domingo, 31 de maio de 2020

UM CIRURGIÃO, AS CRIANÇAS E AS MATERNIDADES

Fui aluno em Obstetrícia do Prof. Albertino Barros, regente da Cadeira, e do Prof. Mário Mendes, do qual tantos anos depois vim a ser companheiro em Rotary. Tínhamos aulas no que agora é o edifício da Administração Regional de Saúde do Centro, e que na altura dava pelo nome de Maternidade Daniel de Matos. Longe do Hospital da Universidade, que nunca teve Obstetrícia como Serviço nele incluído, porque na altura, e como aconteceu com a Maternidade Bissaya Barreto, também longe do Hospital dos Covões, era pretendido que as mulheres dessem à luz afastadas do burburinho, da agitação e, diga-se, das infecções, que mais ou menos atingem todos os hospitais. Porque a gravidez não é uma doença, e o nascimento é algo perfeitamente fisiológico, e devemos dar às crianças a possibilidade de quando chegam a este mundo o fazerem em paz e sossego. É isso que, no fundo, todos ansiamos para os dois momentos mais cruciais da nossa vida: quando ela começa e quando termina.
Lembro-me, aluno e jovem interno, do momento em que os bebés, depois de limpos e embrulhados para não perderem calor, eram trazidos até à mãe. Que os olhava como só uma mãe consegue olhar, como uma parte dela própria, que dela saiu e que vai querer manter por perto o mais tempo possível ao longo da vida. E ali ficavam, no quarto ou na enfermaria, junto à cama materna. Lembro-me de o Prof. Albertino dizer que nos Estados Unidos da América consideravam pouco higiénico e até perigoso manter os recém-nascidos perto das mães, e por isso tinham começado a  juntá-los todos em  enfermarias próprias, afastados dos adultos. Ali na maternidade nunca tinha sido possível implementar isso, porque não havia condições para tal. Mas uns anos depois, na Europa, surgiu a constatação que é bom os bebés logo que nascem serem colocados junto às mães, para lhes sentirem o calor, e o cheiro, e ouvirem a voz, que normalmente os irão acompanhar durante muito tempo, e por isso se sentirem acarinhados e seguros,  o que é um bom começo para a sua vida. E assim se voltou a fazer na Europa. E o Prof. Albertino, com a sua fleuma, concluía: “Ora aqui está por que nós, por falta de espaço, andámos durante anos à frente na Europa!”.
Já como interno de cirurgia, e como cirurgião, trabalhei no Hospital Pediátrico, criado por Bissaya Barreto, e quando por lá havia apenas um cirurgião pediátrico. Depois de as maternidades poderem ser centros materno-infantis, ainda dentro do argumento da proximidade entre mães e filhos, a lógica da criação dos hospitais pediátricos foi, por um lado, que a possível patologia dum recém-nascido é muito específica, e diferente da que é encontrada nas restantes idades pediátricas, e, por outro, que as crianças não são adultos em tamanho pequeno, e por isso não deverão ser tratados em hospitais de adultos. Ficaram, assim, em Coimbra, o Centro Hospitalar de Coimbra, com o Hospital dos Covões, a Maternidade Bissaya Barreto e o Hospital Pediátrico, este concentrando toda a pediatria da cidade, e o Hospital da Universidade de Coimbra e a Maternidade Daniel de Matos.
O Hospital Pediátrico acabou por se tornar praticamente autónomo, com todas as especialidades, só lá indo eu, e outros, prestar colaboração muito esporadicamente, sempre que necessário. Na Maternidade Bissaya Barreto mantiveram-se a obstetrícia e a ginecologia, bem com a neonatologia, que abarca, como o nome diz, o apoio aos recém-nascidos, na saúde e na doença.  Como cirurgião fui lá sendo ocasionalmente chamado, por rotina ou de urgência, e do mesmo modo alguns especialistas doutras áreas: medicina interna, cardiologia, nefrologia, urologia. Embora a gravidez não seja uma doença, pode haver grávidas doentes, sempre assim foi; mas agora se calhar um pouco mais, na medida em que as mulheres cada vez engravidam mais tarde na sua vida. Porque os casais jovens têm poucas condições económicas, as mulheres, também por isso, mas por desejo pessoal também, têm uma vida profissional mais activa e nela se aplicam mais intensamente, e a medicina da reprodução vai conseguindo que concebam às vezes quando já não o pensavam conseguir. Sendo, pois, as grávidas, em média, menos jovens, é provável que tenham maior possibilidade de sofrer de alguma coisa. Por isso tem surgido a ideia de aproximar as maternidades dos hospitais gerais.
Mas fazê-las desaparecer, tornando-as em mais um Serviço hospitalar, seria levar as crianças a nascerem no meio do burburinho, da agitação e das infecções. E tal tem acontecido, nalgumas cidades, por meras razões economicistas, sendo alegado, para as encobrir, que a natalidade baixou muito. E que, por isso - tem de concluir-se -, os bebés deixaram de ter direito a um sítio especial para virem ao mundo... Não são em número suficiente que o justifique… Nada de mais errado! Não é essa a atitude a ter, tratando as grávidas como doentes e recebendo-lhes os filhos como resultado dessa doença. E, por outro lado, a falta de “clientes” não pode justificar a falta de qualidade no seu atendimento…  Há é que criar todas as condições para que os “clientes” aumentem!
E isso passa por maternidades bem dimensionadas – que em Portugal corresponde a maternidades que possam vir a ter muitos mais partos do que os que têm agora, já que tanto precisamos que eles aumentem! -, contruídas num local aprazível, tranquilo, saudável, em que as grávidas não sejam recebidas como mais um doente, e as crianças cheguem a este mundo sem sentirem o stress duma instituição hospitalar. E, já agora, perto dum hospital geral que lhes dê o apoio de que precisarem.
E é esta a visão que um cirurgião tem deste assunto, visto de fora e não eventualmente deformado pela lide obstétrica diária. Mas tendo-o acompanhado ao longo dos anos, como profissional, activamente, daqueles cuja necessidade agora é por alguns invocada para na realidade extinguirem as maternidades e incluírem-nas nos hospitais. Por falta de espaço? Por falta de compreensão? Por desprezo por quem dá à luz e por quem nasce? Espero bem que se encontre o espaço adequado e a compreensão não falte.  Quem nos vem substituir neste mundo merece. Assim nós os mereçamos.
In Boletim do Rotary Club de Coimbra, Maio de 2020

sábado, 30 de maio de 2020

OS MÉDICOS, OS DOENTES E A SAÚDE

O Dr. Frank Lewis Jr., ex-Presidente da Associação Americana para a Cirurgia do Trauma, escreveu um artigo notável no Journal of Trauma, dando corpo às preocupações dos médicos americanos sobre a saúde naquele país, e a senda que tem vindo a seguir. O que se passa num País de topo na medicina mundial é com certeza importante para todos, e por isso há que conhecê-lo cuidadosamente, analisá-lo e estabelecer os paralelos possíveis com o nosso próprio País.
Diz o Dr. Lewis que nunca como agora, no início deste século, houve mais razões para que “os médicos se sentissem os mais felizes dos profissionais”. Na verdade, “do ponto de vista científico vivemos na era dourada da medicina. As conquistas médicas dos últimos 50 anos excederam em muito tudo o que se conseguiu anteriormente”. Este extraordinário avanço científico permitiu aos profissionais médicos a realização de actos até aqui difíceis de imaginar, pelo menos durante as suas vidas, e deles tirarem o deleite profissional que quiçá só quem está imbuído da mística da medicina pode entender. Deviam por isso estar felizes, mas não estão. “De facto o oposto é que é verdadeiro, e os médicos estão em geral desmoralizados e infelizes. Sentem que perderam o controlo da sua prática médica para administradores mais interessados em lucros que no bem-estar dos doentes, e o seu tempo profissional é cada vez mais consumido por preenchimento de papelada administrativa e por discussões com pessoal de secretaria, tentando obter autorizações para tratar dos seus doentes”. Nos Estados Unidos da América. E cá não?
O Dr. Frank Lewis continua: “- O aumento dos custos da saúde está também a afectar a prestação dos cuidados de saúde por outros profissionais, particularmente os enfermeiros. Num esforço de poupança, quase todos os hospitais estão a reduzir o número de enfermeiros ao mínimo aceitável, e até abaixo disso. E têm vindo a empregar cada vez mais pessoas menos qualificadas e menos treinadas para sempre que possível substituírem o pessoal de enfermagem, criando-lhes uns títulos eufemísticos que apenas servem para esconder a sua falta de treino e de preparação formal.” Mas ficam baratos. A consequência disto é a “redução da qualidade da assistência de enfermagem prestada aos doentes internados, sobretudo aos mais graves, a par com um aumento da sobrecarga laboral e de stress dos enfermeiros”.  
Os médicos querem sobretudo tratar os doentes da melhor maneira possível, e realizam-se pessoal e profissionalmente com isso. Os administradores, pelo contrário, só se interessam pelos custos, e é esse o objectivo actual da sua presença nos hospitais. Embora fosse curial pensar que não, que servissem acima de tudo para facilitar a tarefa dos médicos e ajudar a criar as condições pessoais, profissionais e tecnológicas para eles exercerem a melhor medicina possível, que é essa que realmente fica, no fim das contas todas feitas, mais barata, senão ao hospital com certeza ao País. Por lá têm tendência para se imiscuir na actividade clínica e depreciar a “clinical governance”, ao mesmo tempo que só a sua actividade consome cerca de 40% dos recursos para a Saúde. Recursos desviados da acção directa sobre os utentes dos hospitais – os doentes.
Para além da limitação da acção médica, até por falta dessa parte dos recursos alocados às instituições, tem havido nos EUA um esforço insensível que redunda em dificultar o acesso dos pacientes aos cuidados de saúde, quer encarecendo-os, quer colocando-os mais longe, ou com horários muito estritos para a sua prestação. Um outro modo, elaborado e com uma auréola científica, de afastar doentes dos centros médicos é concentrar alguns meios mais sofisticados – e caros – apenas nalguns, considerando que assim conseguirão acumular mais experiência – para além de maior rentabilização do material lá colocado. A ideia não é, obviamente, desprovida de razão, mas se essa super-especialização for levada ao exagero – apenas pelo intuito da poupança – haverá muitos doentes que nunca a eles terão acesso, simplesmente porque estão muito longe e com dificuldade de transporte, por falta dele ou de dinheiro para ele, ou de acompanhamento. E muito dinheiro será poupado, por falta de utilização. Para lá de diminuir, nessas áreas médicas, a massa crítica, fonte de progresso, e impedir em muitos hospitais a interacção clínica necessária em momentos cruciais.
Esta pressão economicista está a desesperar os nossos colegas americanos, a deprimi-los numa época que poderia ser gloriosa em termos de realização profissional. E terá inapelavelmente impacto negativo na sua actividade clínica, a agravar-se com o tempo. Mas é só na América?! Talvez lá tenha chegado primeiro, mas creio que vem a caminho. Eu diria até que já cá chegou… 
In Farpas pela nossa Saúde, 2006

quinta-feira, 14 de maio de 2020

E um dia vieram os médicos
ou
O SERVIÇO MÉDICO À PERIFERIA EM 1975

Quis o acaso que eu integrasse o curso de Medicina que começou o Serviço Médico à Periferia, em 1975. Fiz parte nessa altura da chamada Comissão Nacional de Policlínicos, com representantes do Norte, Centro e Sul, que foi quem discutiu com o governo a ida dos jovens médicos para a periferia, e por isso posso falar na primeira pessoa do que aconteceu, e com conhecimento directo de causa.
O nosso contacto com o Ministério da Saúde era através da então existente Direcção Geral dos Hospitais, e logo nos apercebemos que da parte deles não havia uma ideia precisa do que esse “serviço” deveria ser, de modo que tudo ficou em grande medida entregue a nós próprios, e à nossa iniciativa e capacidade de organização, em cada Região e depois em cada grupo formado. Esses grupos constituíram-se ad hoc, por amizades, simpatias, maior convivência habitual, idiossincrasias, credos políticos, etc. A sua distribuição pelas várias localizações foi sorteada, depois dos locais terem sido escolhidos por uma comissão designada para o efeito em cada Região.
Tínhamos feito o internato geral, na altura composto de um ano de prática clínica (findo o qual nos inscrevíamos na Ordem dos Médicos) e catorze meses de internato de policlínica, e aguardávamos o início do internato complementar, pelo qual tiraríamos uma especialidade hospitalar (os cuidados de saúde primários como especialidade ainda não existiam). E foi nesse interregno que se veio instalar a possibilidade de irmos fazer um serviço médico na periferia, fora dos grandes centros e dos hospitais estatais então existentes, um pouco à semelhança das chamadas “campanhas de dinamização cultural” dos militares. Recorde-se que estávamos ainda num período de agitação revolucionária pós-Abril de 1974, com o chamado Movimento das Forças Armadas (MFA, motor do golpe revolucionário) empenhado em dinamizar e modificar o interior recôndito do país, dentro do entendimento político dominante.
Alguns colegas queriam decididamente ir, por razões políticas, animados de espírito revolucionário. E outros não queriam ir, também por razões políticas, de sinal contrário. Mas a grande maioria queria realmente colaborar em algo que ajudasse a dinamizar o país, a torná-lo melhor, convictos de que se estava a viver uma mudança. Só que daí a saírem da sua rotina, do seu conforto, faltava um bom bocado, em que um certo egoísmo, ou egocentrismo, marcava posição… E, sobretudo, viam com preocupação interromper a sua carreira, ainda mal começada, que ao tempo se resumia à via hospitalar ou à académica, ou ambas.
A minha postura pessoal dalguma rejeição assentava, para além da carreira, no facto de achar – e a lógica, apesar de tudo o que depois se passou, continua a parecer-me presente – que seria apenas populismo enviar médicos inexperientes para zonas sem cuidados médicos organizados, em vez de criar verdadeiros hospitais periféricos, povoando-os com especialistas, e só depois lá colocar médicos em fase de aprendizagem. A isso se juntava o facto de, como a grande maioria dos colegas de Coimbra, já ter perdido um ano seis anos antes, aquando da greve estudantil de 1969. Achava, portanto, que se anunciava simplesmente outro ano de atraso!
Tudo foi discutido em reuniões gerais de médicos, cujas conclusões, votadas na assembleia, eram transmitidas ao Director Geral dos Hospitais pelos respectivos elementos da Comissão (concordassem ou não individualmente com elas…). Acabou por ser decidida a nossa ida, com o nosso acordo, e o que vou descrever diz respeito à Região Centro, uma vez que não houve disposições ministeriais que dessem uma forma e um conteúdo definidos ao trabalho a executar, e que permitissem avaliá-lo depois.
A escolha dos locais recaiu sobre as zonas “piores”, quer dizer, aquelas com maiores carências, e com mais dificuldades sanitárias, onde se pressupunha mais necessária a presença de médicos. Isto é, para além de periferia, escolhemos a extrema periferia. Não pelas vilas onde sediámos as equipas, mas pelo território envolvente e que seria o objectivo principal da nossa acção. Esse era o nosso projecto. À minha equipa, constituída por cinco rapazes e uma rapariga, calhou Castro Daire, terra onde, como diz o outro, fomos muito felizes, e fizemos amigos, entre eles os três médicos locais, os Drs. Zeca, Jorge e Júlio, agora já falecidos, e dos quais guardamos as melhores recordações pessoais. Ofereceram-nos mesmo um jantar festivo de despedida, nas termas do Carvalhal.
Ficámos a viver numa velha casa parcamente mobilada (se é que se pode dizer assim…), perto do Hospital da Misericórdia, o qual tinha ao lado o posto clínico das Caixas de Previdência, onde os médicos locais, com os quais não mantivemos contacto profissional, faziam umas consultas, para além de ocasionalmente internarem uns doentes no hospital. Aqui encontrámos um grupo de militares da dinamização cultural do MFA a pernoitar, os quais, elucidados por nós que precisaríamos das camas do hospital para deitar doentes, foram aboletar-se na prisão do Tribunal, felizmente na altura sem “hóspedes”. Brincávamos então entre nós dizendo que tínhamos começado por meter o MFA na cadeia!
Organizámos duas enfermarias, homens e mulheres, num total de 27 camas, com pessoal auxiliar da Misericórdia e quatro enfermeiros, uma da Misericórdia e mais três do “posto das Caixas”. Estes vieram voluntariamente trabalhar connosco, também eles entusiasmados com a novidade e com a obra que poderíamos todos juntos fazer, percebendo que seria muito mais do que tinham sido até aí chamados a fazer. Estabelecemos as consultas externas, diárias e com horário fixo, e as urgências, de 24 horas, todos os dias, incluindo fins de semana, sempre com médico e enfermeiro em presença física. Recebíamos doentes agudos e crónicos, e traumatizados de todos os tipos, enviando para Viseu só os que não conseguíamos estudar ou tratar em condições. Desbridamento de feridas, pensos, suturas, talas, gessos, passaram a ser a nossa rotina, com doentes internados pelos mais variados motivos, com visita médica diária e cuidados sempre que necessários. O nosso maior receio no início eram os partos, porque só um de nós queria ir – e foi – para Obstetrícia; por isso pedimos ao Director da Maternidade Bissaya Barreto, Dr. Vicente Souto, que nos desse umas lições eminentemente práticas, e tudo correu bem igualmente nessa matéria.
Pela relação de amizade que estabelecemos com outro jovem, o responsável administrativo do posto, conseguimos, mercê também do momento de agitação que se vivia no país, que o que fosse feito aos doentes beneficiários das Caixas de Previdência que vinham ao hospital, por doença natural ou por acidente, fosse imediatamente pago à Misericórdia, mas movimentando nós o dinheiro respectivo. Desse modo pudemos aplicá-lo no próprio hospital, em camas, janelas, cozinha, material de consumo e outro, mobiliário vário, medicamentos. Neste último campo usávamos muitas amostras, mas tudo o resto que fazíamos a esses doentes era pago, e dava para os que não pagavam nada. E o afluxo de pacientes foi crescendo de dia para dia. Depois do dinheiro que aplicámos no edifício e no seu recheio e gastámos com os doentes, deixámos 200 mil escudos na conta do hospital quando viemos embora!
Mas o objectivo principal era a extrema periferia, e por isso abrimos seis postos de consulta, um para cada um de nós, onde íamos uma vez por semana, excepto quando nevava de modo a interromper o caminho para lá, o que no meu posto de Monteiras aconteceu uma meia dúzia de vezes. No fim de semana ficava apenas um de serviço no hospital, e esse folgava na semana seguinte em Coimbra. No entanto, o “seu” posto não ficava sem consulta, e era um dos colegas que o ia sempre substituir. E também fazíamos visitas ao domicílio, às vezes num jeep com um dos militares do grupo lá destacado, um tenente veterinário que foi o único com quem convivemos e que se tornou nosso amigo. Tendo vivido toda a vida em ambiente citadino, foi para mim um choque encontrar pessoas para quem a falta de médico era apenas um pequeno pormenor, já que não tinham electricidade, água canalizada, sanitários, estradas asfaltadas. Foi para mim uma experiência marcante visitar essas pessoas como médico, ir às suas casas, comer com elas do que tinham (pão, chouriço, presunto, queijo, vinho, uma bela sopa cozinhada num pote de ferro na lareira…), numa mesa de madeira à luz dum candeeiro de petróleo, e que me ofereciam com gentileza, não como paga de nada mas em sinal de agradecimento pela minha presença ali com eles.
Alguma dessa gente esquecida esteve internada no hospital, e muitos outros foram vistos em consulta perto de suas casas. Foi um país a acordar para outro, e este a perceber que afinal queriam que ele vivesse. E a nossa ida contribuiu para estabelecer esse contacto, e dar esse sinal, ao mesmo tempo que estabelecemos uma rede de cuidados que mais tarde evoluiria para os cuidados de saúde primários. Pondo a funcionar também um hospital público, com atendimento contínuo de proximidade, resolvendo os problemas da maior parte dos que nos procuravam, localmente, com uma grande comodidade para eles e um enorme ganho de tempo, e desviando doentes de hospitais maiores e com mais recursos, que seriam excessivos. Foi sem dúvida nenhuma o primeiro passo para um Serviço Nacional de Saúde, que viria a ser criado no papel quatro anos depois e aperfeiçoado daí em diante.
Ao contrário do que eu pensava, foi possível fazer o caminho inverso, começar com pouco e ir progredindo, de baixo para cima, seguindo o modelo criado empiricamente. É que eu não contava com duas coisas: o estado paupérrimo em termos de cuidados de saúde básicos nos territórios do interior, em necessidade absoluta de ajuda, por um lado, e, por outro, o espírito entusiástico e empreendedor da juventude destacada durante alguns anos para fazer aquele serviço. Foi esse entusiasmo que nos manteve unidos, sem controlo ou vigilância de ninguém, empenhados afinal em fazer aquilo que todos gostávamos de fazer: ser médicos. O trabalho de enfermaria, as consultas, os procedimentos na urgência, as visitas domiciliárias, faziam parte desse trabalho, a que não éramos realmente obrigados mas que víamos bem ser muito necessário por parte de quem nos rodeava. Foi muito gratificante sentir essa necessidade e sermos capazes de nos organizar de modo a satisfazê-la, da melhor maneira que nos foi possível. E foi sem dúvida um privilégio ter podido viver esse tempo, de aventura, ilusão e realização, em que crescemos como médicos e como pessoas. Às vezes perguntam-me se seria bom haver outra vez serviço médico à periferia, e eu respondo: “Não, já não faz falta. Agora o que é preciso é que o Serviço Nacional de Saúde continue, sem perder o entusiasmo que já teve...”.
In Newsletter da Cirurgia C, 2018


terça-feira, 12 de maio de 2020

O FUTURO DA CIRURGIA GERAL


O futuro a Deus pertence, diz o nosso povo, falando do futuro imprevisível, aquele que nos limitamos a aguardar vivendo o dia a dia do modo a que o passado nos conduziu. Mas se soubermos o que foi o passado, como chegámos ao que somos e fazemos hoje, poderemos ter uma ideia do que o futuro vai ser. E se tivermos uma ideia do futuro que gostaríamos de ter, poderemos fazer do nosso dia a dia uma preparação para esse futuro, orientando-o nesse sentido. Deixaremos então de ter um futuro natural e largamente imprevisível, mas antes um futuro com algo de artificial, no sentido de construído segundo um molde do que, de acordo com o que somos agora e como aqui chegámos, pensamos ser o melhor. O que nem sempre será o caso. Tantos exemplos há disso, de futuro forçado numa direcção que depois se mostrou totalmente errada, havendo que arrepiar ou inflectir caminho.
A actividade científica é muitas vezes intensamente empolgante ao conduzir-nos ao futuro, e actualmente faz-nos avançar suficientemente depressa para nos levar a suspeitar que a nossa imaginação não é capaz de abarcar toda a realidade vindoura. Pensamos já que tudo pode vir a acontecer, mesmo contrariando regras estabelecidas que afinal não o são, porque afinal mudam ou se tornam no seu total oposto. O futuro que prevemos através dos resultados da ciência não deve passar de hipótese de trabalho, que virá a ser confirmada ou não pelo grande teste do tempo e pela realidade. Não deve, pois, ser considerado desde logo um objectivo a atingir a qualquer preço mas, simplesmente, uma direcção a ser seguida e susceptível de ser abandonada se se vier a mostrar errada. 
No que respeita à cirurgia geral, a sua maior alteração no fim do século passado e início deste século foi a introdução da via endoscópica – laparoscópica, toracoscópica, retroperitoneoscópica -, uma vez que basicamente todas as grandes intervenções cirúrgicas já eram antes praticadas.  Mas outro aspecto importante na cirurgia geral foi o desenvolvimento da chamada cirurgia fisiológica. Durante séculos a cirurgia foi, pode-se dizer, anatómica, quer dizer, de ressecção, mutiladora, retirando do corpo as partes doentes.  Era uma atitude, diga-se, pouco elaborada (apesar de em muitas situações difícil de executar), de algum modo grosseira, e os cirurgiões não recebiam da sociedade o mesmo respeito que os médicos, apesar de intervirem sobretudo quando estes falhavam. Na cirurgia fisiológica introduzem-se alterações na anatomia com o fim de recuperar uma função fisiológica desaparecida ou diminuída, ou de conseguir uma modificação no funcionamento do organismo. Tornou-se possível pelo conhecimento profundo dos mecanismos fisiológicos em causa, permitindo aos cirurgiões manipular as estruturas anatómicas de modo a reproduzi-los ou alterá-los. Exemplo disto é o tratamento cirúrgico do refluxo gastroesofágico, já mais antigo, e, mais recentemente, a cirurgia da obesidade. A avaliação pormenorizada e sistemática dos resultados das intervenções bariátricas nos doentes operados permitiu perceber a sua influência directa na diabetes mellitus (que não apenas pela redução ponderal), e vai muito provavelmente conduzir a mais conhecimentos na fisiologia do controlo do peso corporal e na fisiopatologia da diabetes, bem como no nosso sistema endócrino e noutras perturbações do nosso metabolismo. É de prever que num futuro próximo doenças como a diabetes possam ser tratadas directamente pelo cirurgião, no que já se chama de cirurgia metabólica, numa evolução ao arrepio da habitual, tratamento cirúrgico enquanto não há tratamento médico.
Não haverá razão no futuro para alterar a história clínica, o interrogatório do doente e a sua observação, os relatos operatórios, o registo de tudo isso e da sua evolução, feitos à boa maneira hipocrática. O suporte informático é muito importante, de modo a que tudo seja facilmente acessível e disponível para os médicos envolvidos no tratamento de cada doente, mesmo em instituições diferentes. Os meios auxiliares de diagnóstico e de intervenção com ajuda de imagem têm-se desenvolvido muito e espera-se que o façam ainda mais, utilizados seja por imagiologistas seja por especialistas doutras áreas, incluindo cirurgiões. Cada vez será mais necessário que os especialistas colaborem uns com os outros, mas não apenas à distância, o façam de maneira estreita, pessoal, à cabeceira do doente (na enfermaria, na sala de endoscopia ou de imagiologia) observando-o em conjunto, discutindo exames e estratégias, pensando colectivamente em soluções. Haverá que inverter a tendência de certos hospitais em que os vários médicos envolvidos no tratamento dos doentes apenas comunicam por escrito, nos velhos processos em papel ou já nos registos informatizados.
A introdução da via cirúrgica endoscópica veio revolucionar a abordagem operatória dos doentes, tornada muito menos traumática e permitindo uma alta muito mais precoce. Não veio alterar os princípios gerais da boa cirurgia, pelos quais se deve continuar a manter um respeito estrito. As operações permaneceram as mesmas, apenas a via de acesso e de trabalho se modificou, havendo os cirurgiões que adquirir o know how da manipulação do instrumental necessário para sua realização, seja directamente seja por robótica. Mas houve regras operatórias tradicionalmente transmitidas e que se consideravam fundamentais nalgumas intervenções que a respectiva execução por via endoscópica veio demonstrar não o serem. Isso constituiu uma lição a aprender por todos nós: há que ter o espírito aberto nessa matéria, podendo a boa cirurgia ser praticada de modos diferentes.
A cirurgia estará cada vez mais dependente da tecnologia, e cabe também aos cirurgiões idealizarem material e instrumentos que lhes permitam realizar mais facilmente as intervenções endoscópicas, e proporem a sua concretização. Toda essa instrumentação cirúrgica acompanhará seguramente o desenvolvimento tecnológico noutras áreas afins da cirurgia, seja no campo do diagnóstico seja da intervenção. Também neste aspecto a colaboração entre todos terá de ser cada vez mais estreita, e o cirurgião geral não deverá abandonar o recurso pessoal a toda essa tecnologia. Em muitos aspectos já o fez mais do que devia, abrindo mão de abordagens instrumentais diagnósticas e terapêuticas que lhe estavam perfeitamente ao alcance, perdendo-se assim a aplicação prática dos seus conhecimentos clínicos e a sua capacidade de execução manual.
O treino na via cirúrgica endoscópica faz hoje parte do treino básico do cirurgião geral, e a capacidade adquirida nessa matéria poderá ser utilizada na realização de múltiplas intervenções em que ela seja aplicável e vantajosa. Mas há limites com certeza, e situações em que a via aberta será desejável ou até mandatória. Os cirurgiões gerais não deverão encarar a via endoscópica como um desafio em que irão ganhando pontos como se de um videojogo se tratasse: deverão saber quando está indicado usá-la e quando não, quando poderão insistir nessa abordagem ou ser da mais elementar prudência desistir. 
Trata-se apenas duma via de abordagem, e não dum objectivo em si. Não faz sentido falar-se numa espécie de especialização em cirurgia endoscópica – laparoscópica, toracoscópica ou retroperitoneoscópica – mas sim saber aplicar essas vias quando necessário, na área de trabalho habitual de cada um. Com o aumento do número de intervenções feitas por via endoscópica, vai-se criando uma dificuldade acrescida no treino da cirurgia aberta, o que não se esperaria vinte anos atrás. Mas a tecnologia em evolução acelerada poderá fornecer meios de treino artificial, com simuladores de gestos cirúrgicos, para a cirurgia aberta, como já existem para a cirurgia endoscópica. Para além do recurso à velha cirurgia em modelos animais.
Dois aspectos relacionados com a cirurgia geral estão hoje muito em voga: a super e subespecialização e a referenciação. Há a ideia de que só faz bem quem faz muito. E é verdade que a prática contribui para a perfeição, mas alcançá-la não depende só do número de vezes que se repetem os mesmos gestos, como parece pensarem os que querem reduzir tudo a números. A rapidez com que se aprende cirurgia é individual, e está dependente, nomeadamente, para além das capacidades de cada um, da sua cultura médica e cirúrgica e da sua experiência prévia e também da concomitante.  Naturalmente, um cirurgião que faça só uma intervenção cirúrgica, para manter a mão terá de a realizar muito mais vezes do que alguém para quem essa intervenção esteja incluída numa actividade cirúrgica intensa e variada.
Da cirurgia geral saíram várias especialidades cirúrgicas, mas isso aconteceu sempre por razões de maior especificidade na evolução da clínica médica relacionada com determinadas patologias, e em procedimentos diagnósticos ou terapêuticos específicos que foram surgindo em relação com essas patologias, a serem realizados pelo próprio cirurgião. Nunca nasceu nenhuma baseada apenas num determinado tipo de cirurgia, e com a justificação do número de intervenções realizadas por unidade de tempo.
É natural que ao longo da sua evolução profissional um cirurgião geral se vá concentrando nalgumas patologias, mais do seu agrado ou para as quais é mais solicitado, e daí surja o que poderemos chamar de superespecialização. Um cirurgião geral, com experiência enquanto tal, com os recursos técnicos e teóricos daí resultantes, que se dedica mais a uma parte do seu campo de trabalho. Já não pode ser aceitável que alguém termine o seu processo de formação básico em cirurgia geral e seja limitado daí em diante a realizar apenas uma determinada intervenção cirúrgica, ou duas ou três, repetindo-as monotonamente para o resto da vida ou até se fartar. Nessas condições nunca chegará a exercer a sua especialidade, terá obtido antes uma subespecialização, sem possibilidade de aplicar na sua actividade diária, translacionalmente, todo o manancial de recursos derivados duma prática cirúrgica mais complexa. Para além disso, é fundamental que cada um tenha possibilidade de mostrar as suas aptidões e capacidades, de modo a poderem ser escolhidos os melhores para uma determinada actividade, e não que a escolha seja prévia a isso. Se o for, muitos de grande qualidade ficarão necessariamente de fora.  
E assim se chega à avaliação, que é a peça fulcral na referenciação, termo intimamente ligado à ideia de qualidade. As carreiras médicas, os internatos médicos e o Serviço Nacional de Saúde conseguiram que nos hospitais de todo o território nacional se pratique boa cirurgia. Nem sempre foi assim, e houve tempo em que quaisquer casos menos simples tinham de ser enviados para dois ou três hospitais do nosso litoral, que eram as referências possíveis na altura. Mas há situações mais complexas e menos frequentes que, necessitando de meios terapêuticos ou de diagnóstico mais sofisticados e mais caros, podem justificar que tais meios possam ser concentrados nalguns centros. Isso não deve significar exclusividade desses centros no tratamento dos doentes, servirá tão somente para tirar mais rendimento, clínico e financeiro, dos investimentos feitos.
Também aqui o monopólio, com desaparecimento de competitividade ou emulação, é um factor de perda de qualidade. Exceptuando alguns casos de patologias raras, e que por isso são pouco frequentes, se quisermos não só concentrar algumas patologias mais complexas num número limitado de centros mas retirá-las por completo e obrigatoriamente de todos os outros, iremos seguramente desaproveitar a capacidade cirúrgica instalada em muitos hospitais periféricos, e levar a médio prazo à sua degradação, por falta de estímulo para os profissionais lá trabalharem. Por outro lado, fica muito caro tratar em centros altamente equipados casos que poderiam ser tratados com êxito noutros centros, contrariando assim uma das razões para a concentração dos meios mais diferenciados.
Com certeza que deve haver centros de referência, tendo essa denominação dois significados cumulativos. Por um lado, centros de elevado grau de diferenciação, mais que os outros, e que por isso lhes servem de referência, fornecendo-lhes exemplo, orientação e eventualmente treino; por outro, centros para onde podem ser referidos casos mais complicados e a precisarem de meios técnicos e humanos mais diferenciados.
Os centros de referência não podem ser designados por nomeação ministerial apenas porque sim: têm de ganhar direito a essa designação. E ela terá de ser baseada numa avaliação dinâmica de todos os centros existentes, em termos quantitativos (número de doentes tratados) e qualitativos (indicações postas, listas de espera, resultados conseguidos, complicações, trabalho científico produzido e a sua qualidade, contributos para o progresso na área, apoio a outros centros). Num país como o nosso, com uma boa cobertura hospitalar em termos de cirurgia geral, a minha proposta seria de se criar, para algumas patologias, uma rede de centros de referência com hospitais afiliados, com planos de actuação comuns, realização de exames, troca de experiências, avaliação conjunta de resultados, treino inter-hospitalar de especialistas e de internos. Para além de se aproveitar o que cada um sabe e tem condições para fazer, sem sobrecarregar um centro de alta diferenciação com casos que não necessitam dele, tornar-se-ia possível aproveitar ao máximo os meios concentrados sem ter de haver concentração dos doentes. Isso permitiria que doentes com patologias mais complexas ou menos frequentes pudessem ser tratados mais perto de casa, em segurança, sem terem de voltar a ser concentrados em dois ou três hospitais do litoral português, desaproveitando a capacidade cirúrgica existente em todo o território nacional.
A relação entre centros de referência e hospitais afiliados teria de ser baseada numa avaliação permanente e eficaz da sua actividade e dos seus resultados, no sentido da sua acreditação ou renomeação. E seria possível o eventual recrutamento para os centros de referência de cirurgiões que se destacassem nos hospitais mais periféricos. Para isso a mobilidade dos profissionais teria de ser a regra: a imobilidade pode ser fonte de acomodamento e de perda de qualidade.
Outra ideia às vezes avançada é em cada centro de referência se reduzir a um mínimo os cirurgiões encarregados da cirurgia em questão, para lhes aumentar a experiência pessoal nessa cirurgia. Sem pôr em questão que se superespecializem alguns cirurgiões, se concentrarmos um tipo de cirurgia em dois ou três cirurgiões e afastarmos dela todos os outros, com que massa crítica ficaremos então? Dois ou três cirurgiões. E a mesma observação se poderá fazer a nível nacional, se houver dois ou três centros com dois ou três cirurgiões cada.  Pelo contrário, se houver mais cirurgiões envolvidos para além desses (e aí outra virtude do tal agrupamento de centro de referência com centros afiliados), a massa crítica será muito maior, assim como a possibilidade de progresso e de transmissão desse progresso. Para além, repito por muito importante, da possibilidade de eventual renovação das equipas por cirurgiões com muita qualidade individual e que doutro modo iriam passar a sua vida profissional desaproveitados. E um país pequeno como o nosso não se pode dar a esse luxo.
Finalmente, um outro aspecto que os centros de referência cirúrgicos deverão contemplar é a multidisciplinaridade, isto é, haver intercâmbio protocolado e colaboração estreita, pessoal, entre o cirurgião geral e as outras áreas profissionais, nomeadamente outras especialidades médicas, envolvidas no tratamento das patologias em causa.  O real êxito dum centro de referência cirúrgico está alicerçado num apoio multidisciplinar, e não só na componente cirúrgica. A abordagem dos doentes, seja diagnóstica, terapêutica ou para seguimento, deve ser feita em conjunto e estar estabelecida nesse sentido. Aqui mais uma vez se reforça a absoluta necessidade dessa colaboração ser feita à cabeceira do doente, na enfermaria ou noutro local, e não unicamente por carta ou registo num sistema informático. 
Mas a multidisciplinaridade desejável não deverá implicar uma miríade de especialistas, ou antes, de subespecialistas, à volta do doente, cada um responsável por uma sua pequenina parte, e muitas vezes sem conseguirem interagir dum modo perfeito por não terem uma boa visão do conjunto, por falta dum conhecimento suficientemente amplo, dando corpo ao ditado popular de que todos juntos não valem um. Multidisciplinaridade, sim, mas envolvendo especialistas com preparação particular em determinadas áreas da sua especialidade sem, no entanto, ignorarem ou porem de parte tudo o que não seja isso.

Terminando, a rede de referenciação cirúrgica como a imagino e a descrevo atrás permitiria utilizar os meios disponíveis, humanos e tecnológicos, da melhor maneira: tratar com poucos meios os casos mais simples, reservar os meios mais diferenciados para os casos que deles verdadeiramente necessitem. Criando uma hierarquização de competências e meios em função das necessidades dos doentes, com a possibilidade de constituição dum “pool” de cirurgiões interessados capazes de se candidatarem a ser os melhores numa determinada área. 
In O futuro da cirurgia geral, ed. Sociedade Portuguesa de Cirurgia, 2015

quarta-feira, 6 de maio de 2020

A EMPATIA E A SAÚDE

Uma familiar dum paciente escreveu um dia no Livro de Reclamações do Hospital dos Covões um texto agradecido e elogioso acerca do nosso Serviço, de que destaco o fragmento que se segue:  “No momento de dor perante a morte anunciada de um ente querido, é importantíssimo, para o alívio do sofrimento da família, existir momentos de diálogo com os profissionais mais presentes junto do doente (enfermeiros). Sem dúvida estes devem marcar a diferença no cuidar, quando acolhem e escutam preocupações da família. Hoje, olhando para trás, relembro as palavras destes profissionais e sinto necessidade de pedir à administração deste hospital que reforce estes profissionais de sade﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽o\ao haver falta de cuidados e conforto a este por falta de pessoal e tambúde, de modo a que disponham de tempo para cuidar do doente, ou seja, para não haver falta de cuidados e conforto a este por falta de pessoal e ao mesmo tempo para a família a nível de “apoio” numa fase de tão elevado sofrimento para todos”.  É de empatia que aqui se fala.
Empatia é a capacidade de se entender a emoção dos outros, de compreendermos os seus sentimentos em cada altura, procurando nós experimentá-los de forma objectiva e racional como se estivéssemos na mesma situação vivenciada por eles. É compartilhar a dor psicológica dos outros, é saber ouvi-los sem julgar, sentindo-nos no seu lugar e transmitindo-lhes essa sensação. A empatia assim estabelecida ajuda a compreender melhor o seu comportamento e motivações em determinadas circunstâncias, e a forma como tomam decisões. E a orientar a terapêutica de acordo com isso. E leva à confiança do doente em quem o trata, sentimento que contribui seguramente para se conseguirem melhores resultados.  Isto não por razões estritamente psicológicas, no sentido de imateriais, ou morais, porque o “humanismo é bom”, mas por razões bioquímicas, muitas delas ainda não estudadas e que apenas se entrevêem, através do que podemos globalmente chamar endorfinas, e que aumentarão a capacidade de resistência do organismo à doença, levando com mais facilidade à sua recuperação face à agressão patológica sofrida.
A empatia com os doentes é uma relação profissional, é a relação entre um profissional e o objecto do seu trabalho.  O médico deve tratar os seus doentes da melhor maneira possível, com toda a sua capacidade, recorrendo a tudo o que aprendeu e sabe fazer, sempre com o maior empenho e aplicação, fazendo o máximo por eles, embora, naturalmente, possa ser limitado pelas condições que lhe fornecem no seu local de trabalho, ou pela falta delas. Na sua actuação deve manter a cabeça fria, usar toda a objectividade, seguindo a táctica que achar melhor e empregando a técnica mais adequada, sem permitir que a sua possível afectividade pelo doente lhe tolha isso tudo. O médico não deve tratar pacientes por quem tenha sentimentos profundos, sejam positivos, sejam negativos, e se o  fizer terá de redobrar de cuidados, para não os prejudicar.
Significa isto que não é um dever ter simpatia pelos doentes e seus familiares. Nem poderia ser assim, porque desse modo só iriam ser tratados adequadamente aqueles que nos fossem simpáticos! E sendo os doentes – tal como os profissionais de saúde, aliás – uma amostragem da população geral, há-os de todos os tipos, uns dignos de simpatia, outros antes pelo contrário. E todos devem ser tratados da melhor maneira possível. Não se fale, pois, de simpatia ou antipatia na relação com os doentes, mas sim de empatia.
O esforço pessoal e activo para estabelecer empatia com quem é tratado tem de fazer parte integrante do profissionalismo de quem trata, e ela deve ser treinada, e mantida, e depois aperfeiçoada ao longo da vida profissional. Neste aspecto, é crucial que quem trata doentes tenha em conta as suas emoções e preocupações,, bem como dos que lhes são queridos e os acompanham de perto, as compreendam, as sintam, comunguem com elas, embora, e isto é fundamental, sem se consumirem nelas. É muito importante que os pacientes e seus familiares sintam essa compreensão e essa sintonia, e que existe preocupação e vontade de ajudar, e que tudo isso seja feito sem se perder o sangue frio e, para tal, com o distanciamento afectivo necessário.
Estabelecer empatia com o doente implica conversar com ele, ouvi-lo, questioná-lo, olhá-lo nos olhos, mostrar-lhe que estamos ali a procurar entendê-lo e ajudá-lo. Mais, que o vamos ajudar e acompanhar no esforço que vai ter de fazer até ficar curado. E é importante tentar perceber os seus receios e procurar fazê-los desaparecer ou atenuar, não dando falsas esperanças mas nunca as tirando por completo. A empatia com o doente é, na verdade, uma arte, fácil e intuitiva para alguns, mais complexa para outros, mas todos a devem procurar atingir e melhorar. Porque ela é fundamental quando se lida com pessoas, neste caso pessoas doentes, e com estas a parte científica e tecnológica da medicina, só por si, é pouco.
É claro que para se estabelecer empatia é preciso um contacto pessoal suficientemente estreito, e prolongado, e isso implica permanecer no hospital, junto dos doentes e dos seus familiares. E que cada doente possa identificar, dentre o conjunto dos médicos e enfermeiros do Serviço, os que são “os seus”, que com ele lidam directamente no seu internamento, a quem apresentam em primeira mão as suas queixas e a quem os familiares se podem mais directamente dirigir. Por maioria de razão, é com os enfermeiros que o contacto é mais constante, pois são eles quem está presente a todas as horas na enfermaria. Por isso a função dos enfermeiros é muito importante na relação empática com os pacientes internados. E é a este propósito, aliás, que é o texto atrás referido e que serve de mote a este artigo. Texto elogioso e agradecido, sim, mas que, lucidamente, exorta o Conselho de Administração a tomar as medidas necessárias para se poderem manter as condições para os doentes serem tratados da melhor maneira possível, incluindo no aspecto de que aqui estamos a falar.
Porque é preciso que o número de profissionais seja o necessário, e que, no caso dos enfermeiros, permita que a equipa que contacta com cada doente seja consistentemente a mesma, não sendo obrigada a mudar diariamente e assim impedir aquelas longas conversas que a autora do texto refere,  com os doentes e ouvindo e acolhendo as preocupações da família.  Essa acção dos enfermeiros, muito para lá do seu trabalho puramente técnico, mas incluída no seu conteúdo profissional, tem um alcance que vai muito além da parte humanitária que é elogiada naquela “reclamação”: ela, na verdade, deve preparar os doentes para o que lhe vai acontecer no hospital e logo após a alta, e desse modo contribui para uma melhor evolução durante o internamento e um mais rápido restabelecimento após sair. Aliás, é um dos pilares a não esquecer na ERAS (enhanced recovery after surgery). A qual alguns conselhos de administração aplaudem com entusiasmo, revendo-se nos possíveis internamentos mais curtos, mas que na realidade nada fazem para implementar em segurança!
Em suma, a empatia estabelecida com os doentes é fundamental no seu tratamento, pesem embora as dificuldades que para tal vão sendo criadas por diminuição de condições de trabalho. Todos os doentes são importantes, mas é bom que possamos transmitir a cada um e à sua família que, se ele não é o único que temos para cuidar, é com certeza o que nos monopoliza o esforço e a preocupação profissionais. E, com ele, todos e cada um dos outros. Que cada um é cada um, e não apenas mais um entre muitos.