OS MÉDICOS, OS DOENTES E A SAÚDE
O Dr. Frank Lewis Jr., ex-Presidente da
Associação Americana para a Cirurgia do Trauma, escreveu um artigo notável no
Journal of Trauma, dando corpo às preocupações dos médicos americanos sobre a
saúde naquele país, e a senda que tem vindo a seguir. O que se passa num País
de topo na medicina mundial é com certeza importante para todos, e por isso há
que conhecê-lo cuidadosamente, analisá-lo e estabelecer os paralelos possíveis
com o nosso próprio País.
Diz o Dr. Lewis que nunca como agora, no
início deste século, houve mais razões para que “os médicos se sentissem os
mais felizes dos profissionais”. Na verdade, “do ponto de vista científico
vivemos na era dourada da medicina. As conquistas médicas dos últimos 50 anos
excederam em muito tudo o que se conseguiu anteriormente”. Este extraordinário
avanço científico permitiu aos profissionais médicos a realização de actos até
aqui difíceis de imaginar, pelo menos durante as suas vidas, e deles tirarem o
deleite profissional que quiçá só quem está imbuído da mística da medicina pode
entender. Deviam por isso estar felizes, mas não estão. “De facto o oposto é
que é verdadeiro, e os médicos estão em geral desmoralizados e infelizes.
Sentem que perderam o controlo da sua prática médica para administradores mais
interessados em lucros que no bem-estar dos doentes, e o seu tempo profissional
é cada vez mais consumido por preenchimento de papelada administrativa e por
discussões com pessoal de secretaria, tentando obter autorizações para tratar
dos seus doentes”. Nos Estados Unidos da América. E cá não?
O Dr. Frank Lewis continua: “- O aumento
dos custos da saúde está também a afectar a prestação dos cuidados de saúde por
outros profissionais, particularmente os enfermeiros. Num esforço de poupança,
quase todos os hospitais estão a reduzir o número de enfermeiros ao mínimo
aceitável, e até abaixo disso. E têm vindo a empregar cada vez mais pessoas
menos qualificadas e menos treinadas para sempre que possível substituírem o
pessoal de enfermagem, criando-lhes uns títulos eufemísticos que apenas servem
para esconder a sua falta de treino e de preparação formal.” Mas ficam baratos.
A consequência disto é a “redução da qualidade da assistência de enfermagem
prestada aos doentes internados, sobretudo aos mais graves, a par com um
aumento da sobrecarga laboral e de stress dos enfermeiros”.
Os médicos querem sobretudo tratar os
doentes da melhor maneira possível, e realizam-se pessoal e profissionalmente
com isso. Os administradores, pelo contrário, só se interessam pelos custos, e
é esse o objectivo actual da sua presença nos hospitais. Embora fosse curial
pensar que não, que servissem acima de tudo para facilitar a tarefa dos médicos
e ajudar a criar as condições pessoais, profissionais e tecnológicas para eles exercerem
a melhor medicina possível, que é essa que realmente fica, no fim das contas
todas feitas, mais barata, senão ao hospital com certeza ao País. Por lá têm
tendência para se imiscuir na actividade clínica e depreciar a “clinical
governance”, ao mesmo tempo que só a sua actividade consome cerca de 40% dos
recursos para a Saúde. Recursos desviados da acção directa sobre os utentes dos
hospitais – os doentes.
Para além da limitação da acção médica,
até por falta dessa parte dos recursos alocados às instituições, tem havido nos
EUA um esforço insensível que redunda em dificultar o acesso dos pacientes aos
cuidados de saúde, quer encarecendo-os, quer colocando-os mais longe, ou com
horários muito estritos para a sua prestação. Um outro modo, elaborado e com
uma auréola científica, de afastar doentes dos centros médicos é concentrar
alguns meios mais sofisticados – e caros – apenas nalguns, considerando que
assim conseguirão acumular mais experiência – para além de maior rentabilização
do material lá colocado. A ideia não é, obviamente, desprovida de razão, mas se
essa super-especialização for levada ao exagero – apenas pelo intuito da
poupança – haverá muitos doentes que nunca a eles terão acesso, simplesmente
porque estão muito longe e com dificuldade de transporte, por falta dele ou de
dinheiro para ele, ou de acompanhamento. E muito dinheiro será poupado, por
falta de utilização. Para lá de diminuir, nessas áreas médicas, a massa
crítica, fonte de progresso, e impedir em muitos hospitais a interacção clínica
necessária em momentos cruciais.
Esta pressão economicista está a
desesperar os nossos colegas americanos, a deprimi-los numa época que poderia
ser gloriosa em termos de realização profissional. E terá inapelavelmente
impacto negativo na sua actividade clínica, a agravar-se com o tempo. Mas é só
na América?! Talvez lá tenha chegado primeiro, mas creio que vem a caminho. Eu
diria até que já cá chegou…
In Farpas pela nossa
Saúde, 2006
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