INTERNOS E INTERNATOS
Desde há mais de quatro milhares
de anos que o ensino médico é feito utilizando o que chamamos método hipocrático,
com os mais experientes transmitindo os seus conhecimentos pela prática aos
menos experientes, que para isso os acompanham na sua actividade clínica
diária. Na Grécia do “pai da Medicina”,
os discípulos conviviam diariamente com o mestre, viviam em casa
dele, onde ele recebia e tratava os doentes, ajudavam-no nessa tarefa e assim
iam absorvendo o que ele sabia e fazia, que iam integrando no seu próprio
armamentário clínico, mais tarde eventual e desejavelmente modificado e
melhorado com outras experiências e novos conhecimentos. E assim por diante. Falamos
dum método de sucesso, tanto que ainda hoje o usamos.
O que é realmente bom é
intemporal, e, se é verdade que a medicina sofreu mudanças notáveis,
baseadas em avanços extraordinários no conhecimento da fisiologia
e dos mecanismos fisiopatológicos, com meios diagnósticos e terapêuticos cada
vez mais sofisticados e de cariz cientifico, a realidade é que o contacto com o
doente, a sua história clínica, o seu exame físico, o seu acompanhamento
clínico, mantêm-se um ponto fulcral da medicina, não substituíveis por qualquer
desenvolvimento tecnológico presente ou futuro. Na verdade, a pergunta iniciada
por Hipócrates, ”De que é que se queixa7”, aos doentes que a ele acorriam, foi,
naqueles tempos tão longínquos, o início da medicina científica que continua a
ser a nossa. Antes era a medicina mágica, e a religiosa, que, não tendo desparecido por
completo, deixaram, no entanto, de se poder chamar “medicina”.
O ensino médico “hipocrático“ continua a ser praticado nos locais de
trabalho, agora a vários níveis, pré-graduado, nos anos profissionalizantes dos
cursos de medicina, e, sobretudo, pós-graduado, nos internatos médicos. Apesar
da enorme facilidade de divulgação de conhecimentos e experiência que marcam já
a nossa época, com meios escritos e audiovisuais extraordinários e em evolução
constante, o contacto com os doentes, o seu estudo, a “arte” que a medicina é,
só se conseguem ensinar, ou melhor, aprender, pela transmissão pessoal, pelo
exemplo, pela prática acompanhada. Tal como vem sendo feito há séculos. E que
deve continuar a ser fulcral na preparação dos médicos, acompanhado embora,
naturalmente, pelos recursos didácticos extra ao nosso dispor, e cada vez mais.
São dois aspectos da aprendizagem dum médico que não se podem substituir ou
excluir um ao outro.
Os internatos médicos organizados surgiram no nosso País no início dos anos
70 do século XX, com o objectivo de estruturar e melhorar a preparação pós-graduada
especializada. E constituíram sem dúvida um grande avanço nessa preparação, de
que Portugal se deve orgulhar na medida em que, tendo sido um êxito, não foram
copiados de ninguém, antes foram pioneiros. Os internos passaram a ser
obrigatoriamente pagos pelo trabalho que realizam e através do qual vão
aprendendo, precisa- mente para se poderem a ele dedicar, e a sua designação
implica, tal como com os instruendos gregos antigos, a sua prolongada permanência
nos locais de aprendizagem, como se lá vivessem... Isto com o fim de mais
aprenderem se mais virem e praticarem, que é, aliás, o princípio de qualquer
formação que se queira intensiva. Mas, a pouco e pouco, a estruturação dos
internatos, com o cálculo do tempo tido como necessário para os instruendos
adquirirem os conhecimentos e as competências necessárias para passarem a ser
considerados especialistas, levou à sua funcionarização dentro das instituições
de saúde onde trabalham, com um trabalho mínimo obrigatório a fazer e um horário
a cumprir. E é nesse quadro que agora aprendem, fazendo e ajudando a fazer.
Embora funcionários pagos duma instituição, com um horário definido e
regras contratuais, não deve ser esquecido, nem pela instituição “patroa” nem,
sobretudo, por eles, que estão numa fase insubstituível, e irrepetível, da sua
aprendizagem, que deve ser aproveitada ao máximo para aumentar e melhorar a sua
preparação para a sua futura vida profissional. E quanto mais o conseguirem melhor
para eles, para as instituições e para o país. E para os doentes, convém não esquecer...
Que todos nós um dia seremos, se não morrermos antes...
É desta forma que neste Serviço os internos são encarados. O seu objectivo
antes de mais é aprender, e para isso têm de trabalham A organização dos
internatos implica diferentes graus de responsabilização, crescente
(mimetizando um pouco o que foram as carreiras médicas), desde o ano comum aos
diferentes anos da formação específica, para que no final do percurso possam já
fazer o papel de especialistas, apoiados ainda, naturalmente, pelos especialistas,
que participam, obrigatoriamente, na sua formação.
Tratando-se dum Serviço de Cirurgia Geral, é essa especialidade que é
ensinada, aos internos próprios e aos internos doutras especialidades, estes no
âmbito do que dentro dela pode ser uma mais-valia para sua própria. Incutindo
em todos que é muito importante que um especialista seja do que for não perca a
noção do “homem doente”, no seu conjunto, com queixas várias que se podem
entrelaçar, ou confundir, em várias patologias, fragmentadas em várias especialidades,
e que não podemos olimpicamente ignorar porque não são da nossa! Por outras
palavras, um especialista, seja do que for, não pode deixar de ter cultura
médica, não pode desprezar o que não é da sua especialidade, deixando o doente
à mercê doutrem, de quem seja capaz de perceber o que não está bem e a que
especialidade o deve encaminhar. É na Medicina que se aplica perfeitamente o aforismo
“quem sabe só duma coisa, nem dela sabe”. É uma questão de cultura e de vistas
mais largas. Que permitem avaliar melhor o pormenor.
Finalmente, uma coisa é cumprir os requisitos mínimos e terminar uma
formação com aproveitamento, outra é empenhar-se numa matéria, aprofundá-la, contribuir
para a melhoria do seu conhecimento por parte doutros, e para a evolução no seu
estudo, ultrapassando largamente os objectivos a que se estava obrigado desde o
início. Com certeza com esforço extra, muito para além do contratualizado. Que cada
um faça o que pode, quer e consegue fazer, deixando a sua marca no Serviço, ou
vindo inclusivamente a ficar nele. Mas que obtenha do seu trabalho e
realizações uma satisfação profissional que o preencha do ponto de vista
cientifico e emocional, e lhe permita ir mais além no seu percurso profissional
e social, é o que este Serviço espera poder proporcionar ou ajudar a conseguir
aos que dele vêm fazer parte, durante muito ou pouco tempo, mas com entusiasmo.
In Newsletter da Cirurgia C, Número 4,
Dezembro de 2016
Sem comentários:
Enviar um comentário