terça-feira, 11 de agosto de 2020

SERVIÇOS PÚBLICOS  –
- OU LUCUBRAÇÕES DUM MÉDICO NUMA TARDE DE VERÃO

Houve alturas neste país em que o que era público é que era bom, porque era controlado por todos – ou por aquilo que nos representava a todos, o Estado – e não estava inquinado pela “horrorosa” ideia do lucro, de cada um poder ganhar directamente a vida com o seu trabalho, e de acordo com ele. Foram tempos passados, esse socialismo perdeu o passo e o de agora entende que o que é privado é que é bom, o serviço público fica caro, e é de má qualidade, para não falar já dos próprios funcionários públicos – afinal em muito menor número do que era apregoado há bem pouco tempo aos quatro ventos por toda a comunicação social –, apresentados como fonte de todo o mal na nossa gestão governamental. Há que os despedir, privatizar a sua actividade, quiçá até a do próprio governo.
É esta a situação no início deste Verão, em que na véspera de ir para a praia experimentei as minhas “jeans”: diabo, no ano passado ainda me estavam bem e agora não me entravam! Mas não havia problema, era só comprar outras, e lá me dirigi à mesma loja onde as comprara, há uns três anos atrás. Atendido solicitamente pelo próprio proprietário (o negócio tem estado mais fraco e por isso tem menos empregados no momento), apareceu-me com umas calças exactamente iguais às minhas, até no número, mas eu necessitava era do número a seguir. “Ah!, mas esse não há. É o mais vendido, e por isso já se esgotou, compreende?” Não, eu não compreendia, e disse-lho. Então ele não tinha o tamanho de calças de ganga mais vendido? Quereria talvez que os clientes se adaptassem aos tamanhos que ele tinha sobrantes no armazém da loja? Assim não ia fazer muitas vendas de “jeans”. Olhou-me atónito, e passou-lhe pelo olhar a frase “Ora o que é que este gajo tem a ver com isso? A loja não é minha?!”, mas é uma pessoa delicada e apenas reiterou o facto: não tinha o número. “Só para o Natal” – com esta frase deu-se o assunto por encerrado, e pareceu-me até notar alguma satisfação contida da parte dele, em arrumar comigo naquela “discussão”. Mas isso foi com certeza impressão minha, por que razão haveria o homem de ficar satisfeito por não me vender umas calças?...
Fui a vários outros estabelecimentos e uns tinham a marca mas não o modelo, ou o número, outras marcas e modelos não me ficavam bem. Uma tarde passada a visitar lojas de modas para homem. Finalmente encontrei o que desejava: tal e qual, só precisava então que me acertassem o comprimento nas pernas. “Ah! Isso só daqui a quinze dias, a nossa costureira está de férias”. Inquiri se não havia ninguém que pudesse fazer esse serviço, responderam-me que não, “a costureira também tem direito a férias, não é verdade?”. Sem dúvida, mas ficaram lá com as calças e eu sem elas. Comprei-as dois dias depois na Figueira da Foz, num estabelecimento com costureira ao serviço.
Na casa da praia fui encontrar um antigo espelho com aro de madeira, herdado de casa de meus pais, com caruncho. Pressurosamente procurei numa drogaria o remédio para tal: não tinham. “Compreende, tem-se vendido muito…”. Fui a mais duas drogarias, o caruncho parece ter atacado em força este ano, esgotaram-se as munições contra ele. Felizmente que à quarta tentativa o assunto resolveu-se, e vá lá que o caruncho não é assim tão rápido a comer madeira.
São tudo estabelecimentos privados, que ganham a vida a vender os seus produtos. Se não os tiverem, como os hão-de vender? Se fossem departamentos públicos, lá viria a explicação do costume: não é deles, não lhes dói… Mas aí ao menos o cliente poderia queixar-se, para o Ministério respectivo, para o Primeiro-Ministro, para os jornais, eu sei lá. Mas assim… Sempre se pode escrever no livro de reclamações. O quê? Que deixaram acabar o stock?!
Fui jantar fora, com a mulher, um filho e um cunhado. Restaurante meio cheio, mesas pequenas vazias, cada uma para duas ou quando muito três pessoas, e uma maior também vazia. Dirigimo-nos para ela. “Aí não, essa é para seis pessoas”. “Ah! bem, então aonde é que nos podemos sentar?” “Têm que esperar, é só aí uns vinte minutos”. Sem responder, saímos à procura doutro restaurante. Deveria ter dito alguma coisa? Não sei, o restaurante não é meu, o dono atende os clientes como entender.
Sentámo-nos noutro restaurante, trouxeram-nos daquelas entradas volumosas, abundantes, variadas. A minha mulher, vigiando-me severamente a barriga – que já provocou o episódio das calças – declarou de imediato que não queríamos as entradas e que passaríamos de imediato ao prato principal. Aí é que foi o diabo, porque não havia autorização para isso! As entradas eram para se comer, e quem não as quisesse tinha de esperar que os outros, nas outras mesas, que as tinham pedido, as terminassem, para então virem os outros pratos. Ninguém ali naquela casa passava à frente de ninguém (?!). Ficámos siderados, foi o rapaz que percebeu mal as instruções, venha o gerente. Não estava, mas veio outro empregado, e foi peremptório: ali era mesmo assim, aliás nunca ninguém deixara alguma vez de comer as entradas. É claro que nós deixámos, as entradas e o resto. E foram menos quatro refeições que eles serviram.
São episódios absolutamente reais, contados com toda a exactidão, sem alterar qualquer “nuance” só para eventualmente ter mais graça. E deram-me que pensar. Numa tarde de sol, e calor, na praia, de olhos fechados, pensando no serviço público e no serviço privado. Muitos dos empresários e funcionários privados que nós temos são assim. Desde que ganhem o que acham suficiente, está tudo bem. E muitos dos que contactam com o público assumem logo a arrogância do fraco que detém ocasionalmente algum poder. Nem que seja o de dizer “Não temos, não há, tem de esperar”. Isto não é, pois, apanágio dos funcionários públicos, como agora está na moda apregoar-se a torto e a direito. Esses ao menos ainda podem preocupar-se com a carreira, e a promoção, na esperança de um dia serem chefes de secção, ou directores, sei lá. No privado é o lucro que conta, é o que se ganha – e parece que nalguns casos nem isso. Frequentemente são empregados com pouca diferenciação, para ficarem mais baratos, contratados a prazo, e curto, que no fim do contrato sabem que têm de procurar  outro emprego qualquer, para quê aplicar-se? Não há a ideia de serviço público, que qualquer estabelecimento, empresa ou serviço, privado embora mas aberto ao público, tem de ter. Claro que há muitas e honrosas excepções, mas os factos que atrás relatei são, infelizmente, a regra. Pensem bem se não é assim.
E na saúde? Poder-se-á pretender basear a saúde pública numa actividade privada deste calibre? “Ora, a saúde é diferente”, oiço dizer. E é. Os médicos são diferentes sim senhor, temos esta mística, ou deformação profissional, ou consciência profissional, incrustada debaixo da pele, que nos incutiram nas Faculdades de Medicina, nos internatos, no convívio uns com os outros, e que nos leva a querer sempre o melhor para os nosso doentes. Gostamos com certeza de ganhar dinheiro, mas nunca à custa de deixar doentes por tratar, ou tratá-los mal, ou não os tratar da melhor maneira que soubermos e que constantemente queremos aperfeiçoar, numa saudável competição inter-pares até. Da medicina privada não vem decerto mal ao mundo, e é obviamente tão nobre e eficaz como a hospitalar. Mas o que pensar das empresas privadas de saúde, ou das instituições públicas empresarializadas, cujo fim passa, como qualquer empresa privada, pelo lucro? Não se correrá o risco de mais tarde ou mais cedo – ou desde o início – se acabarem por enquadrar na actividade privada atrás descrita? Apresentando serviços privados que respondem só perante os desígnios e projectos dos seus gestores, uns mais capazes ou ambiciosos que outros, e perdendo toda a noção de serviço público? A tal noção que os nossos estabelecimentos privados dum modo geral não têm.
No XII Congresso de Medicina da OM, o Presidente da Entidade Reguladora de Saúde, nomeado pelo actual governo, afirmou que “a gestão empresarial potencia desvios ao interesse público, ao focalizar-se nos objectivos de rentabilidade e sustentabilidade financeira”. E que os médicos corriam riscos reais na sua profissão como consequência deste tipo de gestão.
Tudo isto dá que pensar, não é verdade? Principalmente quando temos um sistema de saúde público que tem funcionado bem, e a baixo custo, diga o Senhor Ministro da Saúde o que disser. O sistema de saúde que menos gasta na Europa comunitária dos doze. E que foi apreciado pela OMS, há apenas 5 anos, em 12º lugar no mundo, em 5º na “nossa” Europa. Mas é óbvio que o Governo quer gastar menos ainda com a saúde, entregando a despesa com ela em boa parte aos privados. Tudo bem, até pode ser que isso possa ser, mas o que há a ver é se esse novo sistema vai funcionar, pelo menos tão bem como aquele que se quer agora fazer desaparecer. Porque se funcionar mal, lá estaremos nós, médicos, a ser acusados. Como é costume. E também como é costume, sem razão.
In Farpas pela nossa Saúde, 2006

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