terça-feira, 4 de agosto de 2020

CIRURGIA EM AMBULATÓRIO
OU PÔR OS DOENTES A ANDAR

A cirurgia em ambulatório tornou-se recentemente numa bandeira dos que gerem a saúde no nosso país. Porque é cirurgia, e parece que as “cirurgias” feitas é que marcam o sucesso ou falência do sistema de saúde e dos hospitais, e porque, fazendo os doentes entrar por uma porta e sair pela outra, se podem produzir operações em maior quantidade.
Mas para falar dela será bom conhecê-la bem, e por isso vamos fazer uma viagem rápida ao seu passado, para entender o presente e poder planear adequadamente o futuro.
Dela já se fala há tanto tempo como desde o início do século passado, mais propriamente desde 1909. Nesse ano foi criado num hospital pediátrico em Glasgow um programa para realização de pequenas intervenções cirúrgicas em crianças, com a sua ida para casa no mesmo dia, sempre acompanhadas pela mãe, desde que tivessem condições socioeconómicas que não pusessem em perigo a sua convalescença. Esta iniciativa foi bem aceite, no entanto teve um êxito temporal e puramente local.
Só dez anos depois ela foi recuperada, mas no interior dos EUA, numa pequena cidade do Iowa chamada Sioux City, onde foi constituída uma clínica privada (a Clínica da Baixa, Downtown Clinic), que se dedicava apenas a cirurgias pequenas que permitiam a saída imediata dos doentes para suas casas. O preço baixo das intervenções era um atractivo, e a clínica podia sobreviver pelo afluxo de clientes, apesar do lucro com cada um ser reduzido. Vivia sobretudo do seu número.
Mais um compasso de espera, sem entusiasmo imediato pela ideia. Após a segunda guerra mundial, começou a tornar-se evidente que a permanência prolongada de alguns doentes cirúrgicos nas camas dos hospitais redundava em complicações, aumentando até a mortalidade operatória, sendo o paradigma disto a embolia pulmonar por trombose venosa profunda após herniorrafia. A deambulação precoce destes doentes começou a impor-se como rotina, enquadrando-se eles no grupo onde se podia realizar, e já se realizava nalguns locais, cirurgia em ambulatório. Daqui que as companhias de seguros médicos, estabelecidas como suporte do sistema de saúde americano, a começassem a incentivar, senão mesmo exigir. O custo era mais baixo, porque excluía internamento, e tinham agora uma razão médica de peso: era bom para os doentes não permanecerem muito tempo deitados numa cama no hospital (ainda por cima paga pela companhia…).
Gerou-se rapidamente o negócio da cirurgia em ambulatório, com a criação de clínicas a ela dedicadas, imitando a de Sioux City. Para doentes com patologias de pouca monta, passíveis de serem operados em instituições sem grande investimento, apenas a sala de operações, uma sala de recobro e uma secretaria/tesouraria. Algumas, mais sofisticadas, faziam também os exames pré-operatórios (facturando por isso), outras não: limitavam-se a marcar o dia da operação e a realizá-la. As companhias de seguros incentivavam--nas, questionando mesmo os segurados se eles preferiam o meio hospitalar. Em 1955 houve um grande “boom” das herniorrafias com deambulação precoce, isto é, doente operado e posto a andar para casa no mesmo dia, gerando custos mínimos.
O êxito comercial destas clínicas acabou por chamar a atenção dos hospitais, naturalmente, já que na sua quase totalidade eram privados também. Os pagadores dos seus serviços tinham onde pagar menos e eles, como prestadores de cuidados de saúde, entendiam isso mas, por ética e responsabilidade profissional, não abdicaram de questionar a segurança e eficácia do processo, passando a dedicar-se ao seu estudo e criando a pouco e pouco regras e limitações à sua prática. Foi a vez das companhias de seguros, como pagadores, entenderem, não querendo poupar na intervenção para pagar depois por consequências desagradáveis, e eventualmente caras.
No National Health Service do Reino Unido (de onde o nosso SNS foi decalcado), este tipo de cirurgia com alta muito precoce esbarrou com o facto de prestador e pagador serem os mesmos. O argumento económico era, por isso, à primeira vista, menos claro, já que num sistema destes sobressai sobretudo o resultado e a satisfação dos doentes e dos profissionais. Só a pouco e pouco, com a verificação de que isso também é possível na cirurgia em ambulatório, ela se foi instalando. E, tratando-se do dinheiro de todos (doentes e pessoal hospitalar) que está em jogo, quanto melhor e mais eficiente o processo for, melhor, já que não há subjacente o interesse economicista dum sistema em que uns pagam o que os outros fazem (e quanto mais caro fizerem, mais lucro têm).
Uma das grandes preocupações na sua implementação no sistema hospitalar foi, pois, a da segurança. Por isso se desenvolveram regras, para a escolha das patologias que a permitam e, dentro destas, para a escolha de cada doente, com limitações estritas do foro clínico, de idade, de personalidade, socioeconómicas, familiares e de acompanhamento, de residência. Que permitam que o doente seja operado e vá de imediato, ou quase, a andar para casa em segurança.
Neste tipo de cirurgia, a ligação do cirurgião ao doente pode ser curta mas tem de ser intensa. Porque o pouco tempo de permanência no hospital é inversamente proporcional à preocupação que se tem de ter com o pós-operatório imediato, já fora do controlo da equipa que o operou, sendo certo que da responsabilidade final – criminal se for caso disso – o cirurgião não se pode livrar. Protocolos não isentam responsabilidade profissional.
A curta permanência dos doentes no hospital implica uma estrutura montada que minimize falhas, mas que custa dinheiro. Têm de ser cuidadosamente estudados antes da intervenção, e a alta tem de ser dada muito criteriosamente, pelo cirurgião e pelo anestesista, antecipando complicações longe do seu alcance e ficando atentos ao aparecimento dessas complicações já em casa dos doentes. Para onde eles devem ir a andar para deambular, e não de maca para lá ficarem deitados, tolhidos de dores e com vómitos (a tomar os analgésicos e os antieméticos fornecidos por conta do hospital), mesmo que agarrados ao telefone a serem confortados por um enfermeiro de serviço para isso.
É evidente que se podem realizar com segurança algumas intervenções cirúrgicas em regime ambulatório em doentes escolhidos, respeitando as regras estabelecidas para tal. Mas a vertente económica, tão importante que foi no seu estabelecimento (evitando o pagamento da diária de internamento), continua a constituir um problema para os prestadores, já que cada intervenção é paga a cerca de um terço do valor gerado pelo internamento, nem que seja muito curto, e por isso a cirurgia em ambulatório só é rentável se for feita em grande quantidade e sem complicações. E isso tem a ver com a rapidez de execução e a eficiência do cirurgião e do anestesista, ambos os aspectos determinantemente afectados pela diferenciação e experiência. Ora, dada a baixa complexidade e o número limitado, por definição, das intervenções que se podem realizar em ambulatório, os melhores cirurgiões e anestesistas em breve as tendem a abandonar aos menos experientes, dum modo geral mais lentos ou com rapidez sacrificando a segurança. Consequentemente, menos doentes operados e mais complicações.
Isso tem acontecido internacionalmente, e constitui um óbvio senão. Quando nos EUA e no Reino Unido se pretenderam manter os mais experientes a fazê-la, mediante estímulos remuneratórios, foram os mais novos que se fartaram de ser os eternos ajudantes daquele tipo de intervenções, e se recusaram. Advindo então exemplos de clínicas com primeiros ajudantes que nem médicos eram.
O aspecto económico sobressai ainda mais se tiver sido feito um grande investimento numa Unidade exclusiva para esse tipo de cirurgia, com bloco operatório e pessoal administrativo, de enfermagem e auxiliar dedicados, e que terá de ser paga pelas intervenções feitas, o que não é fácil pelo seu baixo valor individual, e que gera um case-mix reduzido. Por isso em França já se puseram em causa essas Unidades, pelo seu custo de construção e, sobretudo, de manutenção, dando-se preferência, por uma questão de rentabilidade, à cirurgia em ambulatório feita em blocos gerais, sendo a estrutura montada apenas funcional e partilhada, sem suporte físico exclusivo. Isto é particularmente relevante quando há pouco pessoal disponível, sobretudo de enfermagem, e um número limitado de salas de operações disponíveis, com dificuldade para a realização da cirurgia convencional, a que não pode ser feita em ambulatório. Claro que a cirurgia em ambulatório pode permitir um grande número de “cirurgias”, mas só de algumas patologias e em alguns doentes, levando a uma redução dessa lista de espera específica, e é nesta que se deve intervir para procurar aumentar a percentagem de doentes operados desse modo. Para todas as outras intervenções, dos doentes que necessitam de internamento, terá de haver salas de operações disponíveis, e em tempo útil. Ocupar essas salas com cirurgia em ambulatório é inaceitável do ponto de vista clínico, e um mau negócio do ponto de vista económico. Para além de que é impraticável em hospitais altamente diferenciados, de fim de linha, onde grande parte dos doentes a intervencionar não poderão sê-lo em ambulatório, pela complexidade dos seus casos e por muitos deles virem referenciados de longe. Não é ético aumentar a cirurgia em ambulatório simplesmente por não se operarem doentes que necessitam de ser operados em cirurgia convencional, deixando-os à espera. E ainda por cima ignorando os custos indirectos e induzidos disso, bem reais e muito significativos, com peso indiscutível na economia nacional da Saúde.
Em resumo, a cirurgia em ambulatório pode ser feita em segurança, desde que nas condições adequadas, serve para reduzir as listas de espera para cirurgia nalgumas patologias mais leves, que são também as mais frequentes, e pode revestir alguma vantagem económica apenas se aplicada e feita como deve ser. Mas não deve ser o fim último dos hospitais ou dum governo, não é solução para o sistema de saúde do país, e não vai salvar o SNS. Se lhe for exigido tudo isso, muito mais do que ela é, cairá em descrédito. E é pena.
In Revista Portuguesa de Cirurgia, II série, nº 24, Março de 2013

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