sábado, 30 de maio de 2020

OS MÉDICOS, OS DOENTES E A SAÚDE

O Dr. Frank Lewis Jr., ex-Presidente da Associação Americana para a Cirurgia do Trauma, escreveu um artigo notável no Journal of Trauma, dando corpo às preocupações dos médicos americanos sobre a saúde naquele país, e a senda que tem vindo a seguir. O que se passa num País de topo na medicina mundial é com certeza importante para todos, e por isso há que conhecê-lo cuidadosamente, analisá-lo e estabelecer os paralelos possíveis com o nosso próprio País.
Diz o Dr. Lewis que nunca como agora, no início deste século, houve mais razões para que “os médicos se sentissem os mais felizes dos profissionais”. Na verdade, “do ponto de vista científico vivemos na era dourada da medicina. As conquistas médicas dos últimos 50 anos excederam em muito tudo o que se conseguiu anteriormente”. Este extraordinário avanço científico permitiu aos profissionais médicos a realização de actos até aqui difíceis de imaginar, pelo menos durante as suas vidas, e deles tirarem o deleite profissional que quiçá só quem está imbuído da mística da medicina pode entender. Deviam por isso estar felizes, mas não estão. “De facto o oposto é que é verdadeiro, e os médicos estão em geral desmoralizados e infelizes. Sentem que perderam o controlo da sua prática médica para administradores mais interessados em lucros que no bem-estar dos doentes, e o seu tempo profissional é cada vez mais consumido por preenchimento de papelada administrativa e por discussões com pessoal de secretaria, tentando obter autorizações para tratar dos seus doentes”. Nos Estados Unidos da América. E cá não?
O Dr. Frank Lewis continua: “- O aumento dos custos da saúde está também a afectar a prestação dos cuidados de saúde por outros profissionais, particularmente os enfermeiros. Num esforço de poupança, quase todos os hospitais estão a reduzir o número de enfermeiros ao mínimo aceitável, e até abaixo disso. E têm vindo a empregar cada vez mais pessoas menos qualificadas e menos treinadas para sempre que possível substituírem o pessoal de enfermagem, criando-lhes uns títulos eufemísticos que apenas servem para esconder a sua falta de treino e de preparação formal.” Mas ficam baratos. A consequência disto é a “redução da qualidade da assistência de enfermagem prestada aos doentes internados, sobretudo aos mais graves, a par com um aumento da sobrecarga laboral e de stress dos enfermeiros”.  
Os médicos querem sobretudo tratar os doentes da melhor maneira possível, e realizam-se pessoal e profissionalmente com isso. Os administradores, pelo contrário, só se interessam pelos custos, e é esse o objectivo actual da sua presença nos hospitais. Embora fosse curial pensar que não, que servissem acima de tudo para facilitar a tarefa dos médicos e ajudar a criar as condições pessoais, profissionais e tecnológicas para eles exercerem a melhor medicina possível, que é essa que realmente fica, no fim das contas todas feitas, mais barata, senão ao hospital com certeza ao País. Por lá têm tendência para se imiscuir na actividade clínica e depreciar a “clinical governance”, ao mesmo tempo que só a sua actividade consome cerca de 40% dos recursos para a Saúde. Recursos desviados da acção directa sobre os utentes dos hospitais – os doentes.
Para além da limitação da acção médica, até por falta dessa parte dos recursos alocados às instituições, tem havido nos EUA um esforço insensível que redunda em dificultar o acesso dos pacientes aos cuidados de saúde, quer encarecendo-os, quer colocando-os mais longe, ou com horários muito estritos para a sua prestação. Um outro modo, elaborado e com uma auréola científica, de afastar doentes dos centros médicos é concentrar alguns meios mais sofisticados – e caros – apenas nalguns, considerando que assim conseguirão acumular mais experiência – para além de maior rentabilização do material lá colocado. A ideia não é, obviamente, desprovida de razão, mas se essa super-especialização for levada ao exagero – apenas pelo intuito da poupança – haverá muitos doentes que nunca a eles terão acesso, simplesmente porque estão muito longe e com dificuldade de transporte, por falta dele ou de dinheiro para ele, ou de acompanhamento. E muito dinheiro será poupado, por falta de utilização. Para lá de diminuir, nessas áreas médicas, a massa crítica, fonte de progresso, e impedir em muitos hospitais a interacção clínica necessária em momentos cruciais.
Esta pressão economicista está a desesperar os nossos colegas americanos, a deprimi-los numa época que poderia ser gloriosa em termos de realização profissional. E terá inapelavelmente impacto negativo na sua actividade clínica, a agravar-se com o tempo. Mas é só na América?! Talvez lá tenha chegado primeiro, mas creio que vem a caminho. Eu diria até que já cá chegou… 
In Farpas pela nossa Saúde, 2006

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