domingo, 30 de agosto de 2020

CONFIANÇA. É CURIOSO…

Num inquérito feito no ano passado, os portugueses colocaram os médicos em segundo lugar na confiança que têm nos vários profissionais.  Em primeiro lugar ficaram os bombeiros, e em terceiro os professores. Em último ficaram os políticos. Quer dizer, os profissionais em que a população portuguesa mais confia são os bombeiros, os médicos e os professores. E aqueles em que menos confia são os políticos.
E é interessante saber que no Brasil a maior confiança é também atribuída aos mesmos profissionais, embora a ordem seja outra: primeiro os médicos, depois os professores e em terceiro os bombeiros. 
Por isso não deixa de ser curioso que todos os médicos tenham de ter conhecimento, e estar avisados, desta graça: “se correr tudo bem com o doente, foi graças a Deus; se correr mal, foi culpa do médico…”.
O que, curiosamente também, não deixa de acontecer do mesmo modo com os bombeiros… e com os professores…
Mas os médicos, cientes disso, conseguem viver com isso. Conseguem trabalhar, esforçar-se para que tudo corra bem, procurar que haja as melhores condições para que os seus doentes sejam tratados da melhor maneira possível. Fazem-no como profissionais que são, não para serem votados no topo da lista das pessoas em quem o povo mais confia. Mas a verdade é que há muita gente que reage para com os médicos de modo diferente do daquela graça, e isso é com certeza bom, recompensador e estimulante. E por isso lá vão para o cimo da tal lista…
Houve um mau resultado num lar de idosos com más condições sanitárias durante uma pandemia, contra a qual o país lutava, e luta. De quem é a culpa? Dos médicos, pois de quem mais?!…
Nada de novo. Mas não deixa de ser curioso.

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

EM COIMBRA, DOS DOIS LADOS DO MONDEGO

As cidades crescem pela periferia, não pelo centro. E quem não sai do centro arrisca-se a perder a real perspectiva da cidade, deixando de a conhecer. E quem não conhece uma cidade não pode fazer nada por ela.
À medida que as cidades crescem, o seu centro, dia a dia mais velho e que outrora acumulava tudo, torna-se cada vez de mais difícil acesso, quer de dentro quer de fora. Há, por isso, que descongestionar a cidade, retirando-lhe toda a pressão na sua parte central, de modo a que ela possa continuar a ser habitada com qualidade, sem poluição ambiental, quer dos gases emanados pelos motores quer do ruído, e com possibilidade de nela se circular com facilidade, a pé ou de carro.
Coimbra não é excepção. A partir do burgo inicial, no lado direito do Mondego, foi-se espraiando, alargando, passou para a outra margem, englobando e ultrapassando largamente os conventos outrora na sua periferia do lado de lá do rio. A própria Universidade, ao crescer fê-lo para fora de muros do burgo, com a construção dos colégios no que foi depois chamado Rua da Sofia. Não fôra a cedência que o rei lhe fez do paço real, teria provavelmente crescido por essa periferia, sem o fazer no centro da cidade, com a destruição da alta coimbrã. E se não tivesse ficado acantonada nessa alta destruída e ocupada, sem possibilidade de crescer, poderíamos ter hoje, para além do paço das Escolas, um verdadeiro campus universitário (do lado direito ou esquerdo do Mondego…), e não vários polos e edifícios espalhados pela cidade.
Na Saúde, Coimbra teve a sorte de ter tido há 60 anos um homem de iniciativa e visão chamado Bissaya Barreto, que conseguiu que a assistência médica hospitalar na cidade também se espraiasse para fora do único hospital então existente, o Hospital da Universidade, no centro urbano, e para a periferia da cidade, para a outra margem, numa localização de fácil acesso, quer de dentro quer de fora da cidade, e onde tivesse espaço para crescer, sem ter de destruir nada e sem provocar um caos urbanístico e rodoviário. Foi o segundo Hospital de Coimbra, que ele chamou Hospital da Cidade. Integrado no Centro Hospitalar de Coimbra, juntamente com uma Maternidade (Bissaya Barreto) e o Hospital Pediátrico. Coimbra passou a ter, portanto, dois Hospitais Gerais Centrais.
Na hierarquização de recursos humanos e tecnológicos, os Hospitais Centrais são o topo, referência final e fim de linha para os outros, ao mesmo tempo que acolhem todos os doentes que a eles se queiram dirigir directamente. Está calculado que cada milhão de utentes necessita de ter acesso a um hospital desses. A Região Centro tem dois milhões e trezentos mil habitantes, deverá ter pelo menos dois Hospitais Gerais Centrais. E durante um período de 40 anos teve-os, em Coimbra, um de cada lado do rio, trabalhando paralelamente, fornecendo serviços de muita qualidade, complementarmente, com Serviços únicos em patologias ou situações mais raras, ou como possibilidade de segunda opinião na grande maioria, numa base de emulação e competitividade que levou a um desenvolvimento nunca visto na Saúde da cidade e da Região.
Coimbra, maior cidade da Região Centro, sede da segunda maior Universidade do país, com uma Faculdade de Medicina grande, múltiplas Escolas e Institutos de Investigação e, por isso, cheia de profissionais, professores, alunos, formadores, formandos, internos, doutorandos, investigadores, na área da Saúde, bem como, naturalmente, muitos doentes. Com todas as condições para dar o mais eficaz e mais completo uso a tudo isso, quer em termos de assistência médica, quer no ensino e na investigação. Com dois hospitais centrais na Região Centro centralizados nela, como no Norte o estão no Porto e no Sul em Lisboa.  Foi um período em que foi capital da Saúde, e em que tudo correu bem nesse campo.
Em 2010 a Comissão Europeia sugeriu a redução do número de hospitais em Portugal, por razões economicistas: o que gasta dinheiro na saúde é tratar doentes, e menos serão tratados se tiverem dificuldade de acesso aos cuidados de saúde, por eles existirem em pequena quantidade ou longe. Nessa conformidade, uns foram fechados e outros fundidos. Em 2011, sem qualquer estudo prévio ou necessidade sentida, foram fundidos o Centro Hospitalar de Coimbra e o Hospital da Universidade de Coimbra, no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.
Sem plano definido para o futuro, porque formado ad hoc e não porque houvesse alguma vantagem avaliada como tal, o caminho tomado na sua gestão foi a progressiva concentração de todos os serviços e valências no HUC, a pouco e pouco se eliminando “o outro“ Hospital Geral Central, o Hospital dos Covões. Este foi sendo esvaziado de recursos humanos e de especialidades, mais os respectivos doentes, tudo acumulado no HUC, deixando praticamente de poder funcionar como hospital e perturbando severamente o funcionamento do outro. Felizmente, a tecnologia lá instalada foi deixada ainda ficar, o que permitiu que na pandemia de covid-19 pudesse ser o hospital de referência em Coimbra para o seu tratamento, e por isso sem haver necessidade de tendas, hospitais de campanha ou camas em pavilhões desportivos, como aconteceu noutras cidades do nosso país.
Durante muitos anos os dois Hospitais Gerais Centrais de Coimbra conviveram entre si e com quatro clínicas privadas, sem sobressalto. Mas, mal foi iniciado o caminho de desactivação progressiva do Hospital dos Covões, surgiram mais duas clínicas, dois hospitais privados, e o crescimento de actividade destes tem acompanhado o decréscimo na do Hospital. Parece assistir-se a uma verdadeira transferência dum hospital público para dois hospitais privados, que só foi interrompida pela covid-19, tratada nos Covões e de que os privados se protegeram, praticamente encerrando portas, “para furtarem os doentes a esse contágio”.
Resumindo, ao fim de nove anos de fusão, para a qual não havia nenhuma indicação técnica, não foi encontrada qualquer vantagem, nem económica nem de ganhos em saúde, na sua execução. Pelo contrário, a acumulação de profissionais e de doentes num dos dois hospitais públicos, com progressivo encerramento do outro, teve mau resultado para ambos! Com horas de espera por atendimento na Urgência, salas de espera sem condições, com doentes em pé, ao frio ou ao sol, ou metidos em contentores nos parques de estacionamento sem lugar para estacionar, superlotação de doentes, taxas de infecção hospitalar que levaram já ao encerramento de Serviços, listas de espera imensas e cada vez maiores, para consultas, exames e tratamentos, até de doentes oncológicos, entregues para resolução e pagos aos hospitais privados que, na verdade, vivem disso, este é o quadro dum Hospital encravado na cidade no meio do trânsito e com filas enormes de acesso rodoviário. E que não foi sempre assim.
A actividade clínica privada é muito respeitável, e é útil que exista, mas num país que preza tanto uma das suas maiores conquistas, o Serviço Nacional de Saúde, não se pode substituir a esse serviço público! Todos os cidadãos têm direito à saúde no SNS, em tempo útil, e não obrigatoriamente postos esquecidamente em listas de espera enviadas para fora dos hospitais públicos a que se tiram meios para tratar os doentes! O acesso à medicina privada tem de ser voluntário e não obrigatório por cuidados de saúde públicos inexistentes ou de má qualidade, ou com tempos de espera inaceitáveis! A medicina privada tem de ser complementar da pública, não no sentido de se fecharem hospitais públicos para se abrirem privados, e não para uns tratarem umas doenças mais simples ou mais baratas e outros as mais complicadas e que fiquem mais caro, mas complementar no sentido de possibilidade de segunda opinião, ou de escolha de médicos diferentes, ou de outra qualidade de assistência. Complementar como deve ser entre hospitais públicos. Porque o monopólio é sempre gerador de maus resultados, mais tarde ou mais cedo. A pluralidade é o motor do progresso, é o que leva a poder-se seleccionar, estimular e aproveitar os melhores.
Quer dizer, um hospital público não pode ser substituído por privados. Até pela formação profissional, quer pré-graduada quer pós-graduada, que é feita no público. Eliminar um hospital público em Coimbra leva a menos lugares para formação especializada na cidade e, portanto, no país. E menos lugares para especialistas se fixarem em Coimbra. E menos lugares para aulas práticas e estágios de alunos de medicina, que entram na Faculdade de Medicina às quatro e cinco centenas por ano, e vão entrar ainda mais no ano que vem. O convénio já feito entre a direcção da Faculdade e um dos dois hospitais privados da cidade poderá substituir as aulas e estágios naquele hospital, onde se realizavam até agora?!...
Em conclusão, o problema que se criou em Coimbra na sua assistência médica hospitalar, com necessária repercussão na Região Centro, e que trouxe o povo às ruas, já por três vezes, tem a sua causa bem identificada: a fusão de hospitais feita há nove anos.  A fusão que, na realidade, fechou um dos dois Hospitais Gerais Centrais. A fusão que nunca se demonstrou ser necessária e que mostrou ser prejudicial. E que, por isso, tem de ser revertida. Por quem seja responsável pela política de saúde hospitalar neste país. E por quem seja responsável pela Saúde em Coimbra.
In Revista Saúde, Campeão das Provincias, Agosto, 2020

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

UMA FUSÃO HOSPITALAR POLÍTICA

A fusão do CHC com o HUC, criando o CHUC, foi de causa puramente política. Não houve qualquer estudo, ou evidência de necessidade, ou sequer de melhoria, de natureza técnica ou económica que a justificassem.
É agora cada vez mais evidente que essa fusão foi um fracasso, tecnicamente e economicamente, com o progressivo desmantelamento e encerramento dum dos Hospitais Gerais Centrais de Coimbra (Hospital dos Covões) e a consequente e progressiva pandemonização do outro (HUC), tolhendo-lhe o progresso, com crescente limitação de acesso e ineficácia da reposta, com cada vez maiores listas de espera, por acumulação nele de doentes e de patologias que até antes eram divididos pelos dois. Uma macrocefalia hospitalar que eliminou folgas para crescimento e desenvolvimento, ao mesmo tempo que a diversidade e a possibilidade de debate e segunda opinião a nível hospitalar. Com repercussões negativas na Saúde em Coimbra, na Região Centro e no País.
A solução para um erro praticado é corrigi-lo. Neste caso, desfazer a dita fusão, e devolver a autonomia ao Hospital dos Covões. Tal com é, aliás, solicitado na Petição pública à Assembleia da República “DEVOLVER A AUTONOMIA AO HOSPITAL DOS COVÕES – PELO DIREITO AO ACESSO A CUIDADOS DE SAÚDE DE QUALIDADE”, em avaliação na Comissão Parlamentar de Saúde para posterior votação em plenário do Parlamento.
É um problema político - do ponto de vista técnico é evidente o erro -, que tem de ter solução política. Pelos políticos. Antes de mais pelo ministério da saúde e o governo. As forças políticas locais já manifestaram clara e publicamente as suas opiniões neste assunto. Mas iremos saber, e ver de modo também claro, qual a posição dos vários partidos com assento parlamentar, de acordo com o seu voto na votação da referida Petição na Assembleia da República que vai ter lugar.
Texto da Petição:
"DEVOLVER A AUTONOMIA AO HOSPITAL DOS COVÕES.
PELO DIREITO AO ACESSO A CUIDADOS DE SAÚDE DE QUALIDADE.
Desde a criação do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) pela junção do Centro Hospitalar de Coimbra (onde se engloba o Hospital dos Covões) com o Hospital da Universidade de Coimbra (HUC), que se tem assistido não a uma fusão mas a uma destruição de um hospital central.
Sem qualquer razão assistencial, social, urbanística, científica, ou outra razão aceitável, o Hospital dos Covões tem sido progressivamente desprovido de recursos humanos e recursos materiais, despido de serviços médicos, reduzindo significativamente a capacidade de prestar cuidados de saúde com a qualidade que habituou a população. A centralização de cuidados e serviços médicos não foi solução, apenas trouxe dificuldade no acesso (listas de espera enormes), o “amontoar” de doentes num só hospital sem aparente capacidade de resposta, a redução da qualidade e um risco acrescido para os doentes e profissionais.
Se o Hospital dos Covões já tivesse sido encerrado, o colapso da saúde em Coimbra teria sido muito maior do que foi nesta era COVID. Sim, foi o Hospital dos Covões o epicentro do combate à pandemia em Coimbra. É preciso aprender com os erros de gestão em saúde do passado, para que o presente não se repita no futuro.
É imperativo reverter a "pseudo" fusão do Hospital dos Covões com o HUC, restabelecendo a autonomia e a capacidade que estava há anos instalada naquele hospital central e que resolvia todos os problemas de saúde da população que a ele recorria. Os trabalhadores do Hospital dos Covões estão tristes, desmotivados e revoltados pelo reiterado assédio moral a uma instituição com 47 anos de existência, que é acarinhada por profissionais e doentes. Insistir na continuação desta fusão é continuar a insistir na negligencia de gestão em saúde que se assiste em Coimbra há anos, e num crime contra o direito constitucional do acesso a cuidados de saúde.
É um dever do poder político assegurar que todos os portugueses tenham acesso a cuidados de saúde de qualidade e atempados num serviço público. Um Hospital dos Covões a funcionar em pleno é essencial para se cumprir esse dever, continuar a destruí-lo é um crime que lesa a pátria.
Por tudo isto e muito mais: Dizemos SIM ao Hospital dos Covões!"

terça-feira, 18 de agosto de 2020

AS LISTAS DAS CIRURGIAS

É bom que os doentes que necessitam de ser tratados o sejam, depois de se saber o que têm e qual o tratamento mais apropriado, seja cirúrgico ou seja médico. Como também é muito importante que os doentes tratados sejam seguidos e avaliados, para se ajuizar da eficácia do tratamento realizado e evitar atempadamente as recidivas ou os agravamentos da doença.
A grande bandeira do ministério da saúde tem sido tão só a das “cirurgias” realizadas, contabilizando-as a aumentar e as respectivas listas de espera a diminuir. A parte cirúrgica dos hospitais é a mais rentável em termos económicos, e é também a que mais se presta a notícias mais ou menos bombásticas nos jornais. É evidente que todos percebem que a saúde dum país é muito mais que isso, basta lembrar os doentes com acidentes vasculares cerebrais, insuficiência cardíaca, ou renal, ou respiratória, terminal, artrite reumatóide, Alzheimer, cancro inoperável, SIDA, doenças do neurónio motor,  pés diabéticos, isquémias crónicas dos membros inferiores, etc., etc., tantas situações muito menos apetecíveis para os hospitais. Mas enfim, prestemos por um momento atenção aos números apresentados pelo ministério sobre as “cirurgias”, e tomemo-los até por correctos.
Têm aumentado, mas sobretudo à custa de intervenções realizadas fora do hospital onde os doentes foram observados e a indicação cirúrgica posta. O que significa antes de mais uma falência desses hospitais. E muitos doentes têm sido enviados para fora do país (por exemplo para Espanha e para Cuba), o que significa uma falência do nosso sistema de saúde, aproveitando-se do bom funcionamento do dos outros. Diferente seria se houvesse intercâmbio de doentes, mas isso não acontece. E não é por falta de preparação ou conhecimentos dos nossos especialistas, por enquanto.
Os doentes deveriam ser observados, estudados, operados e seguidos pelo mesmo médico, ou pela mesma equipa, sendo eles próprios a fazer essa escolha, até como teste de qualidade. Não é isso que se passa, podendo sim escolher entre hospitais  perfeitamente desconhecidos, a centenas de quilómetros de casa, do “seu” hospital e dos “seus” médicos, para onde têm de se deslocar por conta própria, várias vezes. Para ocasionalmente lhes ser dito que não têm indicação cirúrgica… Ou terão ou não, quem vai saber isso ao certo?... Que voltem ao hospital de origem para tirar isso a limpo!  E a quem vão recorrer se lhes for feita uma operação errada, houver complicações, maus resultados? A verdade é que 65% dos vales-cirurgia emitidos não foram utilizados, por estas ou outras razões. Poder-se-á falar de êxito deste programa?!
Quando a intervenção tem lugar no próprio hospital, é em geral fora de horas e a pagamento extra. As estatísticas propaladas não falam de custos, o que é de estranhar em quem se apressa constantemente a pôr um preço na saúde de cada um de nós. A verdade é que, nalguns hospitais, muitas dessas operações para esvaziar listas de espera, sobretudo em cirurgia do ambulatório sem instalações dedicadas, estão a ocupar salas de operações para cirurgia major. Por um lado tratam-se pequenos casos, por outro acumulam-se doentes graves.
Finalmente, uma outra maneira utilizada para impedir o aumento ou a manutenção das listas de espera para cirurgia é não aceitar doentes novos na consulta. Ou fechar consultas, em especial de patologias “mais caras”, tornando assim mais difícil o acesso desses doentes a quem lhes ponha uma indicação cirúrgica e os coloque numa lista de espera para cirurgia. Este aspecto prende-se com a gestão hospitalar liberalizada e entregue a quem descarta a função de cada hospital em termos da saúde nacional e faz todo o tipo de “engenharias” para que o “seu” hospital dê menos prejuízo que o do vizinho. E a saúde nacional não precisa de engenheiros, precisa é de médicos que tratem os doentes. Todos os doentes do nosso país. E os de Espanha ou de Cuba, já agora, se cá vierem para ser tratados.
In Farpas pela nossa Saúde, 2008

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

O SILÊNCIO DOS SURDOS

Diz o nosso povo que “o pior cego é o que não quer ver”. De igual modo “o pior surdo é o que não quer ouvir”, aquele que se força a um silêncio circundante que depois interpreta como entende, em geral de aceitação tácita por todos os que o rodeiam de tudo o que faz e diz, de modo a viver tranquilo, na convicção de que vai no caminho certo para ser depois recordado da melhor maneira.
Tive em Inglaterra um Professor com quem aprendi muito, eu e todos os que tiveram a felicidade de com ele trabalhar, vindos dos quatro cantos do mundo. Britânico típico, contido e de poucas falas (à excepção de dias de festa, em que se abria mais), impunha respeito naturalmente, pelo trabalho científico produzido mas sobretudo porque era uma referência para o Serviço em termos humanos e profissionais, a quem se recorria nos momentos de aflição, que ele tomava invariavelmente como seus deixando as eventuais repreensões internas para depois de passada a crise. Pois era clássico esse Professor  dizer aos seus colaboradores: “Não me deixem fazer asneiras, avisem-me”. O que isto não significa de inteligência, de espírito de abertura, de vontade constante de aprender e evoluir, e também de ensinar! E que prova de autoconfiança nas suas capacidades e conhecimentos! A este respeito ocorre-me também, gratamente, um outro Professor que tive, quando aluno da minha Faculdade, que publicou um livro sobre “O erro de diagnóstico”, apresentando erros seus e discutindo-os.
A Saúde no nosso país sofreu uma reviravolta nos últimos anos, baseada fundamentalmente no facto de a gestão clínica ter cedido a primazia, por mecanismo legislativo, à gestão administrativa pura e dura. Muito se tem escrito sobre isso, mas muito já se começa claramente a perceber do que vai ser o resultado final de tal mudança. Os administradores hospitalares todo-poderosos tornaram-se a eles próprios o centro dos hospitais, desequilibrando por isso o barco da saúde - esperemos que ainda se vá a tempo de evitar o naufrágio que se anuncia.
Procurou-se criar uma forma de gestão empresarial aplicada aos nossos hospitais públicos, mas não o conseguiram fazer sem eles serem descaracterizados, modificados, mudados na forma e ao mesmo tempo deformados no seu conteúdo. Tudo para que coubessem no esquema de gestão inventado. É como comprar um sistema informático para uma empresa mas para ser capaz de o aplicar ter de mudar toda a empresa. Em vez de ter a capacidade de construir um programa (ou modificar um já existente) de modo a registar e coordenar com eficiência o trabalho normalmente produzido.  
Cada vez mais vozes se vão erguendo contra o que está, mas sem resultado, sem qualquer inflexão no programa talhado pelo governo nesta matéria, para além de pequenas mudanças que a política do dia a dia recomenda, dentro daquele princípio político de que “é preciso mudar alguma coisa para ficar tudo na mesma”. E a verdade é que os problemas fundamentais criados pela nova forma de gestão hospitalar se mantêm inalterados, pesem embora as vozes discordantes.
Querer hospitais geridos como empresas, mas para alguns nomear “gestores” com um marcado e por todos reconhecido espírito de funcionário público, no significado mais monolítico, limitado e burocrático do termo, não poderia ter bom resultado. Retalhou-se o país em dezenas de empresas públicas de saúde geridas ao bel-prazer e livre arbítrio de quem foi posto a dirigi-las, com resultados no terreno muito diversos. E o Estado ficou refém dessas pessoas: a única intervenção que pode ter na gestão é a sua substituição por maus resultados, financeiros, clínicos ou ambos - sempre tardia, portanto.
A nova ordem hospitalar dizia-se pretender agilizar a gestão dos hospitais. E, no entanto, levou indirectamente à realidade de nalguns reinar a burocracia mais perra e desmotivante, enquanto governamentalmente se entrou pela obrigatoriedade de horários médicos rígidos, totalmente desadequados à maior parte da actividade clínica e em grande medida atrofiando-a.
Qualquer empresa procura contratar os melhores, oferecer-lhes condições de trabalho (às vezes bem mais importantes e sedutoras para os mais aptos e ambiciosos do ponto de vista intelectual, e bem mais baratas, do que qualquer engodo financeiro), e entusiasmá-los num projecto clínico de que façam parte e pelo qual se batam. Um projecto ganhador, lógico, bem estruturado, e não uma “coisa” puramente administrativa, sem base clínica séria e por isso sem futuro e condenada ao fracasso em pouco tempo, tratando-se duma empresa que é um hospital.
Encher os hospitais de administradores e querer fazer acreditar que é da função deles que dependem os bons resultados da instituição é um erro crasso. Pensar que os médicos que mais conversam com os administradores e lhes dizem que sim a tudo é que são os tais com capacidade para gerir os serviços, é outro. E maior ainda quando se pensa que um bom médico, com trabalho científico produzido, procurado pelos doentes e respeitado pelos colegas, não é por isso capaz duma função tão complexa e elevada como “gerir”.
Foi a desierarquização introduzida deste modo nos hospitais que os levou a uma situação que, a não se reverter rapidamente, se tornará insustentável. Por enquanto vai valendo um resto da organização que existia pelas carreiras médicas. Trocou-se algo com princípio, meio e fim, e que por isso durou, com êxito, durante dezenas de anos, por uma coisa que não tem estrutura que lhe permita sobreviver muito mais tempo.
Foi animador ver recentemente o político motor de tudo isto temer que o “serviço público dos hospitais EPE” possa estar em perigo. Tem razão, tardiamente. Teria sido bom vê-lo reconhecer também que tinha igualmente razão quando, antes de ser ministro, considerava as taxas moderadoras no internamento hospitalar, implementadas depois por ele, inconstitucionais e aberrantes.    
O problema maior para os ideólogos da nova ordem na saúde é que antes as coisas funcionavam sem sobressaltos. E agora não. E cada vez mais encontramos doentes portugueses, a viver em Portugal, que tiveram de ir a Espanha, e a Cuba… E hospitais que limitam as patologias a tratar adentro das suas portas porque algumas saem caro, e preferem enviar os doentes para outros, perto ou longe - para outras empresas, elas que gastem o dinheiro. O tratar doentes é sopesado do ponto de vista económico-financeiro, variando entre quem tem vistas largas de supermercado ou visão de merceeiro de bairro. O aspecto clínico é apenas secundário, adaptado ou distorcido perante os contratos estabelecidos na esfera administrativa pura e simples. Insiste-se, por exemplo, em realizar centenas de pequenas intervenções, no projecto da cirurgia do ambulatório, mas ocupando para tanto as salas de operações onde cancros e outra grande patologia deveriam ser operados. E a verdade é que o ministério da saúde ficou refém da lei que elaborou: não pode intervir nestas situações, mesmo que oiça falar delas e saiba que elas existem.
Mas de tudo isto o aspecto mais preocupante, para já mas principalmente a médio e a longo prazo, é o da formação médica. Também aqui se está a viver dos que se formaram e ganharam experiência na ordem antiga, isto é, no SNS antes da reviravolta e do fim real das carreiras médicas. Estas estão longe de ser um problema apenas sindical de contratação colectiva de trabalho ou de patamares de progressão salarial. Muito para além disso elas foram durante anos o garante dum esforço constante de aperfeiçoamento e um estímulo eficaz para a produção de trabalho científico, de investigação clínica, de revisão de resultados, e ao mesmo tempo um sistema de avaliação com critérios definidos e concursos públicos sujeitos a discussão e escrutínio administrativo, científico e legal. Tudo acabou, a desierarquização científica e técnica obtida pela nova lei de gestão hospitalar vai paulatinamente conduzindo à anarquia e ao salve-se quem puder.
Ouve-se isto a cada passo. Não querer ouvir e imaginar um silêncio circundante atento e venerador não adianta. E não tem futuro.
Para além disso, criaram-se nos hospitais duas situações perfeitamente antagónicas mas ambas profundamente prejudiciais para a prática médica. Dum lado, tarefeiros médicos contratados à hora, sem possibilidade de integração com os colegas com quem trabalham episodicamente em variadas instituições. Do outro, médicos forçados a serem funcionários públicos de horário rígido como qualquer funcionário manga-de-alpaca, com redução da sua actividade clínica àquele número de horas. Mesmo que se diga agora que não é bem assim, é: senão para que serviria o controlo biométrico pelo dedo?! Uma originalidade portuguesa, em abono da verdade, que não existe noutro país, nem com dedo nem doutra forma qualquer - por que será?!
Por tudo isto já se esperava uma quebra na qualidade da medicina, com repercussões na saúde. Que vão aumentar exponencialmente, com a formação contínua pós-graduada posta em causa pelo desaparecimento das carreiras e o afastamento dos mais diferenciados. Foi sem surpresa que se viu a posição de Portugal na Europa no campo da saúde baixar do 6º lugar (quando éramos 12º a nível mundial) para 19º no ano passado e agora para 26º. A descida foi rápida, mas surpreendido só terá ficado quem não ouvia o que se dizia. 
A qualidade da medicina foi sacrificada à vertigem administradora das novas administrações. Tudo tem que girar à volta dos administradores - centro do sistema hospitalar – e daí também não veio mais-valia económica, já se esperava e foi o que aconteceu, só quem não queria ouvir se espantou: o défice financeiro da saúde não diminuiu, antes aumentou, e muito. Pudera, a saúde mais barata é a que se consegue com a boa medicina, e a função dos administradores hospitalares deveria tão-somente ser ajudar a criar as condições necessárias para que ela possa surgir. Praticada e gerida pelos médicos, clinicamente.
In Farpas pela nossa Saúde, 2008

terça-feira, 11 de agosto de 2020

SERVIÇOS PÚBLICOS  –
- OU LUCUBRAÇÕES DUM MÉDICO NUMA TARDE DE VERÃO

Houve alturas neste país em que o que era público é que era bom, porque era controlado por todos – ou por aquilo que nos representava a todos, o Estado – e não estava inquinado pela “horrorosa” ideia do lucro, de cada um poder ganhar directamente a vida com o seu trabalho, e de acordo com ele. Foram tempos passados, esse socialismo perdeu o passo e o de agora entende que o que é privado é que é bom, o serviço público fica caro, e é de má qualidade, para não falar já dos próprios funcionários públicos – afinal em muito menor número do que era apregoado há bem pouco tempo aos quatro ventos por toda a comunicação social –, apresentados como fonte de todo o mal na nossa gestão governamental. Há que os despedir, privatizar a sua actividade, quiçá até a do próprio governo.
É esta a situação no início deste Verão, em que na véspera de ir para a praia experimentei as minhas “jeans”: diabo, no ano passado ainda me estavam bem e agora não me entravam! Mas não havia problema, era só comprar outras, e lá me dirigi à mesma loja onde as comprara, há uns três anos atrás. Atendido solicitamente pelo próprio proprietário (o negócio tem estado mais fraco e por isso tem menos empregados no momento), apareceu-me com umas calças exactamente iguais às minhas, até no número, mas eu necessitava era do número a seguir. “Ah!, mas esse não há. É o mais vendido, e por isso já se esgotou, compreende?” Não, eu não compreendia, e disse-lho. Então ele não tinha o tamanho de calças de ganga mais vendido? Quereria talvez que os clientes se adaptassem aos tamanhos que ele tinha sobrantes no armazém da loja? Assim não ia fazer muitas vendas de “jeans”. Olhou-me atónito, e passou-lhe pelo olhar a frase “Ora o que é que este gajo tem a ver com isso? A loja não é minha?!”, mas é uma pessoa delicada e apenas reiterou o facto: não tinha o número. “Só para o Natal” – com esta frase deu-se o assunto por encerrado, e pareceu-me até notar alguma satisfação contida da parte dele, em arrumar comigo naquela “discussão”. Mas isso foi com certeza impressão minha, por que razão haveria o homem de ficar satisfeito por não me vender umas calças?...
Fui a vários outros estabelecimentos e uns tinham a marca mas não o modelo, ou o número, outras marcas e modelos não me ficavam bem. Uma tarde passada a visitar lojas de modas para homem. Finalmente encontrei o que desejava: tal e qual, só precisava então que me acertassem o comprimento nas pernas. “Ah! Isso só daqui a quinze dias, a nossa costureira está de férias”. Inquiri se não havia ninguém que pudesse fazer esse serviço, responderam-me que não, “a costureira também tem direito a férias, não é verdade?”. Sem dúvida, mas ficaram lá com as calças e eu sem elas. Comprei-as dois dias depois na Figueira da Foz, num estabelecimento com costureira ao serviço.
Na casa da praia fui encontrar um antigo espelho com aro de madeira, herdado de casa de meus pais, com caruncho. Pressurosamente procurei numa drogaria o remédio para tal: não tinham. “Compreende, tem-se vendido muito…”. Fui a mais duas drogarias, o caruncho parece ter atacado em força este ano, esgotaram-se as munições contra ele. Felizmente que à quarta tentativa o assunto resolveu-se, e vá lá que o caruncho não é assim tão rápido a comer madeira.
São tudo estabelecimentos privados, que ganham a vida a vender os seus produtos. Se não os tiverem, como os hão-de vender? Se fossem departamentos públicos, lá viria a explicação do costume: não é deles, não lhes dói… Mas aí ao menos o cliente poderia queixar-se, para o Ministério respectivo, para o Primeiro-Ministro, para os jornais, eu sei lá. Mas assim… Sempre se pode escrever no livro de reclamações. O quê? Que deixaram acabar o stock?!
Fui jantar fora, com a mulher, um filho e um cunhado. Restaurante meio cheio, mesas pequenas vazias, cada uma para duas ou quando muito três pessoas, e uma maior também vazia. Dirigimo-nos para ela. “Aí não, essa é para seis pessoas”. “Ah! bem, então aonde é que nos podemos sentar?” “Têm que esperar, é só aí uns vinte minutos”. Sem responder, saímos à procura doutro restaurante. Deveria ter dito alguma coisa? Não sei, o restaurante não é meu, o dono atende os clientes como entender.
Sentámo-nos noutro restaurante, trouxeram-nos daquelas entradas volumosas, abundantes, variadas. A minha mulher, vigiando-me severamente a barriga – que já provocou o episódio das calças – declarou de imediato que não queríamos as entradas e que passaríamos de imediato ao prato principal. Aí é que foi o diabo, porque não havia autorização para isso! As entradas eram para se comer, e quem não as quisesse tinha de esperar que os outros, nas outras mesas, que as tinham pedido, as terminassem, para então virem os outros pratos. Ninguém ali naquela casa passava à frente de ninguém (?!). Ficámos siderados, foi o rapaz que percebeu mal as instruções, venha o gerente. Não estava, mas veio outro empregado, e foi peremptório: ali era mesmo assim, aliás nunca ninguém deixara alguma vez de comer as entradas. É claro que nós deixámos, as entradas e o resto. E foram menos quatro refeições que eles serviram.
São episódios absolutamente reais, contados com toda a exactidão, sem alterar qualquer “nuance” só para eventualmente ter mais graça. E deram-me que pensar. Numa tarde de sol, e calor, na praia, de olhos fechados, pensando no serviço público e no serviço privado. Muitos dos empresários e funcionários privados que nós temos são assim. Desde que ganhem o que acham suficiente, está tudo bem. E muitos dos que contactam com o público assumem logo a arrogância do fraco que detém ocasionalmente algum poder. Nem que seja o de dizer “Não temos, não há, tem de esperar”. Isto não é, pois, apanágio dos funcionários públicos, como agora está na moda apregoar-se a torto e a direito. Esses ao menos ainda podem preocupar-se com a carreira, e a promoção, na esperança de um dia serem chefes de secção, ou directores, sei lá. No privado é o lucro que conta, é o que se ganha – e parece que nalguns casos nem isso. Frequentemente são empregados com pouca diferenciação, para ficarem mais baratos, contratados a prazo, e curto, que no fim do contrato sabem que têm de procurar  outro emprego qualquer, para quê aplicar-se? Não há a ideia de serviço público, que qualquer estabelecimento, empresa ou serviço, privado embora mas aberto ao público, tem de ter. Claro que há muitas e honrosas excepções, mas os factos que atrás relatei são, infelizmente, a regra. Pensem bem se não é assim.
E na saúde? Poder-se-á pretender basear a saúde pública numa actividade privada deste calibre? “Ora, a saúde é diferente”, oiço dizer. E é. Os médicos são diferentes sim senhor, temos esta mística, ou deformação profissional, ou consciência profissional, incrustada debaixo da pele, que nos incutiram nas Faculdades de Medicina, nos internatos, no convívio uns com os outros, e que nos leva a querer sempre o melhor para os nosso doentes. Gostamos com certeza de ganhar dinheiro, mas nunca à custa de deixar doentes por tratar, ou tratá-los mal, ou não os tratar da melhor maneira que soubermos e que constantemente queremos aperfeiçoar, numa saudável competição inter-pares até. Da medicina privada não vem decerto mal ao mundo, e é obviamente tão nobre e eficaz como a hospitalar. Mas o que pensar das empresas privadas de saúde, ou das instituições públicas empresarializadas, cujo fim passa, como qualquer empresa privada, pelo lucro? Não se correrá o risco de mais tarde ou mais cedo – ou desde o início – se acabarem por enquadrar na actividade privada atrás descrita? Apresentando serviços privados que respondem só perante os desígnios e projectos dos seus gestores, uns mais capazes ou ambiciosos que outros, e perdendo toda a noção de serviço público? A tal noção que os nossos estabelecimentos privados dum modo geral não têm.
No XII Congresso de Medicina da OM, o Presidente da Entidade Reguladora de Saúde, nomeado pelo actual governo, afirmou que “a gestão empresarial potencia desvios ao interesse público, ao focalizar-se nos objectivos de rentabilidade e sustentabilidade financeira”. E que os médicos corriam riscos reais na sua profissão como consequência deste tipo de gestão.
Tudo isto dá que pensar, não é verdade? Principalmente quando temos um sistema de saúde público que tem funcionado bem, e a baixo custo, diga o Senhor Ministro da Saúde o que disser. O sistema de saúde que menos gasta na Europa comunitária dos doze. E que foi apreciado pela OMS, há apenas 5 anos, em 12º lugar no mundo, em 5º na “nossa” Europa. Mas é óbvio que o Governo quer gastar menos ainda com a saúde, entregando a despesa com ela em boa parte aos privados. Tudo bem, até pode ser que isso possa ser, mas o que há a ver é se esse novo sistema vai funcionar, pelo menos tão bem como aquele que se quer agora fazer desaparecer. Porque se funcionar mal, lá estaremos nós, médicos, a ser acusados. Como é costume. E também como é costume, sem razão.
In Farpas pela nossa Saúde, 2006

terça-feira, 4 de agosto de 2020

CIRURGIA EM AMBULATÓRIO
OU PÔR OS DOENTES A ANDAR

A cirurgia em ambulatório tornou-se recentemente numa bandeira dos que gerem a saúde no nosso país. Porque é cirurgia, e parece que as “cirurgias” feitas é que marcam o sucesso ou falência do sistema de saúde e dos hospitais, e porque, fazendo os doentes entrar por uma porta e sair pela outra, se podem produzir operações em maior quantidade.
Mas para falar dela será bom conhecê-la bem, e por isso vamos fazer uma viagem rápida ao seu passado, para entender o presente e poder planear adequadamente o futuro.
Dela já se fala há tanto tempo como desde o início do século passado, mais propriamente desde 1909. Nesse ano foi criado num hospital pediátrico em Glasgow um programa para realização de pequenas intervenções cirúrgicas em crianças, com a sua ida para casa no mesmo dia, sempre acompanhadas pela mãe, desde que tivessem condições socioeconómicas que não pusessem em perigo a sua convalescença. Esta iniciativa foi bem aceite, no entanto teve um êxito temporal e puramente local.
Só dez anos depois ela foi recuperada, mas no interior dos EUA, numa pequena cidade do Iowa chamada Sioux City, onde foi constituída uma clínica privada (a Clínica da Baixa, Downtown Clinic), que se dedicava apenas a cirurgias pequenas que permitiam a saída imediata dos doentes para suas casas. O preço baixo das intervenções era um atractivo, e a clínica podia sobreviver pelo afluxo de clientes, apesar do lucro com cada um ser reduzido. Vivia sobretudo do seu número.
Mais um compasso de espera, sem entusiasmo imediato pela ideia. Após a segunda guerra mundial, começou a tornar-se evidente que a permanência prolongada de alguns doentes cirúrgicos nas camas dos hospitais redundava em complicações, aumentando até a mortalidade operatória, sendo o paradigma disto a embolia pulmonar por trombose venosa profunda após herniorrafia. A deambulação precoce destes doentes começou a impor-se como rotina, enquadrando-se eles no grupo onde se podia realizar, e já se realizava nalguns locais, cirurgia em ambulatório. Daqui que as companhias de seguros médicos, estabelecidas como suporte do sistema de saúde americano, a começassem a incentivar, senão mesmo exigir. O custo era mais baixo, porque excluía internamento, e tinham agora uma razão médica de peso: era bom para os doentes não permanecerem muito tempo deitados numa cama no hospital (ainda por cima paga pela companhia…).
Gerou-se rapidamente o negócio da cirurgia em ambulatório, com a criação de clínicas a ela dedicadas, imitando a de Sioux City. Para doentes com patologias de pouca monta, passíveis de serem operados em instituições sem grande investimento, apenas a sala de operações, uma sala de recobro e uma secretaria/tesouraria. Algumas, mais sofisticadas, faziam também os exames pré-operatórios (facturando por isso), outras não: limitavam-se a marcar o dia da operação e a realizá-la. As companhias de seguros incentivavam--nas, questionando mesmo os segurados se eles preferiam o meio hospitalar. Em 1955 houve um grande “boom” das herniorrafias com deambulação precoce, isto é, doente operado e posto a andar para casa no mesmo dia, gerando custos mínimos.
O êxito comercial destas clínicas acabou por chamar a atenção dos hospitais, naturalmente, já que na sua quase totalidade eram privados também. Os pagadores dos seus serviços tinham onde pagar menos e eles, como prestadores de cuidados de saúde, entendiam isso mas, por ética e responsabilidade profissional, não abdicaram de questionar a segurança e eficácia do processo, passando a dedicar-se ao seu estudo e criando a pouco e pouco regras e limitações à sua prática. Foi a vez das companhias de seguros, como pagadores, entenderem, não querendo poupar na intervenção para pagar depois por consequências desagradáveis, e eventualmente caras.
No National Health Service do Reino Unido (de onde o nosso SNS foi decalcado), este tipo de cirurgia com alta muito precoce esbarrou com o facto de prestador e pagador serem os mesmos. O argumento económico era, por isso, à primeira vista, menos claro, já que num sistema destes sobressai sobretudo o resultado e a satisfação dos doentes e dos profissionais. Só a pouco e pouco, com a verificação de que isso também é possível na cirurgia em ambulatório, ela se foi instalando. E, tratando-se do dinheiro de todos (doentes e pessoal hospitalar) que está em jogo, quanto melhor e mais eficiente o processo for, melhor, já que não há subjacente o interesse economicista dum sistema em que uns pagam o que os outros fazem (e quanto mais caro fizerem, mais lucro têm).
Uma das grandes preocupações na sua implementação no sistema hospitalar foi, pois, a da segurança. Por isso se desenvolveram regras, para a escolha das patologias que a permitam e, dentro destas, para a escolha de cada doente, com limitações estritas do foro clínico, de idade, de personalidade, socioeconómicas, familiares e de acompanhamento, de residência. Que permitam que o doente seja operado e vá de imediato, ou quase, a andar para casa em segurança.
Neste tipo de cirurgia, a ligação do cirurgião ao doente pode ser curta mas tem de ser intensa. Porque o pouco tempo de permanência no hospital é inversamente proporcional à preocupação que se tem de ter com o pós-operatório imediato, já fora do controlo da equipa que o operou, sendo certo que da responsabilidade final – criminal se for caso disso – o cirurgião não se pode livrar. Protocolos não isentam responsabilidade profissional.
A curta permanência dos doentes no hospital implica uma estrutura montada que minimize falhas, mas que custa dinheiro. Têm de ser cuidadosamente estudados antes da intervenção, e a alta tem de ser dada muito criteriosamente, pelo cirurgião e pelo anestesista, antecipando complicações longe do seu alcance e ficando atentos ao aparecimento dessas complicações já em casa dos doentes. Para onde eles devem ir a andar para deambular, e não de maca para lá ficarem deitados, tolhidos de dores e com vómitos (a tomar os analgésicos e os antieméticos fornecidos por conta do hospital), mesmo que agarrados ao telefone a serem confortados por um enfermeiro de serviço para isso.
É evidente que se podem realizar com segurança algumas intervenções cirúrgicas em regime ambulatório em doentes escolhidos, respeitando as regras estabelecidas para tal. Mas a vertente económica, tão importante que foi no seu estabelecimento (evitando o pagamento da diária de internamento), continua a constituir um problema para os prestadores, já que cada intervenção é paga a cerca de um terço do valor gerado pelo internamento, nem que seja muito curto, e por isso a cirurgia em ambulatório só é rentável se for feita em grande quantidade e sem complicações. E isso tem a ver com a rapidez de execução e a eficiência do cirurgião e do anestesista, ambos os aspectos determinantemente afectados pela diferenciação e experiência. Ora, dada a baixa complexidade e o número limitado, por definição, das intervenções que se podem realizar em ambulatório, os melhores cirurgiões e anestesistas em breve as tendem a abandonar aos menos experientes, dum modo geral mais lentos ou com rapidez sacrificando a segurança. Consequentemente, menos doentes operados e mais complicações.
Isso tem acontecido internacionalmente, e constitui um óbvio senão. Quando nos EUA e no Reino Unido se pretenderam manter os mais experientes a fazê-la, mediante estímulos remuneratórios, foram os mais novos que se fartaram de ser os eternos ajudantes daquele tipo de intervenções, e se recusaram. Advindo então exemplos de clínicas com primeiros ajudantes que nem médicos eram.
O aspecto económico sobressai ainda mais se tiver sido feito um grande investimento numa Unidade exclusiva para esse tipo de cirurgia, com bloco operatório e pessoal administrativo, de enfermagem e auxiliar dedicados, e que terá de ser paga pelas intervenções feitas, o que não é fácil pelo seu baixo valor individual, e que gera um case-mix reduzido. Por isso em França já se puseram em causa essas Unidades, pelo seu custo de construção e, sobretudo, de manutenção, dando-se preferência, por uma questão de rentabilidade, à cirurgia em ambulatório feita em blocos gerais, sendo a estrutura montada apenas funcional e partilhada, sem suporte físico exclusivo. Isto é particularmente relevante quando há pouco pessoal disponível, sobretudo de enfermagem, e um número limitado de salas de operações disponíveis, com dificuldade para a realização da cirurgia convencional, a que não pode ser feita em ambulatório. Claro que a cirurgia em ambulatório pode permitir um grande número de “cirurgias”, mas só de algumas patologias e em alguns doentes, levando a uma redução dessa lista de espera específica, e é nesta que se deve intervir para procurar aumentar a percentagem de doentes operados desse modo. Para todas as outras intervenções, dos doentes que necessitam de internamento, terá de haver salas de operações disponíveis, e em tempo útil. Ocupar essas salas com cirurgia em ambulatório é inaceitável do ponto de vista clínico, e um mau negócio do ponto de vista económico. Para além de que é impraticável em hospitais altamente diferenciados, de fim de linha, onde grande parte dos doentes a intervencionar não poderão sê-lo em ambulatório, pela complexidade dos seus casos e por muitos deles virem referenciados de longe. Não é ético aumentar a cirurgia em ambulatório simplesmente por não se operarem doentes que necessitam de ser operados em cirurgia convencional, deixando-os à espera. E ainda por cima ignorando os custos indirectos e induzidos disso, bem reais e muito significativos, com peso indiscutível na economia nacional da Saúde.
Em resumo, a cirurgia em ambulatório pode ser feita em segurança, desde que nas condições adequadas, serve para reduzir as listas de espera para cirurgia nalgumas patologias mais leves, que são também as mais frequentes, e pode revestir alguma vantagem económica apenas se aplicada e feita como deve ser. Mas não deve ser o fim último dos hospitais ou dum governo, não é solução para o sistema de saúde do país, e não vai salvar o SNS. Se lhe for exigido tudo isso, muito mais do que ela é, cairá em descrédito. E é pena.
In Revista Portuguesa de Cirurgia, II série, nº 24, Março de 2013