sexta-feira, 27 de novembro de 2020

INTERNOS E INTERNATOS

Desde há mais de quatro milhares de anos que o ensino médico é feito utilizando o que chamamos método hipocrático, com os mais experientes transmitindo os seus conhecimentos pela prática aos menos experientes, que para isso os acompanham na sua actividade clínica diária. Na Grécia do “pai da Medicina”,  os discípulos  conviviam  diariamente com o mestre, viviam em casa dele, onde ele recebia e tratava os doentes, ajudavam-no nessa tarefa e assim iam absorvendo o que ele sabia e fazia, que iam integrando no seu próprio armamentário clínico, mais tarde eventual e desejavelmente modificado e melhorado com outras experiências e novos conhecimentos. E assim por diante. Falamos dum método de sucesso, tanto que ainda hoje o usamos.

O que é realmente bom é intemporal,  e, se é verdade  que a medicina sofreu mudanças notáveis, baseadas  em avanços  extraordinários no conhecimento da fisiologia e dos mecanismos fisiopatológicos, com meios diagnósticos e terapêuticos cada vez mais sofisticados e de cariz cientifico, a realidade é que o contacto com o doente, a sua história clínica, o seu exame físico, o seu acompanhamento clínico, mantêm-se um ponto fulcral da medicina, não substituíveis por qualquer desenvolvimento tecnológico presente ou futuro. Na verdade, a pergunta iniciada por Hipócrates, ”De que é que se queixa7”, aos doentes que a ele acorriam, foi, naqueles tempos tão longínquos, o início da medicina científica que continua a ser a nossa. Antes era a medicina mágica, e a religiosa, que, não tendo desparecido por completo, deixaram, no entanto, de se poder chamar “medicina”.

O ensino médico “hipocrático“ continua a ser praticado nos locais de trabalho, agora a vários níveis, pré-graduado, nos anos profissionalizantes dos cursos de medicina, e, sobretudo, pós-graduado, nos internatos médicos. Apesar da enorme facilidade de divulgação de conhecimentos e experiência que marcam já a nossa época, com meios escritos e audiovisuais extraordinários e em evolução constante, o contacto com os doentes, o seu estudo, a “arte” que a medicina é, só se conseguem ensinar, ou melhor, aprender, pela transmissão pessoal, pelo exemplo, pela prática acompanhada. Tal como vem sendo feito há séculos. E que deve continuar a ser fulcral na preparação dos médicos, acompanhado embora, naturalmente, pelos recursos didácticos extra ao nosso dispor, e cada vez mais. São dois aspectos da aprendizagem dum médico que não se podem substituir ou excluir um ao outro.

Os internatos médicos organizados surgiram no nosso País no início dos anos 70 do século XX, com o objectivo de estruturar e melhorar a preparação pós-graduada especializada. E constituíram sem dúvida um grande avanço nessa preparação, de que Portugal se deve orgulhar na medida em que, tendo sido um êxito, não foram copiados de ninguém, antes foram pioneiros. Os internos passaram a ser obrigatoriamente pagos pelo trabalho que realizam e através do qual vão aprendendo, precisa- mente para se poderem a ele dedicar, e a sua designação implica, tal como com os instruendos gregos antigos, a sua prolongada permanência nos locais de aprendizagem, como se lá vivessem... Isto com o fim de mais aprenderem se mais virem e praticarem, que é, aliás, o princípio de qualquer formação que se queira intensiva. Mas, a pouco e pouco, a estruturação dos internatos, com o cálculo do tempo tido como necessário para os instruendos adquirirem os conhecimentos e as competências necessárias para passarem a ser considerados especialistas, levou à sua funcionarização dentro das instituições de saúde onde trabalham, com um trabalho mínimo obrigatório a fazer e um horário a cumprir. E é nesse quadro que agora aprendem, fazendo e ajudando a fazer.

Embora funcionários pagos duma instituição, com um horário definido e regras contratuais, não deve ser esquecido, nem pela instituição “patroa” nem, sobretudo, por eles, que estão numa fase insubstituível, e irrepetível, da sua aprendizagem, que deve ser aproveitada ao máximo para aumentar e melhorar a sua preparação para a sua futura vida profissional. E quanto mais o conseguirem melhor para eles, para as instituições e para o país. E para os doentes, convém não esquecer... Que todos nós um dia seremos, se não morrermos antes...

É desta forma que neste Serviço os internos são encarados. O seu objectivo antes de mais é aprender, e para isso têm de trabalham A organização dos internatos implica diferentes graus de responsabilização, crescente (mimetizando um pouco o que foram as carreiras médicas), desde o ano comum aos diferentes anos da formação específica, para que no final do percurso possam já fazer o papel de especialistas, apoiados ainda, naturalmente, pelos especialistas, que participam, obrigatoriamente, na sua formação.

Tratando-se dum Serviço de Cirurgia Geral, é essa especialidade que é ensinada, aos internos próprios e aos internos doutras especialidades, estes no âmbito do que dentro dela pode ser uma mais-valia para sua própria. Incutindo em todos que é muito importante que um especialista seja do que for não perca a noção do “homem doente”, no seu conjunto, com queixas várias que se podem entrelaçar, ou confundir, em várias patologias, fragmentadas em várias especialidades, e que não podemos olimpicamente ignorar porque não são da nossa! Por outras palavras, um especialista, seja do que for, não pode deixar de ter cultura médica, não pode desprezar o que não é da sua especialidade, deixando o doente à mercê doutrem, de quem seja capaz de perceber o que não está bem e a que especialidade o deve encaminhar. É na Medicina que se aplica perfeitamente o aforismo “quem sabe só duma coisa, nem dela sabe”. É uma questão de cultura e de vistas mais largas. Que permitem avaliar melhor o pormenor.

Finalmente, uma coisa é cumprir os requisitos mínimos e terminar uma formação com aproveitamento, outra é empenhar-se numa matéria, aprofundá-la, contribuir para a melhoria do seu conhecimento por parte doutros, e para a evolução no seu estudo, ultrapassando largamente os objectivos a que se estava obrigado desde o início. Com certeza com esforço extra, muito para além do contratualizado. Que cada um faça o que pode, quer e consegue fazer, deixando a sua marca no Serviço, ou vindo inclusivamente a ficar nele. Mas que obtenha do seu trabalho e realizações uma satisfação profissional que o preencha do ponto de vista cientifico e emocional, e lhe permita ir mais além no seu percurso profissional e social, é o que este Serviço espera poder proporcionar ou ajudar a conseguir aos que dele vêm fazer parte, durante muito ou pouco tempo, mas com entusiasmo.

In Newsletter da Cirurgia C, Número 4, Dezembro de 2016

Sem comentários:

Enviar um comentário