O FUTURO
DA CIRURGIA GERAL
O futuro a Deus pertence, diz o nosso
povo, falando do futuro imprevisível, aquele que nos limitamos a aguardar
vivendo o dia a dia do modo a que o passado nos conduziu. Mas se soubermos o
que foi o passado, como chegámos ao que somos e fazemos hoje, poderemos ter uma
ideia do que o futuro vai ser. E se tivermos uma ideia do futuro que
gostaríamos de ter, poderemos fazer do nosso dia a dia uma preparação para esse
futuro, orientando-o nesse sentido. Deixaremos então de ter um futuro natural e
largamente imprevisível, mas antes um futuro com algo de artificial, no sentido
de construído segundo um molde do que, de acordo com o que somos agora e como
aqui chegámos, pensamos ser o melhor. O que nem sempre será o caso. Tantos
exemplos há disso, de futuro forçado numa direcção que depois se mostrou
totalmente errada, havendo que arrepiar ou inflectir caminho.
A actividade científica é muitas vezes
intensamente empolgante ao conduzir-nos ao futuro, e actualmente faz-nos
avançar suficientemente depressa para nos levar a suspeitar que a nossa
imaginação não é capaz de abarcar toda a realidade vindoura. Pensamos já que
tudo pode vir a acontecer, mesmo contrariando regras estabelecidas que afinal
não o são, porque afinal mudam ou se tornam no seu total oposto. O futuro que
prevemos através dos resultados da ciência não deve passar de hipótese de
trabalho, que virá a ser confirmada ou não pelo grande teste do tempo e pela
realidade. Não deve, pois, ser considerado desde logo um objectivo a atingir a
qualquer preço mas, simplesmente, uma direcção a ser seguida e susceptível de
ser abandonada se se vier a mostrar errada.
No que respeita à cirurgia geral, a sua
maior alteração no fim do século passado e início deste século foi a introdução
da via endoscópica – laparoscópica, toracoscópica, retroperitoneoscópica -, uma
vez que basicamente todas as grandes intervenções cirúrgicas já eram antes
praticadas. Mas outro aspecto importante
na cirurgia geral foi o desenvolvimento da chamada cirurgia fisiológica.
Durante séculos a cirurgia foi, pode-se dizer, anatómica, quer dizer, de
ressecção, mutiladora, retirando do corpo as partes doentes. Era uma atitude, diga-se, pouco elaborada
(apesar de em muitas situações difícil de executar), de algum modo grosseira, e
os cirurgiões não recebiam da sociedade o mesmo respeito que os médicos, apesar
de intervirem sobretudo quando estes falhavam. Na cirurgia fisiológica
introduzem-se alterações na anatomia com o fim de recuperar uma função
fisiológica desaparecida ou diminuída, ou de conseguir uma modificação no
funcionamento do organismo. Tornou-se possível pelo conhecimento profundo dos
mecanismos fisiológicos em causa, permitindo aos cirurgiões manipular as
estruturas anatómicas de modo a reproduzi-los ou alterá-los. Exemplo disto é o
tratamento cirúrgico do refluxo gastroesofágico, já mais antigo, e, mais
recentemente, a cirurgia da obesidade. A avaliação pormenorizada e sistemática
dos resultados das intervenções bariátricas nos doentes operados permitiu
perceber a sua influência directa na diabetes mellitus (que não apenas pela
redução ponderal), e vai muito provavelmente conduzir a mais conhecimentos na
fisiologia do controlo do peso corporal e na fisiopatologia da diabetes, bem
como no nosso sistema endócrino e noutras perturbações do nosso metabolismo. É
de prever que num futuro próximo doenças como a diabetes possam ser tratadas
directamente pelo cirurgião, no que já se chama de cirurgia metabólica, numa
evolução ao arrepio da habitual, tratamento cirúrgico enquanto não há
tratamento médico.
Não haverá razão no futuro para alterar a
história clínica, o interrogatório do doente e a sua observação, os relatos
operatórios, o registo de tudo isso e da sua evolução, feitos à boa maneira
hipocrática. O suporte informático é muito importante, de modo a que tudo seja
facilmente acessível e disponível para os médicos envolvidos no tratamento de
cada doente, mesmo em instituições diferentes. Os meios auxiliares de
diagnóstico e de intervenção com ajuda de imagem têm-se desenvolvido muito e
espera-se que o façam ainda mais, utilizados seja por imagiologistas seja por
especialistas doutras áreas, incluindo cirurgiões. Cada vez será mais
necessário que os especialistas colaborem uns com os outros, mas não apenas à
distância, o façam de maneira estreita, pessoal, à cabeceira do doente (na
enfermaria, na sala de endoscopia ou de imagiologia) observando-o em conjunto,
discutindo exames e estratégias, pensando colectivamente em soluções. Haverá
que inverter a tendência de certos hospitais em que os vários médicos
envolvidos no tratamento dos doentes apenas comunicam por escrito, nos velhos
processos em papel ou já nos registos informatizados.
A introdução da via cirúrgica endoscópica
veio revolucionar a abordagem operatória dos doentes, tornada muito menos
traumática e permitindo uma alta muito mais precoce. Não veio alterar os
princípios gerais da boa cirurgia, pelos quais se deve continuar a manter um
respeito estrito. As operações permaneceram as mesmas, apenas a via de acesso e
de trabalho se modificou, havendo os cirurgiões que adquirir o know how
da manipulação do instrumental necessário para sua realização, seja
directamente seja por robótica. Mas houve regras operatórias tradicionalmente
transmitidas e que se consideravam fundamentais nalgumas intervenções que a
respectiva execução por via endoscópica veio demonstrar não o serem. Isso
constituiu uma lição a aprender por todos nós: há que ter o espírito aberto
nessa matéria, podendo a boa cirurgia ser praticada de modos diferentes.
A cirurgia estará cada vez mais dependente
da tecnologia, e cabe também aos cirurgiões idealizarem material e instrumentos
que lhes permitam realizar mais facilmente as intervenções endoscópicas, e
proporem a sua concretização. Toda essa instrumentação cirúrgica acompanhará
seguramente o desenvolvimento tecnológico noutras áreas afins da cirurgia, seja
no campo do diagnóstico seja da intervenção. Também neste aspecto a colaboração
entre todos terá de ser cada vez mais estreita, e o cirurgião geral não deverá
abandonar o recurso pessoal a toda essa tecnologia. Em muitos aspectos já o fez
mais do que devia, abrindo mão de abordagens instrumentais diagnósticas e
terapêuticas que lhe estavam perfeitamente ao alcance, perdendo-se assim a
aplicação prática dos seus conhecimentos clínicos e a sua capacidade de
execução manual.
O treino na via cirúrgica endoscópica faz
hoje parte do treino básico do cirurgião geral, e a capacidade adquirida nessa
matéria poderá ser utilizada na realização de múltiplas intervenções em que ela
seja aplicável e vantajosa. Mas há limites com certeza, e situações em que a
via aberta será desejável ou até mandatória. Os cirurgiões gerais não deverão
encarar a via endoscópica como um desafio em que irão ganhando pontos como se
de um videojogo se tratasse: deverão saber quando está indicado usá-la e quando
não, quando poderão insistir nessa abordagem ou ser da mais elementar prudência
desistir.
Trata-se apenas duma via de abordagem, e
não dum objectivo em si. Não faz sentido falar-se numa espécie de especialização
em cirurgia endoscópica – laparoscópica, toracoscópica ou retroperitoneoscópica
– mas sim saber aplicar essas vias quando necessário, na área de trabalho
habitual de cada um. Com o aumento do número de intervenções feitas por via
endoscópica, vai-se criando uma dificuldade acrescida no treino da cirurgia
aberta, o que não se esperaria vinte anos atrás. Mas a tecnologia em evolução
acelerada poderá fornecer meios de treino artificial, com simuladores de gestos
cirúrgicos, para a cirurgia aberta, como já existem para a cirurgia
endoscópica. Para além do recurso à velha cirurgia em modelos animais.
Dois aspectos relacionados com a cirurgia
geral estão hoje muito em voga: a super e subespecialização e a referenciação.
Há a ideia de que só faz bem quem faz muito. E é verdade que a prática
contribui para a perfeição, mas alcançá-la não depende só do número de vezes
que se repetem os mesmos gestos, como parece pensarem os que querem reduzir
tudo a números. A rapidez com que se aprende cirurgia é individual, e está
dependente, nomeadamente, para além das capacidades de cada um, da sua cultura
médica e cirúrgica e da sua experiência prévia e também da concomitante. Naturalmente, um cirurgião que faça só uma
intervenção cirúrgica, para manter a mão terá de a realizar muito mais vezes do
que alguém para quem essa intervenção esteja incluída numa actividade cirúrgica
intensa e variada.
Da cirurgia geral saíram várias
especialidades cirúrgicas, mas isso aconteceu sempre por razões de maior
especificidade na evolução da clínica médica relacionada com determinadas
patologias, e em procedimentos diagnósticos ou terapêuticos específicos que
foram surgindo em relação com essas patologias, a serem realizados pelo próprio
cirurgião. Nunca nasceu nenhuma baseada apenas num determinado tipo de
cirurgia, e com a justificação do número de intervenções realizadas por unidade
de tempo.
É natural que ao longo da sua evolução
profissional um cirurgião geral se vá concentrando nalgumas patologias, mais do
seu agrado ou para as quais é mais solicitado, e daí surja o que poderemos
chamar de superespecialização. Um cirurgião geral, com experiência enquanto
tal, com os recursos técnicos e teóricos daí resultantes, que se dedica mais a
uma parte do seu campo de trabalho. Já não pode ser aceitável que alguém
termine o seu processo de formação básico em cirurgia geral e seja limitado daí
em diante a realizar apenas uma determinada intervenção cirúrgica, ou duas ou
três, repetindo-as monotonamente para o resto da vida ou até se fartar. Nessas
condições nunca chegará a exercer a sua especialidade, terá obtido antes uma
subespecialização, sem possibilidade de aplicar na sua actividade diária,
translacionalmente, todo o manancial de recursos derivados duma prática
cirúrgica mais complexa. Para além disso, é fundamental que cada um tenha
possibilidade de mostrar as suas aptidões e capacidades, de modo a poderem ser
escolhidos os melhores para uma determinada actividade, e não que a escolha
seja prévia a isso. Se o for, muitos de grande qualidade ficarão
necessariamente de fora.
E assim se chega à avaliação, que é a peça
fulcral na referenciação, termo intimamente ligado à ideia de qualidade. As
carreiras médicas, os internatos médicos e o Serviço Nacional de Saúde
conseguiram que nos hospitais de todo o território nacional se pratique boa
cirurgia. Nem sempre foi assim, e houve tempo em que quaisquer casos menos
simples tinham de ser enviados para dois ou três hospitais do nosso litoral,
que eram as referências possíveis na altura. Mas há situações mais complexas e
menos frequentes que, necessitando de meios terapêuticos ou de diagnóstico mais
sofisticados e mais caros, podem justificar que tais meios possam ser
concentrados nalguns centros. Isso não deve significar exclusividade desses
centros no tratamento dos doentes, servirá tão somente para tirar mais
rendimento, clínico e financeiro, dos investimentos feitos.
Também aqui o monopólio, com
desaparecimento de competitividade ou emulação, é um factor de perda de
qualidade. Exceptuando alguns casos de patologias raras, e que por isso são
pouco frequentes, se quisermos não só concentrar algumas patologias mais
complexas num número limitado de centros mas retirá-las por completo e
obrigatoriamente de todos os outros, iremos seguramente desaproveitar a
capacidade cirúrgica instalada em muitos hospitais periféricos, e levar a médio
prazo à sua degradação, por falta de estímulo para os profissionais lá
trabalharem. Por outro lado, fica muito caro tratar em centros altamente
equipados casos que poderiam ser tratados com êxito noutros centros,
contrariando assim uma das razões para a concentração dos meios mais
diferenciados.
Com certeza que deve haver centros de
referência, tendo essa denominação dois significados cumulativos. Por um lado,
centros de elevado grau de diferenciação, mais que os outros, e que por isso
lhes servem de referência, fornecendo-lhes exemplo, orientação e eventualmente
treino; por outro, centros para onde podem ser referidos casos mais complicados
e a precisarem de meios técnicos e humanos mais diferenciados.
Os centros de referência não podem ser
designados por nomeação ministerial apenas porque sim: têm de ganhar direito a
essa designação. E ela terá de ser baseada numa avaliação dinâmica de todos os
centros existentes, em termos quantitativos (número de doentes tratados) e
qualitativos (indicações postas, listas de espera, resultados conseguidos,
complicações, trabalho científico produzido e a sua qualidade, contributos para
o progresso na área, apoio a outros centros). Num país como o nosso, com uma
boa cobertura hospitalar em termos de cirurgia geral, a minha proposta seria de
se criar, para algumas patologias, uma rede de centros de referência com
hospitais afiliados, com planos de actuação comuns, realização de exames, troca
de experiências, avaliação conjunta de resultados, treino inter-hospitalar de
especialistas e de internos. Para além de se aproveitar o que cada um sabe e
tem condições para fazer, sem sobrecarregar um centro de alta diferenciação com
casos que não necessitam dele, tornar-se-ia possível aproveitar ao máximo os
meios concentrados sem ter de haver concentração dos doentes. Isso permitiria
que doentes com patologias mais complexas ou menos frequentes pudessem ser
tratados mais perto de casa, em segurança, sem terem de voltar a ser
concentrados em dois ou três hospitais do litoral português, desaproveitando a
capacidade cirúrgica existente em todo o território nacional.
A relação entre centros de referência e
hospitais afiliados teria de ser baseada numa avaliação permanente e eficaz da
sua actividade e dos seus resultados, no sentido da sua acreditação ou
renomeação. E seria possível o eventual recrutamento para os centros de
referência de cirurgiões que se destacassem nos hospitais mais periféricos.
Para isso a mobilidade dos profissionais teria de ser a regra: a imobilidade
pode ser fonte de acomodamento e de perda de qualidade.
Outra ideia às vezes avançada é em cada centro
de referência se reduzir a um mínimo os cirurgiões encarregados da cirurgia em
questão, para lhes aumentar a experiência pessoal nessa cirurgia. Sem pôr em
questão que se superespecializem alguns cirurgiões, se concentrarmos um tipo de
cirurgia em dois ou três cirurgiões e afastarmos dela todos os outros, com que
massa crítica ficaremos então? Dois ou três cirurgiões. E a mesma observação se
poderá fazer a nível nacional, se houver dois ou três centros com dois ou três
cirurgiões cada. Pelo contrário, se
houver mais cirurgiões envolvidos para além desses (e aí outra virtude do tal
agrupamento de centro de referência com centros afiliados), a massa crítica
será muito maior, assim como a possibilidade de progresso e de transmissão
desse progresso. Para além, repito por muito importante, da possibilidade de
eventual renovação das equipas por cirurgiões com muita qualidade individual e
que doutro modo iriam passar a sua vida profissional desaproveitados. E um país
pequeno como o nosso não se pode dar a esse luxo.
Finalmente, um outro aspecto que os
centros de referência cirúrgicos deverão contemplar é a multidisciplinaridade,
isto é, haver intercâmbio protocolado e colaboração estreita, pessoal, entre o
cirurgião geral e as outras áreas profissionais, nomeadamente outras
especialidades médicas, envolvidas no tratamento das patologias em causa. O real êxito dum centro de referência
cirúrgico está alicerçado num apoio multidisciplinar, e não só na componente
cirúrgica. A abordagem dos doentes, seja diagnóstica, terapêutica ou para
seguimento, deve ser feita em conjunto e estar estabelecida nesse sentido. Aqui
mais uma vez se reforça a absoluta necessidade dessa colaboração ser feita à
cabeceira do doente, na enfermaria ou noutro local, e não unicamente por carta
ou registo num sistema informático.
Mas a multidisciplinaridade desejável não
deverá implicar uma miríade de especialistas, ou antes, de subespecialistas, à
volta do doente, cada um responsável por uma sua pequenina parte, e muitas
vezes sem conseguirem interagir dum modo perfeito por não terem uma boa visão
do conjunto, por falta dum conhecimento suficientemente amplo, dando corpo ao
ditado popular de que todos juntos não valem um. Multidisciplinaridade, sim,
mas envolvendo especialistas com preparação particular em determinadas áreas da
sua especialidade sem, no entanto, ignorarem ou porem de parte tudo o que não
seja isso.
Terminando, a rede de referenciação
cirúrgica como a imagino e a descrevo atrás permitiria utilizar os meios
disponíveis, humanos e tecnológicos, da melhor maneira: tratar com poucos meios
os casos mais simples, reservar os meios mais diferenciados para os casos que
deles verdadeiramente necessitem. Criando uma hierarquização de competências e
meios em função das necessidades dos doentes, com a possibilidade de
constituição dum “pool” de cirurgiões interessados capazes de se candidatarem a
ser os melhores numa determinada área.
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