UM CIRURGIÃO, AS
CRIANÇAS E AS MATERNIDADES
Fui aluno em Obstetrícia do Prof.
Albertino Barros, regente da Cadeira, e do Prof. Mário Mendes, do qual tantos
anos depois vim a ser companheiro em Rotary. Tínhamos aulas no que agora é o
edifício da Administração Regional de Saúde do Centro, e que na altura dava
pelo nome de Maternidade Daniel de Matos. Longe do Hospital da Universidade,
que nunca teve Obstetrícia como Serviço nele incluído, porque na altura, e como
aconteceu com a Maternidade Bissaya Barreto, também longe do Hospital dos
Covões, era pretendido que as mulheres dessem à luz afastadas do burburinho, da
agitação e, diga-se, das infecções, que mais ou menos atingem todos os
hospitais. Porque a gravidez não é uma doença, e o nascimento é algo
perfeitamente fisiológico, e devemos dar às crianças a possibilidade de quando
chegam a este mundo o fazerem em paz e sossego. É isso que, no fundo, todos
ansiamos para os dois momentos mais cruciais da nossa vida: quando ela começa e
quando termina.
Lembro-me, aluno e jovem interno, do
momento em que os bebés, depois de limpos e embrulhados para não perderem
calor, eram trazidos até à mãe. Que os olhava como só uma mãe consegue olhar,
como uma parte dela própria, que dela saiu e que vai querer manter por perto o
mais tempo possível ao longo da vida. E ali ficavam, no quarto ou na
enfermaria, junto à cama materna. Lembro-me de o Prof. Albertino dizer que nos
Estados Unidos da América consideravam pouco higiénico e até perigoso manter os
recém-nascidos perto das mães, e por isso tinham começado a juntá-los todos em enfermarias próprias, afastados dos adultos.
Ali na maternidade nunca tinha sido possível implementar isso, porque não havia
condições para tal. Mas uns anos depois, na Europa, surgiu a constatação que é
bom os bebés logo que nascem serem colocados junto às mães, para lhes sentirem
o calor, e o cheiro, e ouvirem a voz, que normalmente os irão acompanhar
durante muito tempo, e por isso se sentirem acarinhados e seguros, o que é um bom começo para a sua vida. E
assim se voltou a fazer na Europa. E o Prof. Albertino, com a sua fleuma,
concluía: “Ora aqui está por que nós, por falta de espaço, andámos durante anos
à frente na Europa!”.
Já como interno de cirurgia, e como
cirurgião, trabalhei no Hospital Pediátrico, criado por Bissaya Barreto, e
quando por lá havia apenas um cirurgião pediátrico. Depois de as maternidades
poderem ser centros materno-infantis, ainda dentro do argumento da proximidade
entre mães e filhos, a lógica da criação dos hospitais pediátricos foi, por um
lado, que a possível patologia dum
recém-nascido é muito específica, e diferente da que é encontrada nas restantes
idades pediátricas, e, por outro, que as crianças não são adultos em tamanho
pequeno, e por isso não deverão ser tratados em hospitais de adultos. Ficaram,
assim, em Coimbra, o Centro Hospitalar de Coimbra, com o Hospital dos Covões, a
Maternidade Bissaya Barreto e o Hospital Pediátrico, este concentrando toda a
pediatria da cidade, e o Hospital da Universidade de Coimbra e a Maternidade
Daniel de Matos.
O Hospital Pediátrico acabou por se tornar
praticamente autónomo, com todas as especialidades, só lá indo eu, e outros,
prestar colaboração muito esporadicamente, sempre que necessário. Na
Maternidade Bissaya Barreto mantiveram-se a obstetrícia e a ginecologia, bem
com a neonatologia, que abarca, como o nome diz, o apoio aos recém-nascidos, na
saúde e na doença. Como cirurgião fui lá
sendo ocasionalmente chamado, por rotina ou de urgência, e do mesmo modo alguns
especialistas doutras áreas: medicina interna, cardiologia, nefrologia,
urologia. Embora a gravidez não seja uma doença, pode haver grávidas doentes,
sempre assim foi; mas agora se calhar um pouco mais, na medida em que as
mulheres cada vez engravidam mais tarde na sua vida. Porque os casais jovens
têm poucas condições económicas, as mulheres, também por isso, mas por desejo
pessoal também, têm uma vida profissional mais activa e nela se aplicam mais
intensamente, e a medicina da reprodução vai conseguindo que concebam às vezes
quando já não o pensavam conseguir. Sendo, pois, as grávidas, em média, menos
jovens, é provável que tenham maior possibilidade de sofrer de alguma coisa.
Por isso tem surgido a ideia de aproximar as maternidades dos hospitais gerais.
Mas fazê-las desaparecer, tornando-as em
mais um Serviço hospitalar, seria levar as crianças a nascerem no meio do
burburinho, da agitação e das infecções. E tal tem acontecido, nalgumas
cidades, por meras razões economicistas, sendo alegado, para as encobrir, que a
natalidade baixou muito. E que, por isso - tem de concluir-se -, os bebés
deixaram de ter direito a um sítio especial para virem ao mundo... Não são em
número suficiente que o justifique… Nada de mais errado! Não é essa a atitude a
ter, tratando as grávidas como doentes e recebendo-lhes os filhos como
resultado dessa doença. E, por outro lado, a falta de “clientes” não pode
justificar a falta de qualidade no seu atendimento… Há é que criar todas as condições para que os
“clientes” aumentem!
E isso passa por maternidades bem
dimensionadas – que em Portugal corresponde a maternidades que possam vir a ter
muitos mais partos do que os que têm agora, já que tanto precisamos que eles
aumentem! -, contruídas num local aprazível, tranquilo, saudável, em que as
grávidas não sejam recebidas como mais um doente, e as crianças cheguem a este
mundo sem sentirem o stress duma instituição hospitalar. E, já agora, perto dum
hospital geral que lhes dê o apoio de que precisarem.
E é esta a visão que um cirurgião tem
deste assunto, visto de fora e não eventualmente deformado pela lide obstétrica
diária. Mas tendo-o acompanhado ao longo dos anos, como profissional,
activamente, daqueles cuja necessidade agora é por alguns invocada para na
realidade extinguirem as maternidades e incluírem-nas nos hospitais. Por falta
de espaço? Por falta de compreensão? Por desprezo por quem dá à luz e por quem
nasce? Espero bem que se encontre o espaço adequado e a compreensão não
falte. Quem nos vem substituir neste
mundo merece. Assim nós os mereçamos.
In Boletim do Rotary Club de Coimbra, Maio de 2020
Considerações judiciosas apoiadas numa longa e vasta experiência segundo deduzi do currículo. Embora não seja especialista na área parece-me racional que a Obstetrícia e a Ginecologia estejam associadas e gozando da autonomia inerente a uma função médica muito particular
ResponderEliminar