, atingindo a formação contínua e pós-graduada, intencionalmente ou se calhar nem tanto, sendo apenas um efeito colateral até indesejado, apenas mais um dos maus resultados obtidos. A causa, administrativa, é conhecida, e bem anterior às dificuldades financeiras actuais. Mas foi uma opção claramente política, tomada e depois seguida pelos governos seguintes, até agora, e essa responsabilidade, como se disse, é de quem governa. Aos técnicos compete chamar a atenção para as consequências negativas das decisões políticas, para que os governantes possam ser confrontados com elas e tomar as atitudes que entenderem mais adequadas e que melhor sirvam o país, já que serão sempre os imputados responsáveis.

Para além disso, haverá, entretanto, que procurarmos todos colmatar as dificuldades encontradas e que se prevê que se agravem, nomeadamente neste campo da formação. Aqui os colégios da OM, nomeadamente o nosso, de Cirurgia Geral, deverão fazer um esforço muito grande de chamada de atenção e de exigência para que os requisitos para idoneidade sejam respeitados escrupulosamente, já que o não acontecer isso levará forçosamente a uma quebra no processo de treino dos nossos jovens especialistas. E esse esforço deverá também ir no sentido de ajudar à orientação dos internos, à sua preparação teórica e prática. Mais do que nunca essa intervenção será necessária, ao prever-se uma diminuição da qualidade de ensino de muitos Serviços. A colaboração de organizações científicas como a Sociedade Portuguesa de Cirurgia e os seus Capítulos, e outras Sociedades, deverá ser procurada e estimulada, com a realização de cursos teóricos e práticos, congressos, simpósios, onde os internos possam aprender, apresentar trabalhos, discuti-los, e discutir também a sua própria actividade profissional.

Vivemos um momento de grande preocupação e de indefinição a que teremos de responder pela positiva, fazendo o que está certo. Esperemos que os nossos políticos consigam fazer o mesmo.

In Revista Portuguesa de Cirurgia, Junho 2012

INTERNOS E INTERNATOS

Desde há mais de quatro milhares de anos que o ensino médico é feito utilizando o que chamamos método hipocrático, com os mais experientes transmitindo os seus conhecimentos pela prática aos menos experientes, que para isso os acompanham na sua actividade clínica diária. Na Grécia do “pai da Medicina”,  os discípulos  conviviam  diariamente com o mestre, viviam em casa dele, onde ele recebia e tratava os doentes, ajudavam-no nessa tarefa e assim iam absorvendo o que ele sabia e fazia, que iam integrando no seu próprio armamentário clínico, mais tarde eventual e desejavelmente modificado e melhorado com outras experiências e novos conhecimentos. E assim por diante. Falamos dum método de sucesso, tanto que ainda hoje o usamos.

O que é realmente bom é intemporal,  e, se é verdade  que a medicina sofreu mudanças notáveis, baseadas  em avanços  extraordinários no conhecimento da fisiologia e dos mecanismos fisiopatológicos, com meios diagnósticos e terapêuticos cada vez mais sofisticados e de cariz cientifico, a realidade é que o contacto com o doente, a sua história clínica, o seu exame físico, o seu acompanhamento clínico, mantêm-se um ponto fulcral da medicina, não substituíveis por qualquer desenvolvimento tecnológico presente ou futuro. Na verdade, a pergunta iniciada por Hipócrates, ”De que é que se queixa7”, aos doentes que a ele acorriam, foi, naqueles tempos tão longínquos, o início da medicina científica que continua a ser a nossa. Antes era a medicina mágica, e a religiosa, que, não tendo desparecido por completo, deixaram, no entanto, de se poder chamar “medicina”.

O ensino médico “hipocrático“ continua a ser praticado nos locais de trabalho, agora a vários níveis, pré-graduado, nos anos profissionalizantes dos cursos de medicina, e, sobretudo, pós-graduado, nos internatos médicos. Apesar da enorme facilidade de divulgação de conhecimentos e experiência que marcam já a nossa época, com meios escritos e audiovisuais extraordinários e em evolução constante, o contacto com os doentes, o seu estudo, a “arte” que a medicina é, só se conseguem ensinar, ou melhor, aprender, pela transmissão pessoal, pelo exemplo, pela prática acompanhada. Tal como vem sendo feito há séculos. E que deve continuar a ser fulcral na preparação dos médicos, acompanhado embora, naturalmente, pelos recursos didácticos extra ao nosso dispor, e cada vez mais. São dois aspectos da aprendizagem dum médico que não se podem substituir ou excluir um ao outro.

Os internatos médicos organizados surgiram no nosso País no início dos anos 70 do século XX, com o objectivo de estruturar e melhorar a preparação pós-graduada especializada. E constituíram sem dúvida um grande avanço nessa preparação, de que Portugal se deve orgulhar na medida em que, tendo sido um êxito, não foram copiados de ninguém, antes foram pioneiros. Os internos passaram a ser obrigatoriamente pagos pelo trabalho que realizam e através do qual vão aprendendo, precisa- mente para se poderem a ele dedicar, e a sua designação implica, tal como com os instruendos gregos antigos, a sua prolongada permanência nos locais de aprendizagem, como se lá vivessem... Isto com o fim de mais aprenderem se mais virem e praticarem, que é, aliás, o princípio de qualquer formação que se queira intensiva. Mas, a pouco e pouco, a estruturação dos internatos, com o cálculo do tempo tido como necessário para os instruendos adquirirem os conhecimentos e as competências necessárias para passarem a ser considerados especialistas, levou à sua funcionarização dentro das instituições de saúde onde trabalham, com um trabalho mínimo obrigatório a fazer e um horário a cumprir. E é nesse quadro que agora aprendem, fazendo e ajudando a fazer.

Embora funcionários pagos duma instituição, com um horário definido e regras contratuais, não deve ser esquecido, nem pela instituição “patroa” nem, sobretudo, por eles, que estão numa fase insubstituível, e irrepetível, da sua aprendizagem, que deve ser aproveitada ao máximo para aumentar e melhorar a sua preparação para a sua futura vida profissional. E quanto mais o conseguirem melhor para eles, para as instituições e para o país. E para os doentes, convém não esquecer... Que todos nós um dia seremos, se não morrermos antes...

É desta forma que neste Serviço os internos são encarados. O seu objectivo antes de mais é aprender, e para isso têm de trabalham A organização dos internatos implica diferentes graus de responsabilização, crescente (mimetizando um pouco o que foram as carreiras médicas), desde o ano comum aos diferentes anos da formação específica, para que no final do percurso possam já fazer o papel de especialistas, apoiados ainda, naturalmente, pelos especialistas, que participam, obrigatoriamente, na sua formação.

Tratando-se dum Serviço de Cirurgia Geral, é essa especialidade que é ensinada, aos internos próprios e aos internos doutras especialidades, estes no âmbito do que dentro dela pode ser uma mais-valia para sua própria. Incutindo em todos que é muito importante que um especialista seja do que for não perca a noção do “homem doente”, no seu conjunto, com queixas várias que se podem entrelaçar, ou confundir, em várias patologias, fragmentadas em várias especialidades, e que não podemos olimpicamente ignorar porque não são da nossa! Por outras palavras, um especialista, seja do que for, não pode deixar de ter cultura médica, não pode desprezar o que não é da sua especialidade, deixando o doente à mercê doutrem, de quem seja capaz de perceber o que não está bem e a que especialidade o deve encaminhar. É na Medicina que se aplica perfeitamente o aforismo “quem sabe só duma coisa, nem dela sabe”. É uma questão de cultura e de vistas mais largas. Que permitem avaliar melhor o pormenor.

Finalmente, uma coisa é cumprir os requisitos mínimos e terminar uma formação com aproveitamento, outra é empenhar-se numa matéria, aprofundá-la, contribuir para a melhoria do seu conhecimento por parte doutros, e para a evolução no seu estudo, ultrapassando largamente os objectivos a que se estava obrigado desde o início. Com certeza com esforço extra, muito para além do contratualizado. Que cada um faça o que pode, quer e consegue fazer, deixando a sua marca no Serviço, ou vindo inclusivamente a ficar nele. Mas que obtenha do seu trabalho e realizações uma satisfação profissional que o preencha do ponto de vista cientifico e emocional, e lhe permita ir mais além no seu percurso profissional e social, é o que este Serviço espera poder proporcionar ou ajudar a conseguir aos que dele vêm fazer parte, durante muito ou pouco tempo, mas com entusiasmo.

In Newsletter da Cirurgia C, Número 4, Dezembro de 2016

               REFLEXÕES DE UM CIRURGIÃO PASSADOS MAIS DE 30 ANOS

                                                          Parte II

Sempre quis ser cirurgião, e realizei esse desejo. A cirurgia geral que aprendi e tenho praticado tem sofrido, ao longo destes anos, progressos e outras alterações que talvez o não sejam,  e por isso merecem com certeza a reflexão de nós todos, cirurgiões gerais.

A maior alteração foi, sem dúvida, a introdução da via endoscópica, seja laparoscópica, toracoscópica, retroperitoneoscópica ou outra, e a sua relação de dependência com toda a tecnologia a ela ligada.  As intervenções cirúrgicas realizadas por essa via são exactamente as mesmas que as anteriormente executadas por via aberta, permitindo, no entanto, reduzir muito o grau do traumatismo cirúrgico, conseguindo-se uma alta muito mais precoce e um menor número de complicações, ao mesmo tempo que, nalguns casos, se tem uma visão significativamente mais precisa do campo operatório. Trabalhando num espaço fechado criado pela insuflação de gás, ou ajudados pela visão de perto fornecida pela câmara de videoscopia, vemos o que doutro modo não seria possível. E, utilizando instrumentos cirúrgicos cada vez mais elaborados, realizamos por uma abordagem mínima intervenções que, às vezes, através duma incisão extensa seriam muito mais difíceis e trabalhosas.

Há intervenções na cirurgia geral que são notavelmente mais fáceis pela via laparoscópica (como, por exemplo, a colecistectomia, a fundoplicatura gástrica, a apendicectomia), ou retroperitoneoscópica (como a ressecção suprarrenal), outras executadas com a mesma facilidade e outras ainda um pouco mais custosas mas lucrando o doente com o acesso mínimo. Nessas condições, é evidente que é a abordagem endoscópica que deve ser preferida, sempre que não houver contraindicações gerais ou locais que a devam afastar.

Pelo menor traumatismo e maior simplicidade de execução, depois de adquirido o know-how, a videoscopia veio mesmo permitir reabilitar algumas intervenções a caminho de serem pouco praticadas ou até abandonadas. É o caso da laqueação de perfurantes venosas insuficientes nas pernas, em doentes com insuficiência venosa crónica dos membros inferiores, tratamento com indicações indiscutíveis mas, pela dificuldade na localização exacta dessas veias, a ser substituído pela sua ablação transcutânea ecoguiada (por radiofrequência ou escleroterapia), também ela nada fácil, diga-se em abono da verdade, e que a abordagem cirúrgica endoscópica subapnevrótica torna muito fácil para o cirurgião, para além de estar naturalmente integrada na mesma intervenção que lhe vai permitir tratar as outras veias varicosas. E a simpaticectomia toracocervical, e a lombar. Esta continua a ser uma última hipótese em doentes com lesões ateroscleróticas isquémicas não revascularizáveis dos membros inferiores, com possibilidade de 60% de induzir melhoria clínica significativa sem ser, no entanto, possível prever o resultado em cada caso; por via endoscópica não é traumática, não é dolorosa, praticamente não tem complicações, permite a alta poucas horas depois, pode ser realizada em ambulatório e, feita no internamento do doente isquémico, não prolonga esse internamento. Passou, por isso, a valer a pena nos casos em que está indicada.

Curiosamente, a abordagem endoscópica levou por vezes a alterar os passos nas intervenções, por maior facilidade, e isso veio demonstrar que algumas regras classicamente mantidas para a sua realização afinal não deviam existir porque não se justificavam. Duas conclusões a extrair: é possível praticar a mesma boa cirurgião de modos diversos, que devem ser escolhidos de acordo com a regra da maior facilidade de execução em cada caso, e essa escolha é possível para os que detêm a experiência e os recursos técnicos cirúrgicos necessários.

É, portanto, uma via de acesso que devemos ter disponível e que deve ser utilizada quando indicada. Quando da sua divulgação entre nós, no início dos anos 90, apenas alguns centros tinham essa tecnologia, e só alguns cirurgiões a podiam, portanto, utilizar. Eram cirurgiões experientes, mas formados na abordagem aberta, pelo que tiveram de adquirir a postura técnica para vídeoscopia. Muitos conseguiram-no (pela prática e através de cursos de aprendizagem, primeiro mais básicos, depois mais elaborados, obtidos no estrangeiro ou dentro de portas, e que se foram disseminando pelo país), alguns não, tendo sido isso, até, causa declarada ou inconsciente de algumas reformas antecipadas. Hoje em dia é prática corrente, em muitas situações muito mais frequente que a via aberta, e o seu ensino já pode ser feito como anteriormente, pelo trabalho normal: ajudando, fazendo ajudado, fazendo, depois ensinando. O problema da aprendizagem põe-se hoje na cirurgia aberta, já que ela é muito menos vezes praticada e, portanto, as possibilidades de a aprender dessa forma se reduziram.

A evolução da tecnologia também veio permitir criar um conjunto de possibilidades de ensino da cirurgia, para além do seu exercício e da velha cirurgia experimental em animais. Há modelos para treino em cirurgia vídeoassistida e em suturas mecânicas, e há todo um conjunto de meios audiovisuais que nos podem fazem aprender a operar duma forma semelhante à dos pilotos de avião a pilotar antes de chegarem ao avião real. É claro que actualmente é muito mais fácil aprender cirurgia que há umas décadas atrás, com a variedade ampla de meios de aprendizagem de que dispomos. Sendo certo que a execução nos doentes tem de fazer parte integrante também dessa aprendizagem, esta não está tão dependente dela como estava antigamente. O conhecimento da anatomia, ter noção do conjunto da intervenção a praticar e de cada passo dela de per si, saber o que se pretende conseguir, as complicações a evitar, o que fazer para as corrigir, tudo isso se deve aprender antes de operar um doente. Mas sendo tudo isso muito importante, fundamental e inultrapassável é a clínica, são as indicações, a escolha e o momento da intervenção, o seguimento do seu resultado. Devemos continuar sempre a lembrar, e cada vez mais com a explosão da tecnologia que nos avassala, o aforismo que diz: “Bom cirurgião é o que sabe operar; melhor o que sabe quando operar; e melhor ainda o que sabe quando não operar”.

A tecnologia em vídeo aproveitada na vídeocirurgia teve múltiplas outras aplicações. Vivemos na época dos videojogos, cada vez mais realistas e sofisticados, e os nosso jovens cirurgiões pertencem à sua geração. Ao longo da sua juventude adquiriram com entusiasmo e persistência as habilidades e a visão ligadas à videoscopia, que, naturalmente, aplicam a esse tipo de abordagem cirúrgica. É mais um exemplo de aplicação translacional de habilidades e capacidades. O seu exercício pode ser excitante, e nalguns cirurgiões poderá levar à postura de querer fazer o maior número de pontos numa operação endoscópica... mesmo que o doente perca o jogo. Há que saber quando desistir, parar e converter para cirurgia aberta.

Outro aspecto crucial na evolução tecnológica foi a informatização de todo o processo clínico, e a possibilidade de ele acompanhar virtualmente o doente para onde ele vá. Muitas instituições em todo o país já foram capazes de a instalar de modo a, praticamente, fazer desaparecer o papel, facilitando o estudo, tratamento e seguimento dos doentes. Mas também aqui é preciso alertar para o perigo de nos focarmos exclusivamente nas virtudes da comunicação electrónica e nos esquecermos do doente real, da sua observação, de discutirmos, à sua cabeceira (na enfermaria, na sala de endoscopia ou de imagiologia), entre nós e com colegas doutras especialidades, multidisciplinarmente, sinais e sintomas, exames e estratégias, pensando colectivamente em soluções. Há que reverter a prática de certos hospitais em que os vários médicos envolvidos no tratamento dos doentes apenas comunicam por escrito, ainda nos velhos processos em papel ou já nos registos informatizados, aqui de modo ainda mais fácil por poder ser feita à distância (sem mesmo nunca verem o doente!). 

Em relação com a aprendizagem, hoje em dia alguns têm a ideia de que “só faz bem quem faz muito”, e que, portanto, para se fazer bem uma determinada intervenção há que fazê-la o maior número de vezes possível por unidade de tempo. Ora se é verdade que “a prática contribui para a perfeição”, alcançá-la não depende só do número de vezes que se repetem os mesmos gestos, como parece pensarem os que reduzem tudo a números. A rapidez com que se aprende cirurgia é individual, e está dependente, nomeadamente, para além das capacidades de cada um, da sua cultura médica e cirúrgica e da sua experiência prévia e também da concomitante. Naturalmente, um cirurgião que faça só uma intervenção cirúrgica, para manter a mão terá de a realizar muito mais vezes do que alguém para quem essa intervenção esteja incluída numa actividade cirúrgica intensa e variada. O que vai contra a orientação de se querer que os cirurgiões gerais desde o início da sua carreira se restrinjam a um determinado tipo de cirurgia, com abandono de todos os outros. Isso será amputá-los da possibilidade inestimável de adquirirem habilidades e recursos técnicos provenientes duma prática variada, e que os irão enriquecer indiscutivelmente como cirurgiões. Será condená-los a ser subespecialistas, e em cirurgia, também, “quem sabe só duma coisa nem disso sabe”. Para além de que o aspecto multifacetado dum profissional é sempre uma mais-valia e maior garantia de emprego. Outra coisa será, e desejável, o cirurgião experiente tornar-se superespecializado numa determinada matéria.

Se um motorista tirar a carta de pesados e for colocado de imediato em exclusividade numa carreira de autocarros com dez quilómetros de extensão, e passar dez anos a percorrê-la, ida e volta, vinte vezes ao dia, não haverá por certo quem conheça melhor esse percurso, e eu iria muito satisfeito com ele. Mas não o quereria a conduzir uma camioneta de excursão de Coimbra à Lousã ou, menos ainda, numa viagem a Paris.

Da cirurgia geral saíram várias especialidades cirúrgicas, mas isso aconteceu sempre por razões de maior especificidade na evolução da clínica médica relacionada com determinadas patologias, e em procedimentos diagnósticos ou terapêuticos específicos que foram surgindo em relação com essas patologias. Nunca nasceu nenhuma baseada apenas num determinado tipo de cirurgia, e com a justificação do número de intervenções realizadas por unidade de tempo. É natural que, num Serviço, determinadas intervenções menos frequentes sejam realizadas sobretudo por um ou dois cirurgiões, mas não de forma monopolista, excluindo todos os outros, e sempre enquadrados no conjunto do Serviço. Doutro modo a massa crítica para esse tipo de cirurgia reduzir-se-á a um ou dois... E, igualmente mau, o desinteresse forçado de todos os outros levará a que capacidades individuais possam ficar desaproveitadas, em proveito de alguns já estabelecidos mas eventualmente com menos capacidade. E o monopólio, com desaparecimento de competitividade ou emulação, é um factor de perda de qualidade.

Durante séculos a cirurgia foi de ressecção, excisando do corpo as partes doentes. Era uma atitude pouco elaborada, pode-se dizer, apesar de nalguns casos exigir grande maestria e conhecimentos anatómicos, e por isso os cirurgiões não recebiam da sociedade o mesmo respeito que os médicos. Era uma cirurgia mutiladora, anatómica, por oposição a uma mais recente, a que podemos chamar fisiológica: na qual se introduzem alterações na anatomia com o fim de recuperar uma função fisiológica desaparecida ou diminuída, ou de conseguir uma modificação no funcionamento do organismo. Tonou-se possível pelo conhecimento profundo dos mecanismos fisiológicos em causa, permitindo aos cirurgiões manipular as estruturas anatómicas de modo a reproduzi-los ou alterá-los. Exemplo disto é o tratamento cirúrgico do refluxo gastroesofágico e, mais recentemente, a cirurgia da obesidade. A avaliação pormenorizada e sistemática dos resultados das intervenções bariátricas permitiu perceber a sua influência directa no equilíbrio da diabetes mellitus (que não apenas pela redução ponderal), e vai, muito provavelmente, conduzir a mais conhecimentos na fisiopatologia daquela doença, bem como do nosso sistema endócrino e de outras perturbações do nosso metabolismo, para além da fisiologia do controlo do peso corporal. É de prever que num futuro próximo doenças como a diabetes e outras perturbações endócrinas afectando o metabolismo possam ser tratadas directamente pelo cirurgião, no que já se chama de cirurgia metabólica, numa evolução ao arrepio da habitual, que era de tratamento cirúrgico até haver tratamento médico.

Como reflexão final, é natural que algumas instituições se dediquem mais a uma determinada patologia, e assim se transformem em centros de referência, pela sua elevada diferenciação, pelos meios de que dispõem, e a colaboração directa, multidisciplinar, entre várias especialidades, pelos resultados conseguidos, pela ajuda e treino fornecidos a outros centros menos diferenciados, pelos trabalhos publicados e o contributo para o progresso nessa área. Os centros de referência para uma determinada cirurgia devem, assim, ganhar o direito a essa designação, e não ser-lhes outorgada pela benévola simpatia de alguém ou apenas por se restringirem a praticar essa cirurgia. E também aqui não deve ter lugar o monopólio, afastando todos os outros centros da cirurgia em causa. Porque o monopólio é, repito, factor de perda de qualidade: pela falta de emulação e competitividade, pela falta de oportunidades dadas a mais cirurgiões, por uma reduzida massa crítica a nível nacional, com apenas um punhado de especialistas a falar sempre do mesmo assunto da mesma maneira. Outra coisa é ter uma massa crítica maior, com uma hierarquização de competências e meios, permitindo tratar casos simples em centros menos diferenciados e os mais complicados em centros de maior diferenciação. Aproveitando-se assim toda a capacidade cirúrgica instalada por todo o território nacional, estimulando os cirurgiões de todo o país a serem cada vez melhores, tirando o máximo rendimento das condições existentes.

In Revista Portuguesa de Cirurgia, Março 2015

            REFLEXÕES DE UM CIRURGIÃO PASSADOS MAIS DE 30 ANOS

                                                            Parte I

Sempre quis ser cirurgião, e realizei esse desejo. Tive a sorte de nascer para a cirurgia geral ao mesmo tempo que nasciam para todo o país o Serviço Nacional de Saúde, as Carreiras Médicas e os Internatos Médicos. Os quatro fomos companheiros ao longo destes anos e não me agrada a ideia de podermos vir todos a desaparecer um dia ao mesmo tempo (Parte I destas Reflexões). A cirurgia geral que aprendi e tenho praticado tem sofrido, ao longo destes anos, progressos e outras alterações que talvez o não sejam, e por isso merece com certeza a reflexão de nós todos, cirurgiões gerais (Parte II).

Serviço Nacional de Saúde (SNS)

O SNS foi uma ideia nascida no Reino Unido e depois aplicada no nosso país com um êxito notável. De tal modo que foi sobrevivendo sob a governação dos vários partidos que, sozinhos ou em combinações várias, dela estiveram encarregados. A ideia era o Estado prestar cuidados de saúde a todos os cidadãos, como parte das suas funções e aplicação dos impostos recebidos. Por isso os meios para essa prestação foram a pouco e pouco espalhados por todo o território nacional, em zonas urbanas e rurais e independentemente da sua concentração populacional, na forma de centros de saúde para cuidados primários e hospitais para os secundários. Estes últimos foram hierarquizados em termos de diferenciação, partindo do princípio de que todos os doentes, vivessem onde vivessem, teriam um contacto rápido e fácil com um hospital, capaz de lhes resolver a maior parte dos problemas de saúde ou de os direccionar para outros se precisando de cuidados mais específicos ou diferenciados.

Estabeleceu-se por todo o país uma rede de hospitais estatais de boa qualidade, tratando os doentes que os hospitais das Misericórdias até aí não possuíam capacidade de tratar. E que tinham por isso de “ir para Lisboa” (ou para o Porto, ou para Coimbra, onde estavam os hospitais com os meios, ligados às Faculdades de Medicina e onde o ensino pré e pós-graduado era feito).

Houve, assim, que construir muitos e equipar adequadamente todos, também com recursos humanos, estes capazes de assegurar as funções que não eram mais as de canalizar doentes para os hospitais dos grande centros, antes fornecer uma medicina com a mesma qualidade em todo o território nacional.

Carreiras Médicas

Ao mesmo tempo desenvolveram-se as Carreiras Médicas, cujo embrião residiu nas carreiras médicas dos Hospitais Civis de Lisboa: as Carreiras Médicas Hospitalares desde logo estenderam os seus princípios gerais aos Cuidados de Saúde Primários, embora se tivessem sentido desde sempre diferenças, sobretudo pelo facto de o trabalho médico hospitalar ser necessariamente muito mais de equipa e interactivo.

Os quadros dos hospitais públicos foram preenchidos por especialistas com vários graus de diferenciação, estabelecidos por apreciação da sua actividade profissional, clínica e científica, e exames com provas públicas entre pares. O exame de entrada houve tempos em que era o mais difícil e exigente, e os graus conseguidos na sua carreira profissional hospitalar permitiam e obrigavam os médicos a um envolvimento e uma responsabilidade cada vez maiores na gestão dos Serviços e dos Hospitais.

Desse modo se espalharam por todos os hospitais do país cirurgiões competentes e motivados para trabalhar, aplicando as suas capacidades e conhecimentos,  em vez de ficarem a gravitar em torno dos hospitais centrais já preenchidos, ou de irem para o interior trabalhar nos hospitais das Misericórdias locais, realizando toda a vida apenas a cirurgia que as condições limitadas desse hospitais lhes permitiam fazer.  Aproximar cirurgiões e doentes em instalações de qualidade, com bons resultados, foi um avanço notável em termos de saúde.

Com o estabelecimento dessa actividade cirúrgica em todo o território nacional, incluindo os hospitais mais periféricos, foi possível, e natural, estender a todo o país a formação pós-graduada, com qualidade homogénea, aumentando de forma decisiva a capacidade para essa formação. O que, por sua vez, contribuiu também, e decisivamente, para a fixação de médicos nesses hospitais.

Internatos Médicos

Os Internatos Médicos, para formação pós-graduada até à especialização, foram organizados no nosso país de um modo que teve muito de original, e que incluiu aspectos mais tarde recomendados pelo Advisory Committe on Medical Training, da Comissão Europeia: remunerados, acompanhados por um orientador, com um currículo mínimo estabelecido e um programa de formação, avaliação contínua, com direitos e deveres legalmente estabelecidos, com o objectivo de criar as condições necessárias para uma boa formação, quer teórica quer prática.

Esta organização para ensino, a que os jovens médicos têm acesso por meio de um exame público nacional, veio substituir a especialização por convite dos directores dos Serviços (em geral acompanhando nos hospitais ligados às Faculdades de Medicina o convite para assistente), ou a formação chamada “voluntária”, feita a título de favor, sem programa específico e sem direito a qualquer remuneração pelo trabalho prestado nessa actividade, com tónica no exame final pela Ordem dos Médicos, no que antigamente se chamava “tirar a especialidade à Ordem”.

Na sequência directa dessa situação anterior, já depois de estabelecidos os internatos e com o seu acesso regulamentado mantiveram-se dois exames finais, pelo Ministério da Saúde e pela Ordem dos Médicos (na base de “o meu exame é melhor que o teu”...), até a titulação ser unificada, tal como se mantem hoje.

O trabalho dos internos é pago, mas as responsabilidades de que são encarregados devem estar de acordo com o seu ano de formação e os conhecimentos que entretanto adquiriram, reconhecidos pela sua avaliação contínua. Há uma relação óbvia com as carreiras na sua estruturação, ambos com formação progressiva avaliada continuadamente e com responsabilidades crescentes dela decorrentes. Das quais faz parte integrante e obrigatória a ajuda à formação e ao trabalho dos mais novos.

Entretanto

Entretanto, foram criados os hospitais empresa (EPE), ideia que até poderia ser boa no sentido de tornar mais ágil e responsável a gestão dessas instituições, concedendo a cada uma a possibilidade de se destacar das outras pelos resultados e pelo melhor aproveitamento das condições existentes. No entanto, a primeira consequência dessa empresarialização é que passou a dominar a gestão puramente administrativa dos hospitais, eclipsando a gestão clínica, e os médicos passaram a ser apenas técnicos a fazer serviço numa empresa dentro do plano definido pela hierarquia administrativa. Contratados para funções especificas e às vezes transitórias, por objectivos individuais ou ao molhe, a ideia de equipa a fazer escola aperfeiçoando-se dia a dia foi sendo substituída pela de uma máquina produtiva que interessa sobretudo manter o mais oleada possível. A empresarialização, reclamada como mecanismo de agilização e maior eficiência, redundou numa mais completa funcionarização dos médicos, agora até com horários ao minuto e relógios de ponto. Que discutem e reivindicam acima de tudo contratos, horários e remunerações.

Como cúmulo do triunfo da gestão administrativa, alguns colegas, em vez de lutarem pela primazia da gestão clínica a cargo dos médicos, com a ajuda administrativa julgada necessária, renderam-se a esta e também quiseram ter um curso rápido de administrador. E alguns até se desligaram da medicina por isso... É o caminho inverso do que faz falta.

É claro que os médicos tiveram de continuar a desempenhar funções de direcção técnica, mas por nomeação aleatória, já que a hierarquização pela competência traduzida na avaliação periódica entre pares esbateu-se por completo. Dito por outras palavras, as carreiras, se bem que nominalmente mantidas, deixaram de ter sentido. Os concursos dentro delas passaram a ser apenas uma espécie de subida de escalão remuneratório, apesar do esforço meritório de alguns Colégios para reservar pelo menos a direcção dos Serviços para os mais graduados dentro de cada Serviço. O que nem sempre se verifica, prevalecendo às vezes o critério discricionário “amigo” e todo poderoso da direcção do hospital.

Desvalorizadas as carreiras médicas, o esforço para nelas singrar necessariamente feneceu, isto é, o esforço pela maior diferenciação, no sentido de mais experiência, conhecimentos, trabalho produzido (e não de sub ou super-especialização, que serão alvo de reflexões futuras). Sendo certo, e valha-nos isso, que o brio e vontade de fazer melhor de muitos de entre nós compensarão essa falta de estímulo externo, continuará a faltar a avaliação independente  e comparativa dos resultados conseguidos, e com ela a possibilidade de se acreditar verdadeiramente na ascensão por mérito.

Quando da minha permanência profissional no Reino Unido, explicava eu a dada altura com algum orgulho que os concursos das carreiras no meu país, nomeadamente o de entrada no quadro do hospital, tinham um júri de maioria de fora do hospital, com o intuito de garantir isenção na avaliação. O comentário feito pelos ingleses presentes, “Então são os outros hospitais que escolhem a equipa do teu?”, abalou seriamente a minha visão nessa matéria.  

Os hospitais EPE vieram permitir a contratação directa de cirurgiões, de acordo com as necessidades de cada hospital. O desejo de contratar os melhores deve estar sempre presente em qualquer empresa, e deve poder ser posto em prática. Surgem de vez em quando concursos para admissão nos hospitais, mas que, na ausência de exames com provas públicas, funcionam como entrevistas de emprego, com a subjectividade que as mesmas necessariamente têm. Mesmo quando se lhes quer imprimir alguma objectividade, como nos concursos fechados para recém-especializados, cujo “background” profissional não extravasa o internato de formação específica terminado e avaliado imediatamente antes, vemos resultados extraordinários como o de em seis candidatos o pior classificado no internato ficar em primeiro lugar, ou em quatro o melhor ficar em último. Pensando bem, no Reino Unido é uma coisa, por cá é outra...

Uma alteração positiva foi a possibilidade de os especialistas poderem mudar de local de trabalho com facilidade, por interesse próprio ou das instituições, sem se ter de passar por concursos morosos e que tornavam essas mudanças muito difíceis. Com o aspecto negativo de a gestão administrativa, por vezes demasiado enfeudada a políticas locais ou partidárias, aí ter passado a poder interferir, inclusivamente usando essas mudanças como arma de pressão política eleitoral. E fala-se de os hospitais passarem de novo para as Misericórdias, ou para as Câmaras Municipais, tornando-os ainda mais locais e dependentes da política local e das suas tricas.

O Estado continua a providenciar cuidados de saúde à população, mas sob a tónica do corte nas despesas com a saúde e com os funcionários públicos. E essa tónica tem sobretudo justificado duas acções: por um lado, encerramento de algumas instituições, fusão de hospitais e concentração de Serviços; por outro, pagamento a instituições privadas da função de tratar doentes públicos. Isto levou ao aparecimento nos grandes centros urbanos de muitos hospitais privados, e clínicas, com boas condições técnicas, muitos deles já com um quadro de especialistas próprio mas que dão também trabalho a muitos outros a trabalhar nos hospitais públicos.

A redução de capacidade instalada no público, a par duma provável emigração forçada de especialistas que entretanto se vão formando arrastará consigo uma redução significativa da capacidade formativa. E esta virá agravar o resultado do desaparecimento das carreiras hospitalares, que eram um estímulo fundamental para a formação. Com a agravante ainda de os especialistas das instituições privadas, no momento, provirem todos dos hospitais públicos.  Há sempre a possibilidade de se vir um dia a assistir a uma mudança de paradigma na formação médica pós-graduada em Portugal, com envolvimento significativo da medicina privada, mas por agora, tendo sido os internatos médicos construídos lado a lado com as carreiras, a derrocada destas é de temer que acabe por levar aqueles a ruir também.  

Como última destas reflexões, uma preocupação, em termos de saúde pública nacional, com a concentração obrigatória que se anuncia de tudo o que seja patologias mais complexas e meios técnicos e humanos mais diferenciados nos grandes centros urbanos, quer no público quer no privado. Essa concentração poderá levar a uma nova desertificação de todo o interior em termos de cirurgiões diferenciados, capazes, ambiciosos do ponto de vista profissional, que mais uma vez irão gravitar nesses grandes centros, embora agora com a possibilidade de trabalhar nas instituições de saúde privadas entretanto instaladas, pelo menos nas que quiserem investir em cirurgia diferenciada com a qualidade necessDesse modo os doentes do interior vestir em grande cirurgia mais diferenciadis uma vez ir levs condiç meu paabalo,ária. Desse modo os doentes do interior de novo terão de “ir para Lisboa”... E a capacidade formativa pós-graduada voltará progressivamente a circunscrever-se aos grandes hospitais (tornados entretanto ainda maiores). É, de certo modo, o caminho inverso do que se percorreu nestes últimos trinta anos. Apesar de isso, ao fim e ao cabo, acompanhar tudo o que tem levado a concentrar a população e os meios nos nossos grandes centros populacionais, com desertificação da periferia (o que é, aliás, característico de qualquer país pobre e com dificuldades sociais), não creio que seja um modelo a desejar para o futuro. Esta é uma questão de bom senso e de não ignorar o que previamente deu bom resultado.

In Revista Portuguesa de Cirurgia, Dezembro 2014

           DANOS COLATERAIS E FORMAÇÃO PÓS-GRADUAÇÃO

Para a Semana do Médico Interno do CHC

Durante 30 anos as Carreiras Médicas funcionaram, e o Serviço Nacional de Saúde e a Formação Médica Pós-Graduada, de que elas constituíam a base e o suporte, também. A saúde portuguesa era globalmente considerada uma das melhores do mundo, e ao nível dos internatos médicos demos passos altamente positivos, elogiados e copiados pelos nossos parceiros na Europa. Há cerca de 2 anos os nossos governantes modificaram a gestão da saúde em Portugal, e das instituições públicas nessa área, e tudo isso se alterou. 

As carreiras – idealizadas a partir das carreiras dos Hospitais Civis de Lisboa - assentavam numa progressão por competências, conhecimentos e trabalho realizado avaliados em concursos públicos sucessivos, que iam permitindo a cada um, se aprovado em valor absoluto e relativo, subir na hierarquia técnica, de chefia e de responsabilidade. Eram um estímulo para todos, e uma maneira objectiva e sindicável de seleccionar os mais capazes e mais aptos, ao mesmo tempo que levava necessariamente a manter uma formação contínua sempre presente e eficaz, em todo o país e em todos os hospitais, homogeneamente. Os internatos médicos – durante algum tempo considerados mesmo o início das carreiras – constituíam um tirocínio para nelas entrar, baseados também numa progressão apoiada por conhecimentos, competências e trabalho feito examinados anualmente em cada Serviço. As carreiras eram, assim, a continuação natural dos internatos.

A lei de gestão da saúde, e hospitalar em particular, mudou, por razões puramente administrativas, fossem elas quais fossem. Mudou brusca e drasticamente, atropelando outros aspectos da organização hospitalar, nomeadamente as carreiras médicas. Na realidade, esses aspectos não parece terem sido acautelados, ou equacionados, ou, se o foram, não se percebe qual foi a verdadeira intenção nesse campo. Poder-se-á perguntar: mas a parte administrativa ao menos melhorou? A gestão economico-financeira equilibrou-se? Gasta-se menos agora e com melhores resultados? A verdade é que a mudança foi violenta, como uma bomba lançada no meio duma cidade, e provocou alterações negativas, estragos, em áreas que não era para serem atingidas, tal como os famosos efeitos colaterais na guerra moderna, feita à distância apertando botões, sem se conhecerem na realidade as zonas atacadas e destruídas, a não ser por relatórios e mapas.  

As carreiras perderam o sentido. Os médicos agora contratados já não entram nelas, os antigos vão fazendo concursos porque a isso têm direito legal, que não lhes pode ser negado, mas tal só serve para receberem mais dinheiro do hospital. Não têm qualquer repercussão nas funções, na responsabilidade, na chefia, na direcção. Instalou-se uma desierarquização total, e os responsáveis pela gestão dos Serviços e Departamentos e, portanto, pela formação pós-graduação e contínua, deixaram de ser necessariamente os mais diferenciados e com mais provas dadas. Qualquer um pode ser. O ministério da saúde reforça esta atitude ao nomear presidente de júri final de internato um Assistente Hospitalar quando no mesmo júri há Chefes de Serviço. É evidente já a desincentivação dos especialistas mais jovens, começando a recusar-se a integrar esses júris – interessa muito mais mostrar serviço prático no hospital. A um passo de deixarem de se preocupar com a formação dos internos – para quê?  Para quê subir na carreira, se o director não precisou disso? E os vários responsáveis também não?

É uma degradação progressiva que se antevê. Que muitos já anteviam. Que leva a que todos agora – Ministério, Sindicatos, Ordem – procurem fazer ressurgir as Carreiras Médicas, já que a sua inactivação coloca em perigo a formação dos internos e o próprio Serviço Nacional de Saúde. Mas elas foram destruídas acidentalmente, ou incidentalmente, por uma legislação administrativa pouco pensada. Fazê-las ressurgir agora, com todas as suas potencialidades mas nesse contexto, não vai ser obra fácil. Terão de ser adaptadas, o que as levará eventualmente a ficar descaracterizadas. Ou então o seu envolvimento administrativo-legal terá de sofrer uma adaptação, para as deixar viver de novo em toda a sua pujança.

A adaptabilidade é uma condição indiscutível de sobrevivência, como dizia Darwin, mas o que tornou a espécie humana na triunfadora da nossa criação foi a capacidade de adaptação activa, isto é, o ser capaz de modificar profundamente o meio ambiente de maneira a adaptá-lo às nossas conveniências e modo de viver. Esta adaptação, própria dos animais superiores, depende da inteligência e da competência, que são características individuais, e não de grupo – uns indivíduos têm-nas, outros não. E são os que as possuem que levam à evolução do conjunto, que fazem, como diz o poema, “o mundo pular e avançar, como bola colorida”. Parafraseando alguém, “há homens e mulheres que lutam toda a vida por algo em que acreditam, e esses são os que interessam”. A adaptação passiva, acrítica, ter-nos ia feito sobreviver como os crocodilos, os lagartos, os gorilas e outros bichos que tais, vivendo agora como viviam há milhões de anos.

Creio que tudo acabará por entrar no bom caminho, mais tarde ou mais cedo, com a colaboração e o envolvimento de todos, sobretudo dos mais novos, a quem o futuro pertence. E que não devem esquecer que esse futuro já começou. É esta mensagem de esperança e de luta que lhes quero deixar, em tempo de mais uma das Semanas do Médico Interno do CHC, que tive o prazer de iniciar em 1993, enquanto Director do Internato Médico do Centro Hospitalar de Coimbra.

Março 2009, in Farpas pela nossa Saúde, MinervaCoimbra, Julho 2009

sábado, 14 de novembro de 2020

                                      MATERNIDADE NOVA EM COIMBRA

Na sequência do anúncio da decisão da ministra da saúde sobre a localização que quer para a Maternidade nova em Coimbra, sobre o HUC, para substituir as duas que existem, viu-se que havia quem pensasse que o encerramento do Hospital dos Covões por ordem de quem controla o CHUC era um facto consumado. Ficando por isso só um Hospital em Coimbra, o HUC, que não se basta a si próprio, que precisa de atravessar a ponte para pedir ajuda ao outro que não é, para onde manda os doentes que não consegue ou não quer tratar. E é esse Hospital que queria mais duas maternidades em cima? Para mandar mais doentes depois para o que não se quer que seja hospital?? E há quem diga isto com um ar sério? E se apresentem “estudos” que o justificam?! Há quem não tenha vergonha na cara?? Nem bom senso?  Vá que bom senso e inteligência pelos vistos existem na cidade, e em quem a gere e quem colabora na sua gestão...

Muita “distracção”

gente que anda distraída do que se passa na cidade, e ignora as manifestações na rua (cinco), as petições à Assembleia da República (duas) para libertar os Covões de quem quer destruir o Hospital (transformando-o num anexo do HUC, mas sem o qual este não consegue viver!) e com ele a Saúde em Coimbra, os anseios de quem quer ser tratado nos Covões, e não no HUC, e de quem se queixa da Saúde em Coimbra tal como está, o pensar de quase todos os políticos que representam a cidade, e dos que a gerem... O facto de os doentes com Covid-19 estarem a ser tratados no tal “anexo do HUC”…  É muita ignorância!... Ou muito desprezo por toda esta gente!... Em nome dalguns funcionários nomeados para uma administração, a maior parte dos quais não conhece realmente um dos hospitais, e alguns nenhum dos dois!!!

A solução é fácil e rápida

A solução é repor no Hospital dos Covões o pessoal e as valências que de lá foram retirados e amontoados no HUC, sem qualquer aumento de produtividade deste e fazendo com que não se baste a si próprio, estando dependente do “anexo” do outro lado do rio.

Uma vez isso feito - muito simples e rápido de fazer - o Hospital dos Covões estará refeito como Hospital Geral Central, e poderá dar o apoio que sempre deu a uma Maternidade. Esta construída no local certo em Coimbra, num polo de saúde, com bom espaço, saudável, desafogado, sossegado, de fácil acesso e estacionamento. E sem ter de ter um heliporto no telhado!!!

Por outro lado, o outro Hospital, o HUC, poderá voltar a funcionar com normalidade, sem os seus doentes e profissionais terem de estar constantemente a atravessar a ponte para irem aos Covões !!

Esta é A solução! Tão fácil que toda a gente vê, menos meia dúzia de coimbrinhas de Celas que não querem ver... porque têm o atávico preconceito que Coimbra é o burgo à volta da Universidade e o resto, o que vão perdendo de vista, é paisagem!! E junto com eles há alguns outros, poucos... por razões particulares menos básicas...

Mas com certeza que a cidade será mais do que esta meia dúzia quer que seja! Espera-se!