sexta-feira, 27 de novembro de 2020

           DANOS COLATERAIS E FORMAÇÃO PÓS-GRADUAÇÃO

Para a Semana do Médico Interno do CHC

Durante 30 anos as Carreiras Médicas funcionaram, e o Serviço Nacional de Saúde e a Formação Médica Pós-Graduada, de que elas constituíam a base e o suporte, também. A saúde portuguesa era globalmente considerada uma das melhores do mundo, e ao nível dos internatos médicos demos passos altamente positivos, elogiados e copiados pelos nossos parceiros na Europa. Há cerca de 2 anos os nossos governantes modificaram a gestão da saúde em Portugal, e das instituições públicas nessa área, e tudo isso se alterou. 

As carreiras – idealizadas a partir das carreiras dos Hospitais Civis de Lisboa - assentavam numa progressão por competências, conhecimentos e trabalho realizado avaliados em concursos públicos sucessivos, que iam permitindo a cada um, se aprovado em valor absoluto e relativo, subir na hierarquia técnica, de chefia e de responsabilidade. Eram um estímulo para todos, e uma maneira objectiva e sindicável de seleccionar os mais capazes e mais aptos, ao mesmo tempo que levava necessariamente a manter uma formação contínua sempre presente e eficaz, em todo o país e em todos os hospitais, homogeneamente. Os internatos médicos – durante algum tempo considerados mesmo o início das carreiras – constituíam um tirocínio para nelas entrar, baseados também numa progressão apoiada por conhecimentos, competências e trabalho feito examinados anualmente em cada Serviço. As carreiras eram, assim, a continuação natural dos internatos.

A lei de gestão da saúde, e hospitalar em particular, mudou, por razões puramente administrativas, fossem elas quais fossem. Mudou brusca e drasticamente, atropelando outros aspectos da organização hospitalar, nomeadamente as carreiras médicas. Na realidade, esses aspectos não parece terem sido acautelados, ou equacionados, ou, se o foram, não se percebe qual foi a verdadeira intenção nesse campo. Poder-se-á perguntar: mas a parte administrativa ao menos melhorou? A gestão economico-financeira equilibrou-se? Gasta-se menos agora e com melhores resultados? A verdade é que a mudança foi violenta, como uma bomba lançada no meio duma cidade, e provocou alterações negativas, estragos, em áreas que não era para serem atingidas, tal como os famosos efeitos colaterais na guerra moderna, feita à distância apertando botões, sem se conhecerem na realidade as zonas atacadas e destruídas, a não ser por relatórios e mapas.  

As carreiras perderam o sentido. Os médicos agora contratados já não entram nelas, os antigos vão fazendo concursos porque a isso têm direito legal, que não lhes pode ser negado, mas tal só serve para receberem mais dinheiro do hospital. Não têm qualquer repercussão nas funções, na responsabilidade, na chefia, na direcção. Instalou-se uma desierarquização total, e os responsáveis pela gestão dos Serviços e Departamentos e, portanto, pela formação pós-graduação e contínua, deixaram de ser necessariamente os mais diferenciados e com mais provas dadas. Qualquer um pode ser. O ministério da saúde reforça esta atitude ao nomear presidente de júri final de internato um Assistente Hospitalar quando no mesmo júri há Chefes de Serviço. É evidente já a desincentivação dos especialistas mais jovens, começando a recusar-se a integrar esses júris – interessa muito mais mostrar serviço prático no hospital. A um passo de deixarem de se preocupar com a formação dos internos – para quê?  Para quê subir na carreira, se o director não precisou disso? E os vários responsáveis também não?

É uma degradação progressiva que se antevê. Que muitos já anteviam. Que leva a que todos agora – Ministério, Sindicatos, Ordem – procurem fazer ressurgir as Carreiras Médicas, já que a sua inactivação coloca em perigo a formação dos internos e o próprio Serviço Nacional de Saúde. Mas elas foram destruídas acidentalmente, ou incidentalmente, por uma legislação administrativa pouco pensada. Fazê-las ressurgir agora, com todas as suas potencialidades mas nesse contexto, não vai ser obra fácil. Terão de ser adaptadas, o que as levará eventualmente a ficar descaracterizadas. Ou então o seu envolvimento administrativo-legal terá de sofrer uma adaptação, para as deixar viver de novo em toda a sua pujança.

A adaptabilidade é uma condição indiscutível de sobrevivência, como dizia Darwin, mas o que tornou a espécie humana na triunfadora da nossa criação foi a capacidade de adaptação activa, isto é, o ser capaz de modificar profundamente o meio ambiente de maneira a adaptá-lo às nossas conveniências e modo de viver. Esta adaptação, própria dos animais superiores, depende da inteligência e da competência, que são características individuais, e não de grupo – uns indivíduos têm-nas, outros não. E são os que as possuem que levam à evolução do conjunto, que fazem, como diz o poema, “o mundo pular e avançar, como bola colorida”. Parafraseando alguém, “há homens e mulheres que lutam toda a vida por algo em que acreditam, e esses são os que interessam”. A adaptação passiva, acrítica, ter-nos ia feito sobreviver como os crocodilos, os lagartos, os gorilas e outros bichos que tais, vivendo agora como viviam há milhões de anos.

Creio que tudo acabará por entrar no bom caminho, mais tarde ou mais cedo, com a colaboração e o envolvimento de todos, sobretudo dos mais novos, a quem o futuro pertence. E que não devem esquecer que esse futuro já começou. É esta mensagem de esperança e de luta que lhes quero deixar, em tempo de mais uma das Semanas do Médico Interno do CHC, que tive o prazer de iniciar em 1993, enquanto Director do Internato Médico do Centro Hospitalar de Coimbra.

Março 2009, in Farpas pela nossa Saúde, MinervaCoimbra, Julho 2009

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