E um dia vieram os
médicos
ou
O SERVIÇO MÉDICO À
PERIFERIA EM 1975
Quis o acaso que eu integrasse o curso de
Medicina que começou o Serviço Médico à Periferia, em 1975. Fiz parte nessa
altura da chamada Comissão Nacional de Policlínicos, com representantes do
Norte, Centro e Sul, que foi quem discutiu com o governo a ida dos jovens
médicos para a periferia, e por isso posso falar na primeira pessoa do que
aconteceu, e com conhecimento directo de causa.
O nosso contacto com o Ministério da Saúde
era através da então existente Direcção Geral dos Hospitais, e logo nos
apercebemos que da parte deles não havia uma ideia precisa do que esse
“serviço” deveria ser, de modo que tudo ficou em grande medida entregue a nós próprios,
e à nossa iniciativa e capacidade de organização, em cada Região e depois em
cada grupo formado. Esses grupos constituíram-se ad hoc, por amizades,
simpatias, maior convivência habitual, idiossincrasias, credos políticos, etc.
A sua distribuição pelas várias localizações foi sorteada, depois dos locais terem
sido escolhidos por uma comissão designada para o efeito em cada Região.
Tínhamos feito o internato geral, na
altura composto de um ano de prática clínica (findo o qual nos inscrevíamos na
Ordem dos Médicos) e catorze meses de internato de policlínica, e aguardávamos
o início do internato complementar, pelo qual tiraríamos uma especialidade
hospitalar (os cuidados de saúde primários como especialidade ainda não
existiam). E foi nesse interregno que se veio instalar a possibilidade de irmos
fazer um serviço médico na periferia, fora dos grandes centros e dos hospitais
estatais então existentes, um pouco à semelhança das chamadas “campanhas de
dinamização cultural” dos militares. Recorde-se que estávamos ainda num período
de agitação revolucionária pós-Abril de 1974, com o chamado Movimento das
Forças Armadas (MFA, motor do golpe revolucionário) empenhado em dinamizar e
modificar o interior recôndito do país, dentro do entendimento político
dominante.
Alguns colegas queriam decididamente ir,
por razões políticas, animados de espírito revolucionário. E outros não queriam
ir, também por razões políticas, de sinal contrário. Mas a grande maioria
queria realmente colaborar em algo que ajudasse a dinamizar o país, a torná-lo
melhor, convictos de que se estava a viver uma mudança. Só que daí a saírem da
sua rotina, do seu conforto, faltava um bom bocado, em que um certo egoísmo, ou
egocentrismo, marcava posição… E, sobretudo, viam com preocupação interromper a
sua carreira, ainda mal começada, que ao tempo se resumia à via hospitalar ou à
académica, ou ambas.
A minha postura pessoal dalguma rejeição
assentava, para além da carreira, no facto de achar – e a lógica, apesar de
tudo o que depois se passou, continua a parecer-me presente – que seria apenas
populismo enviar médicos inexperientes para zonas sem cuidados médicos
organizados, em vez de criar verdadeiros hospitais periféricos, povoando-os com
especialistas, e só depois lá colocar médicos em fase de aprendizagem. A isso se
juntava o facto de, como a grande maioria dos colegas de Coimbra, já ter
perdido um ano seis anos antes, aquando da greve estudantil de 1969. Achava, portanto,
que se anunciava simplesmente outro ano de atraso!
Tudo foi discutido em reuniões gerais de
médicos, cujas conclusões, votadas na assembleia, eram transmitidas ao Director
Geral dos Hospitais pelos respectivos elementos da Comissão (concordassem ou
não individualmente com elas…). Acabou por ser decidida a nossa ida, com o
nosso acordo, e o que vou descrever diz respeito à Região Centro, uma vez que
não houve disposições ministeriais que dessem uma forma e um conteúdo definidos
ao trabalho a executar, e que permitissem avaliá-lo depois.
A escolha dos locais recaiu sobre as zonas
“piores”, quer dizer, aquelas com maiores carências, e com mais dificuldades
sanitárias, onde se pressupunha mais necessária a presença de médicos. Isto é,
para além de periferia, escolhemos a extrema periferia. Não pelas vilas onde
sediámos as equipas, mas pelo território envolvente e que seria o objectivo
principal da nossa acção. Esse era o nosso projecto. À minha equipa,
constituída por cinco rapazes e uma rapariga, calhou Castro Daire, terra onde,
como diz o outro, fomos muito felizes, e fizemos amigos, entre eles os três
médicos locais, os Drs. Zeca, Jorge e Júlio, agora já falecidos, e dos quais
guardamos as melhores recordações pessoais. Ofereceram-nos mesmo um jantar
festivo de despedida, nas termas do Carvalhal.
Ficámos a viver numa velha casa parcamente
mobilada (se é que se pode dizer assim…), perto do Hospital da Misericórdia, o
qual tinha ao lado o posto clínico das Caixas de Previdência, onde os médicos
locais, com os quais não mantivemos contacto profissional, faziam umas
consultas, para além de ocasionalmente internarem uns doentes no hospital. Aqui
encontrámos um grupo de militares da dinamização cultural do MFA a pernoitar,
os quais, elucidados por nós que precisaríamos das camas do hospital para deitar
doentes, foram aboletar-se na prisão do Tribunal, felizmente na altura sem
“hóspedes”. Brincávamos então entre nós dizendo que tínhamos começado por meter
o MFA na cadeia!
Organizámos duas enfermarias, homens e
mulheres, num total de 27 camas, com pessoal auxiliar da Misericórdia e quatro
enfermeiros, uma da Misericórdia e mais três do “posto das Caixas”. Estes
vieram voluntariamente trabalhar connosco, também eles entusiasmados com a
novidade e com a obra que poderíamos todos juntos fazer, percebendo que seria
muito mais do que tinham sido até aí chamados a fazer. Estabelecemos as
consultas externas, diárias e com horário fixo, e as urgências, de 24 horas,
todos os dias, incluindo fins de semana, sempre com médico e enfermeiro em
presença física. Recebíamos doentes agudos e crónicos, e traumatizados de todos
os tipos, enviando para Viseu só os que não conseguíamos estudar ou tratar em
condições. Desbridamento de feridas, pensos, suturas, talas, gessos, passaram a
ser a nossa rotina, com doentes internados pelos mais variados motivos, com
visita médica diária e cuidados sempre que necessários. O nosso maior receio no
início eram os partos, porque só um de nós queria ir – e foi – para
Obstetrícia; por isso pedimos ao Director da Maternidade Bissaya Barreto, Dr.
Vicente Souto, que nos desse umas lições eminentemente práticas, e tudo correu
bem igualmente nessa matéria.
Pela relação de amizade que estabelecemos com
outro jovem, o responsável administrativo do posto, conseguimos, mercê também
do momento de agitação que se vivia no país, que o que fosse feito aos doentes
beneficiários das Caixas de Previdência que vinham ao hospital, por doença
natural ou por acidente, fosse imediatamente pago à Misericórdia, mas
movimentando nós o dinheiro respectivo. Desse modo pudemos aplicá-lo no próprio
hospital, em camas, janelas, cozinha, material de consumo e outro, mobiliário
vário, medicamentos. Neste último campo usávamos muitas amostras, mas tudo o resto
que fazíamos a esses doentes era pago, e dava para os que não pagavam nada. E o
afluxo de pacientes foi crescendo de dia para dia. Depois do dinheiro que
aplicámos no edifício e no seu recheio e gastámos com os doentes, deixámos 200 mil
escudos na conta do hospital quando viemos embora!
Mas o objectivo principal era a extrema
periferia, e por isso abrimos seis postos de consulta, um para cada um de nós,
onde íamos uma vez por semana, excepto quando nevava de modo a interromper o
caminho para lá, o que no meu posto de Monteiras aconteceu uma meia dúzia de
vezes. No fim de semana ficava apenas um de serviço no hospital, e esse folgava
na semana seguinte em Coimbra. No entanto, o “seu” posto não ficava sem
consulta, e era um dos colegas que o ia sempre substituir. E também fazíamos visitas
ao domicílio, às vezes num jeep com um dos militares do grupo lá destacado, um
tenente veterinário que foi o único com quem convivemos e que se tornou nosso
amigo. Tendo vivido toda a vida em ambiente citadino, foi para mim um choque
encontrar pessoas para quem a falta de médico era apenas um pequeno pormenor,
já que não tinham electricidade, água canalizada, sanitários, estradas
asfaltadas. Foi para mim uma experiência marcante visitar essas pessoas como
médico, ir às suas casas, comer com elas do que tinham (pão, chouriço,
presunto, queijo, vinho, uma bela sopa cozinhada num pote de ferro na lareira…),
numa mesa de madeira à luz dum candeeiro de petróleo, e que me ofereciam com
gentileza, não como paga de nada mas em sinal de agradecimento pela minha
presença ali com eles.
Alguma dessa gente esquecida esteve
internada no hospital, e muitos outros foram vistos em consulta perto de suas
casas. Foi um país a acordar para outro, e este a perceber que afinal queriam
que ele vivesse. E a nossa ida contribuiu para estabelecer esse contacto, e dar
esse sinal, ao mesmo tempo que estabelecemos uma rede de cuidados que mais
tarde evoluiria para os cuidados de saúde primários. Pondo a funcionar também
um hospital público, com atendimento contínuo de proximidade, resolvendo os
problemas da maior parte dos que nos procuravam, localmente, com uma grande
comodidade para eles e um enorme ganho de tempo, e desviando doentes de
hospitais maiores e com mais recursos, que seriam excessivos. Foi sem dúvida
nenhuma o primeiro passo para um Serviço Nacional de Saúde, que viria a ser
criado no papel quatro anos depois e aperfeiçoado daí em diante.
Ao contrário do que eu pensava, foi
possível fazer o caminho inverso, começar com pouco e ir progredindo, de baixo
para cima, seguindo o modelo criado empiricamente. É que eu não contava com
duas coisas: o estado paupérrimo em termos de cuidados de saúde básicos nos
territórios do interior, em necessidade absoluta de ajuda, por um lado, e, por
outro, o espírito entusiástico e empreendedor da juventude destacada durante
alguns anos para fazer aquele serviço. Foi esse entusiasmo que nos manteve
unidos, sem controlo ou vigilância de ninguém, empenhados afinal em fazer
aquilo que todos gostávamos de fazer: ser médicos. O trabalho de enfermaria, as
consultas, os procedimentos na urgência, as visitas domiciliárias, faziam parte
desse trabalho, a que não éramos realmente obrigados mas que víamos bem ser
muito necessário por parte de quem nos rodeava. Foi muito gratificante sentir
essa necessidade e sermos capazes de nos organizar de modo a satisfazê-la, da
melhor maneira que nos foi possível. E foi sem dúvida um privilégio ter podido
viver esse tempo, de aventura, ilusão e realização, em que crescemos como
médicos e como pessoas. Às vezes perguntam-me se seria bom haver outra vez serviço
médico à periferia, e eu respondo: “Não, já não faz falta. Agora o que é
preciso é que o Serviço Nacional de Saúde continue, sem perder o entusiasmo que
já teve...”.
In Newsletter da Cirurgia C, 2018
Eu fiz o SMP em Fornos de Algodres. Demorava 2h30 a lá chegar. A primeira noite foi dormida num armazém de queijo da Serra. Aroma intenso e insonico.
ResponderEliminarDepois foi por em practica o estilo do hospital de Aveiro num edifício com médicos da caixa. As urgências eram registadas num bloco de mercearia. A farmácia tinha apenas amostras dos laboratórios , todas a monte. Dentro de caixotes de Super Pop. Estive 5 anos por aquelas bandas. Ficou um centro de saúde organizado,com profissionais recuperados e uma nova mentalidade nos doentes.