quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

GUIDELINES E CONSENSOS

Guidelines, linhas de orientação, orientações, directrizes, são sinónimos que significam indicações compiladas por alguém no sentido de tornar a execução dum procedimento mais fácil, por mais automática e sem exigir tanto esforço de decisão, e mais igual sejam quais forem os intervenientes, seguindo todos essas mesmas indicações, admitindo-se também que assim se possa obter maior qualidade. Em medicina, orientações clínicas são guidelines estabelecidas em geral para alguns aspectos de diagnóstico, terapêutica ou follow-up específicos nalgumas patologias, habitualmente por serem mais complexos, ou saídos duma discussão recente ou estarem ainda sujeitos a alguma.
Desde sempre houve guidelines em medicina, a forma de se chegar a elas é que mudou. Durante milhares de anos assentaram na tradição, ou em argumentos da autoridade e da experiência de médicos de renome, que as redigiam, e impunham (magíster dixit), e eram entendidas a partir daí quase como uma bíblia pelos seus vindouros, até que surgiam outras, doutras proveniências, sobre os mesmos temas, que as alteravam ou até totalmente contrariavam. Mas hoje vivemos na época da medicina baseada na evidência, e embora esta não seja a melhor tradução de “evidence-based medicine” todos a entendemos correctamente. Já não bastam opiniões pessoais, mesmo que vindas de profissionais muito experientes e sabedores, há que fazer estudos e avaliar resultados do ponto de vista estatístico para lhes encontrar o significado que permita tirar conclusões científicas.
O conhecimento médico procura ser hoje o mais científico possível, embora sem descartar, naturalmente, a arte que a prática médica também implica. Para além da investigação científica, de base experimental e laboratorial, recorre-se actualmente a conhecimento científico baseado em avaliações estatísticas de grandes grupos de doentes, ou a revisão de múltiplos trabalhos científicos sobre o mesmo tema realizados de forma considerada adequada, e é a partir desse conhecimento científico que nalgumas situações são elaboradas guidelines.
Quem as elabora? Qualquer um o pode fazer, recorrendo aos mesmos conhecimentos disponíveis para todos, mas em geral são grupos de profissionais, de sociedades científicas, capítulos de sociedades mais ligados ao tema em debate, associações de médicos. Admitindo que actualmente as guidelines procuram sempre uma base científica, o valor intrínseco de cada uma está, no entanto, muito dependente da sua origem, de quem as elaborou, por um lado, e, por outro, da forma como se chegou a ela, e a nenhuma se pode atribuir um valor absoluto e indiscutível. Aliás, uma orientação é isso mesmo, serve para orientar, e não implica uma obrigatoriedade estrita no seu cumprimento. É uma ajuda, todos devemos ter conhecimento das que dizem respeito à nossa actividade, mas não são um protocolo que se tenha de seguir sempre rigorosamente. Em primeiro lugar, porque podem variar segundo a sua autoria, daí a importância de se saber a sua origem e a preocupação cada vez maior de instituições médicas de relevo quererem ter as suas, bem como de organizações governamentais nos vários países, que as elaboram, através de reconhecidos peritos convidados para o efeito, para terem presumivelmente uma maior garantia de qualidade. Exemplo disso, e louvável, é a nossa Direcção Geral de Saúde e as várias orientações clínicas que vai produzindo. Depois, para além de variarem segundo os conhecimentos, a experiência e a capacidade de quem as faz, podem variar com o tempo, são sempre datadas, é preciso serem substituídas de vez em quando. E um problema, por exemplo, é saber quando já deviam ter sido substituídas e ainda o não foram.
Há, frequentemente, a tendência para pensar que o que é científico, ou foi obtido por métodos científicos, é certo e está para além de qualquer dúvida ou discussão. E esta é uma ideia errada e que pode ser perigosa. Porque o que caracteriza, na realidade, a ciência é a sua incerteza! A ciência está em constante evolução, progride continuamente pela investigação, na procura da verdade. Mas o que hoje parece verdade amanhã pode não ser, e ser até errado. É nesta incerteza na procura que reside o valor e o interesse da ciência, como algo que nunca está esgotado. Algo que, por exemplo, não se pode resumir a uma simples orientação... Não que elas não devam existir, devem com certeza, para simplificar, lembrar, estandardizar, tornar mais eficiente o conhecimento que cada um tem do assunto em questão, mas sem que se pretenda que substituam esse conhecimento! Não se podem diagnosticar, tratar, seguir, doentes apenas por guidelines, sem estar dentro da respectiva patologia; mas é importante conhecê-las e aplicá-las, percebendo eventualmente quando há que fazer algo diferente, de acordo com o que se sabe do assunto e do doente em causa.  É frequente dizer-se com propriedade que muita coisa boa se pode fazer conscientemente fora das guidelines – mas desde que se conheçam, acrescento eu...
Nalguns problemas médicos sem consenso no que respeita à etiologia, etiopatogenia, diagnóstico, terapêutica ou follow-up, com dúvidas e discussão em curso, recorre-se por vezes a reuniões chamadas de consenso. Juntam-se peritos da área em apreço que, em conjunto, baseados no conhecimento científico de que se dispõe no momento, se manifestam sobre o assunto. Esses consensos correspondem, pois, a opiniões assentes em dados científicos e procuram traduzir o estado da arte na matéria em questão, podendo levar mais tarde à criação de guidelines. Como em qualquer consenso, não é forçoso que os membros do grupo constituído estejam todos de acordo, e não se atinge por votação em que os que são a favor sejam em maior número que os que votam contra: é necessário é que haja uma maioria a favor e os outros não sejam contra. 
Tratando de problemas relacionados com a investigação científica, e dada a incerteza que caracteriza a ciência, ainda mais em questões que, por definição da necessidade de consenso, não estão bem estabelecidas, também há necessidade da revisão periódica destes consensos, embora talvez menos vezes que das orientações clínicas. E também o seu peso científico está relacionado com o peso individual de quem integrou o grupo de consenso, e a forma como foi atingido, podendo até haver conclusões diferentes de grupos diferentes, na mesma altura e sobre a mesma matéria.
Consensos médicos são, pois, afirmações científicas sobre determinados assuntos feitas por conjuntos de peritos que se pretendem representativos da comunidade científica, e que se crê traduzirem o que a evidence-based medicine nos diz no momento em que elas são feitas, nomeadamente envolvendo investigações específicas a decorrer. Correspondem a imagens da realidade médica, necessariamente datadas mas que terão sempre, naquela data, de ser tomadas em conta na prática médica.
Finalmente, de notar, porque não infrequente, o facto de um consenso científico que se formou sobre um determinado assunto poder ser extrapolado para fora da ciência e usado como argumento ou força de pressão numa discussão doutro cariz, ou para basear uma qualquer teoria doutro tipo, noutro contexto, por exemplo social, económico ou político, inclusivamente esquecendo-se o seu carácter necessariamente incerto e sujeito a mudanças. E do mesmo modo ao contrário, isto é, a falta ainda de consenso científico pretender ser tomada como a sua ausência definitiva e irrevogável. 
Guidelines e consensos constituem, assim, parte integrante da medicina baseada na evidência, e têm de ser compreendidos, valorizados e utilizados como aquilo que são.
In Newsletter da Cirurgia C, 2017

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

O CONSENTIMENTO INFORMADO EM CIRURGIA

Pode-se dizer que foi Hipócrates quem tornou a medicina numa profissão como hoje a entendemos, e que a Escola Hipocrática de Medicina criou as regras da relação médico-doente que perduraram durante 23 séculos, e que só muito recentemente sofreram alguma modificação. Na sua sequência, a prática médica baseia-se nos princípios da beneficência e da não-maleficência, e, nesse sentido, logo no Juramento de Hipócrates se afirma que o médico deve tratar os doentes e se deve abster de lhes fazer mal, afirmando o mesmo autor, noutra obra, que a função principal do médico para com o doente “é fazer-lhe bem e não lhe fazer mal”. Será curioso notar que a expressão em latim primum non nocere (em primeiro lugar não causar dano), que traduz exactamente isso, dando primazia ao não fazer mal, não foi usada por aquele médico grego mas sim criada muito tempo depois, alegadamente por Thomas Sydenham, no século XVII, quando o latim era a língua intelectual, acabando por ficar registada como uma parte fulcral do que se pretende transmitir com aquele Juramento. Com um significado muito amplo em medicina e em cirurgia, aquela frase constitui em si mesma um axioma absolutamente central em farmacologia clínica, relembrando todas as interacções e efeitos secundários dos medicamentos, embora cada vez mais se possam encontrar situações clínicas em que a sua acuidade pode ser discutível. 
Na época de Hipócrates, e durante séculos a seguir, a relação médico-doente assentava num verdadeiro paternalismo médico, devendo este comportar-se para com o doente como um pai para um filho. Tudo o que fizesse era para bem dele, mesmo que eventualmente não parecesse. Nesta óptica, o médico tinha o dever de proteger esse filho, fazendo-lhe o bem e poupando-o ao mal, prescrevendo o tratamento adequado, e responsabilizando-se por isso. Quanto ao doente, restava-lhe o papel de fazer o que lhe era dito por quem sabia e queria o seu bem – tal como os filhos em relação aos pais. A preocupação e a responsabilidade pelo que acontecesse ao doente eram apenas e totalmente do médico. Em textos atribuídos a Hipócrates, recomendava-se mesmo que o médico escondesse tudo o que pudesse do doente, para não o preocupar e para lhe dar descanso de espírito, desviando a sua atenção daquilo que lhe estava a fazer e das complicações possíveis, omitindo até o diagnóstico que lhe reservava.
Embora haja quem afirme que o exercício da medicina não terá sido tão autoritário como algumas passagens hipocráticas fazem crer (a não ser, porventura, na Idade Média, quando a prática clínica esteve confiada aos monges, habituados a uma organização severa e ao dogma nas próprias relações humanas), o facto é que ninguém contesta que só muito recentemente se estabeleceu a necessidade de obter um consentimento informado e prévio, como forma de respeito por um verdadeiro e próprio direito do paciente a saber e consentir. Numa perspectiva actual, os valores pessoais do doente, enquanto sujeito inserido numa determinada cultura que lhe é própria, merecem a devida atenção, em respeito pelo seu direito à autodeterminação. E esse respeito veio alterar a sua postura no seio da relação clínica, passando de uma completa dependência para uma participação activa. O respeito pela dignidade da pessoa humana significa, acima de tudo, a promoção da sua capacidade para pensar, decidir e agir, o que implica e pressupõe um conhecimento esclarecido do diagnóstico, dos riscos e passos do tratamento ou intervenção (sem prejuízo do privilégio terapêutico, que adiante se refere), assim como eventuais alternativas terapêuticas. Em última instância, a decisão sempre é do paciente, que exprimirá a sua vontade, aceitando ou não a estratégia terapêutica proposta, até ao momento da sua execução.
A doutrina do consentimento informadolivre e esclarecido é relativamente nova na medicina. Atribui-se-lhe o início nos Estados Unidos da América, em 1928, quando um Tribunal deliberou: “...todos os seres humanos maiores de idade e com saúde mental (competentes) têm o direito a determinar o que deverá ser feito com o próprio corpo; e um cirurgião que realize uma operação sem o consentimento do paciente comete uma violação, estando por isso sujeito à exigência de responsabilidade”. No rescaldo de experimentações humanas degradantes e criminosas realizadas durante a Segunda Guerra Mundial, surgem o Código de Nuremberga, em 1947, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, onde se refere a necessidade de consentimento voluntário após informação correcta que permita decidir. A Declaração de Helsínquia, sobre investigação com humanos, redigida pela Associação Médica Mundial em 1964, fala de consentimento informado, e, de acordo com a Declaração de Lisboa, pela mesma Associação, em 1981, “o paciente tem o direito de consentir ou recusar tratamento na base de esclarecimento adequado.” A importância de uma participação activa do paciente na relação clínica, no âmbito da necessidade da sua livre vontade para qualquer intervenção médica, foi registada na Recomendação proposta pelo Grupo de Trabalho da Região Europeia da Organização Mundial de Saúde (O.M.S.), em 1985. E também na Convenção de Bioética do Conselho da Europa (1996) se afirmou claramente que “uma intervenção no campo da saúde só deverá ser efectuada após a pessoa o permitir, dando para tal o seu consentimento livre e informado.” Do ponto de vista judicial, o Código Penal português prevê o crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, ou seja, sem o consentimento informado e esclarecido do paciente, fundando-se este no direito à integridade física e moral do indivíduo.
O consentimento insere-se na moderna relação médico-doente, em que o segundo deixa de seguir cegamente o primeiro, antes passa a ter o direito de partilhar das suas decisões no que lhe dizem respeito. Poder-se-ia considerar que isso vem aliviar a pressão sobre o médico, ao não decidir só por si, mas a verdade é que a responsabilidade técnica continua a ser sua: o doente apenas consente. Pode exercer uma preferência, mas sobre o que lhe é sugerido pelo médico, este de acordo com o que sabe, a sua experiência e o que a evidência médica do momento mostra que é bom. Pretende-se que o paciente, para poder escolher, seja perfeitamente esclarecido sobre o assunto em questão, mas não se espera com certeza que um leigo na matéria possa decidir tecnicamente, ou contribuir para essa decisão, por mais que se lhe explique! A escolha, ou aceitação, pelo paciente do que lhe é proposto será sempre com base em parâmetros próprios, de carácter social, ou psicológico, ou emocionais, mesmo que a informação que lhe foi prestada o tenha deixado, na sua opinião, secundada pela do médico, esclarecido. É isso o consentimento informado e esclarecido. A orientação técnica e as suas consequências continuam a ser responsabilidade do médico.
Há um número significativo de pacientes que renunciam à informação, pelo menos muito detalhada, sobre a sua doença e respectivo tratamento, e consentem nele entregando-se nas mãos profissionais do “seu” médico, dentro da lógica do velho “paternalismo”. O médico deve respeitar essa preferência do doente, não o atormentando com pormenores indesejados – razão por que era assim feito na velha medicina hipocrática. Quanto aos outros, os que querem participar na escolha, devem ser informados da melhor maneira possível de modo a poderem ficar esclarecidos das suas dúvidas. E assim poderem consentir, sem se sentirem coagidos ou direccionados: isto é, livremente. Destes, naqueles em que o conhecimento da verdade nua e crua sobre a sua patologia e o seu futuro enquanto doentes os possa afectar seriamente na sua evolução clínica, de modo justificadamente expectável, aceita-se serem também poupados a um esclarecimento cabal. É o chamado privilégio terapêutico. Para além desta situação, outras razões podem permitir o não esclarecimento: os casos de tratamentos de rotina, em que não se vislumbra risco ou dificuldade que force a uma informação detalhada ao doente para que este possa decidir, e os estádios terminais, na medida em que habitualmente determinam o que alguns apelidam de perda de autonomia, justificando formas mais suaves de esclarecimento, ou mesmo a sua omissão.
Duma maneira geral é, pois, fundamental que o doente consinta, ou escolha, depois de esclarecido. Mas a mesma informação pode não ser eficaz em todos os doentes, quer dizer, alguns podem não ficar esclarecidos apesar dela. Há, pois, que procurar a informação, e o modo de a transmitir, mais adequados ao esclarecimento de cada um. Chama-se a isso informação eficaz. Que tem forçosamente de passar por um diálogo entre o médico e o doente, através do qual se perceba no final que este ficou esclarecido. Por mais documentos escritos que sejam entregues ao paciente, e que ele assine, poderá sempre mais tarde argumentar que não lhe foram adequadamente explicados, ou que os percebeu mal. É da comunicação, do colóquio singular, entre o médico e o doente que sai mais eficazmente a informação necessária, que o médico pode adaptar ao doente que tem na sua frente, em contacto consigo, usando inclusivamente, para isso, a empatia profissional que deverá estabelecer com ele.
Que médico deve obter o consentimento informado, esclarecido e livre do doente? O que lhe possa explicar com detalhe o que lhe vai ser feito, e como, as alternativas, as dificuldades a vencer, as complicações possíveis, o que fazer para as evitar e resolver, que resultados esperar. Sem hesitações, com conhecimento de causa, sem dúvidas, de modo a poder tirar todas as que o doente apresente.
E isso legalmente é quanto basta. O facto de o consentimento ter sido obtido por escrito não significa forçosamente que o doente tenha sido adequadamente informado e esclarecido, ou que tenha consentido livremente e não tenha sido induzido a tal. Por isso a nossa Lei não exige um consentimento escrito, e a Entidade Reguladora da Saúde também não, apenas fala em “preferencialmente escrito”. Já a Direcção Geral de Saúde, através da Norma respectiva, impõe um documento escrito. É uma regra administrativa a cumprir nos hospitais, naturalmente, mas que não deve de maneira nenhuma implicar um aligeirar no esforço para que o consentimento do paciente seja colhido por quem o deva colher, isto é, tenha as condições necessárias para  o informar eficazmente, e por isso tal consentimento seja dado de modo informado e esclarecido e se possa dizer livre, tal como atrás ficou dito. Porque, se não tiver sido assim, a simples existência dum papel assinado não terá qualquer peso legal e ético em termos de responsabilidade médica. Antes demonstrará, em si mesma, uma falha do médico na obtenção do consentimento por parte do doente para a intervenção ou tratamento em causa.
In Revista Portuguesa de Cirurgia, 2018

domingo, 2 de fevereiro de 2020

A  EUTANÁSIA

A palavra eutanásia deriva dum vocábulo grego composto por “eu” (bom) e “thanatos” (morte), e literalmente significava “boa morte”, no sentido duma morte tranquila, sem sofrimento. Não tinha, pois, a conotação polémica, e até ominosa, que hoje se lhe atribui. Conta-se que o imperador romano Augusto, sempre que lhe diziam que um conhecido havia morrido serenamente, exclamava “Que os deuses me concedam uma eutanásia assim!”. No nosso tempo, o termo corresponde a ajudar um doente a terminar a vida, para aliviá-lo de dor e sofrimento insuportáveis. Na verdade, essa ajuda pode significar, realmente, pôr termo à vida do doente. Ou, sem medo das palavras (que não se deve ter), matá-lo. Vejamos como e em que condições.
Sendo o objectivo genérico da medicina “prolongar e vida e evitar a morte”, terminar a vida não poderia deixar de suscitar uma série de acaloradas discussões no âmbito ético, religioso, médico e jurídico. Alguns entendem-na como um acto de misericórdia do médico, dentro das suas funções de cuidar dos doentes, fazendo com que os que não podem ser salvos possam morrer “bem”, sem a indignidade dum sofrimento atroz, destruidor em vida da sua personalidade; outros consideram que é uma perversão dos seus objectivos, mesmo uma inversão, tal como na obra de François Truffaut "Fahreneit 451, grau de destruição", em que os bombeiros se transformaram nos que ateavam programada e profissionalmente os fogos…
Antes de continuar, tenhamos noção de alguns procedimentos relacionados directamente com a ideia de eutanásia. Distanásia, por oposição, significa “má morte”, e em medicina entende-se como o adiamento da morte de um doente que se encontra em fase terminal, sem esperança de cura e em sofrimento, condicionando-lhe uma morte lenta e dolorosa, com o recurso a tratamentos médicos considerados desproporcionados. Com o mesmo significado é também usada a expressão "obstinação terapêutica". Ortotanásia, em alternativa às duas, é a morte natural, no momento certo. Não confundir eutanásia com suicídio assistido, no qual o médico fornece ao paciente os meios necessários para pôr termo à própria vida, desde que se verifiquem da parte do doente os pressupostos de incurabilidade, grande sofrimento e desejo, por isso, de morrer.
Eutanásia é o acto intencional de proporcionar a alguém uma morte rápida e indolor para aliviar o sofrimento causado por uma doença incurável e que provoca um grande sofrimento. Pode ser classificada em voluntária e involuntária. Na eutanásia voluntária é a própria pessoa doente que, de forma consciente e dentro dos parâmetros necessários, pede para ser morto. Na eutanásia involuntária a pessoa encontra-se incapaz de expressar o desejo de morrer e essa decisão é tomada por outrem, geralmente cumprindo o desejo anteriormente expresso pelo próprio nesse sentido. A eutanásia pode também ser classificada em activa e passiva. A eutanásia activa é o acto de intervir de forma directa e deliberada para terminar a vida do doente, a eutanásia passiva consiste em não realizar, ou interromper, o tratamento necessário à sua sobrevivência. Esta última poderia eventualmente confundir-se com não praticar distanásia, mas a diferença é que o tratamento abandonado poderia ser eficaz na doença em causa, enquanto na segunda se procura apenas arrastar a vida sem outro objectivo.
A eutanásia, onde é permitida por lei, deve ser levada a cabo por médicos, ou sob a sua supervisão, já que é realizada por motivos clínicos. Os mais comuns, da parte de doentes terminais, são a dor intensa e insuportável, a dispneia marcada e angustiante, a paralisia extensa. Também têm sido apontados a incontinência, a disfagia, náuseas e vómitos, que provocam uma redução significativa da qualidade de vida do doente e uma depressão profunda. Outro motivo psicológico reside no medo de perder o controlo do corpo, a dignidade e a independência. A verdade é que uma depressão psíquica conduz caracteristicamente ao suicídio e, na impossibilidade deste, poderá justificar o pedido de suicídio assistido ou de eutanásia voluntária; o que não significa que, melhorando um pouco, e uma vez passado o período depressivo, o doente não possa deixar de querer morrer.
A eutanásia está no centro de um intenso debate público com diversas considerações de ordem religiosa, ética e prática, que têm origem em diferentes perspectivas sobre o significado e valor da vida humana. Entre os argumentos a favor da prática da eutanásia estão a alegação de que as pessoas têm o direito a tomar decisões sobre o seu corpo e escolher como e quando querem morrer, e que o direito à morte faz parte dos Direitos Humanos (entretanto, se um qualquer indivíduo se tentar suicidar procurar-se-á impedi-lo, e se tentar várias vezes poderá ser proposto para tratamento psiquiátrico). Entre os argumentos contra, estão razões que se prendem com a vontade de Deus, ou falta de respeito pela inviolabilidade da vida, e pelo seu valor, ou considerações éticas sobre a função do médico, que é tratar e não matar. Um óbice mais técnico é o de a permissão da eutanásia voluntária, caso se aceite do ponto de vista moral, poder acabar por levar a casos de eutanásia involuntária, para reduzir custos com a saúde ou ter mais camas vagas (como na Alemanha na segunda guerra mundial, para acomodar o excesso de feridos que vinham da frente de batalha), ou encobrir homicídios. ou colaborar numa eliminação sistemática de todos aqueles que as autoridades julgarem incómodos ou prejudiciais para a sociedade ou para a “raça” (eutanásia eugénica, voltando ao exemplo da Alemanha nazi, em que a prática, estabelecida legalmente e com suporte médico, sem ser nos campos de concentração, foi de “terminar vidas que não valia a pena serem vividas”). Paralelamente, invoca-se que a existência de cuidados paliativos de qualidade retirará a indicação clínica para eutanásia ou para suicídio assistido, insistindo nessa antinomia.
Na maior parte dos países não existe legislação específica a permitir a eutanásia, pelo que terminar a vida dum doente que sofre, tal como fornecer-lhe os meios para o suicídio, é homicídio, punível com pena de prisão, embora frequentemente mitigada por ser um “homicídio piedoso”. Está, no entanto, dentro da lei o médico decidir não prolongar a vida em casos de sofrimento extremo, e administrar sedativos mesmo que isso diminua a esperança de vida do doente. Na Europa, apenas Bélgica, Luxemburgo e Holanda autorizam a eutanásia activa e o suicídio medicamente assistido, dentro de regras clínicas estabelecidas, sendo a Holanda o primeiro dos três a torná-los legais (2001). Na Suíça, a eutanásia não está legalizada mas o suicídio medicamente assistido sim, e do mesmo modo em 5 dos 50 Estados Unidos da América. Do resto do mundo, apenas a Colômbia e o Canadá autorizam a eutanásia voluntária activa e o suicídio assistido. A eutanásia involuntária é ilegal em todos os países e geralmente considerada homicídio. Mesmo nos países em que a eutanásia voluntária é legal, esta continua a ser considerada homicídio se não estiverem cumpridas a condições previstas na lei. No entanto, da Holanda chegam relatórios mencionando, para além de suicídios assistidos e eutanásias a pedido, doentes mortos sem terem expresso desejo disso, no momento ou previamente (por testamento vital, por exemplo), e mesmo sem o seu conhecimento ou das respectivas famílias, embora, naturalmente, sempre alegando razões médicas.
É, quanto a mim, nestas últimas circunstâncias, e naquelas mais antigas, que residem as maiores dúvidas na legalização do suicídio medicamente assistido, embora com regras muito estritas e que o tornem capaz de ser moralmente aceite. É que elas mostram ser possível o que é chamado “slippery slope”, isto é, de um procedimento muito restrito se ir deslizando para um maior alargamento das indicações, primeiro presumindo o desejo não expresso, depois resolvendo mesmo sem essa presunção, e aí por diante, eventualmente misturando as razões iniciais com fins diferentes, como seja de os médicos decidirem se doentes têm ou não vidas que mereçam a pena ser vividas, ou se as camas que ocupam não seriam mais necessárias para outros. Não seria nada inusitado e que não se possa prever, porque já aconteceu.
Em Portugal, foi recentemente posta à votação parlamentar a despenalização do suicídio medicamente assistido, tendo sido recusada. Embora, pessoalmente, não tenha uma ideia definitiva sobre o assunto,  face a todos os argumentos num sentido e noutro, não creio que se possa considerar moralmente inaceitável, e por isso forçosamente ilegal, o proporcionar a morte a um doente terminal, sem esperança de cura, em sofrimento intenso sem possibilidade de ser controlado significativamente, desde que ele o pretenda expressa e conscientemente. É, na realidade, um acto médico de misericórdia, embora também compreenda que para alguns de nós possa ferir o fim último da nossa profissão. Por isso, ele não poderá nunca passar a ser parte integrante e obrigatória do conteúdo funcional de cada médico. Mas trata-se de ajudar um doente a atravessar com alguma serenidade um momento tão dramático da vida como é a morte, depois dum período prolongado de grande sofrimento, já sem esperança. Fala-se do direito a morrer com dignidade, embora este, ao fim e ao cabo, não seja um direito individual absoluto, já que é necessário que outros lhe reconheçam ter as condições médicas exigidas para lhe ser concedido. Será, para quem o aceite, muito importante ter a certeza inquestionável de estarem reunidos esses pressupostos necessários, para além da vontade inequívoca, consciente, informada e esclarecida do interessado, e de esta não resultar, por exemplo, dum estado depressivo ocasional.
Como comentário final a este assunto, não posso deixar de referir situações intimamente relacionadas com ele e que são muito mais frequentes do que aquelas em que um doente possa desejar que lhe seja proporcionada a morte. Refiro-me a quando um doente de avançada idade necessita de cuidados mais diferenciados e, portanto, mais dispendiosos, ou mais consumidores de tempo e de recursos, e tal lhe é recusado. Como exemplo, um doente muito idoso que é operado de urgência, e que na sequência disso teria necessidade de cuidados intensivos, e a respectiva Unidade se recusa a recebê-lo, afirmando que “não vale a pena investir” naquele doente, por causa da idade; nessa impossibilidade, o paciente fica no recobro do bloco operatório, ou na enfermaria, onde eventualmente vem a recuperar, e tem alta, bem, de regresso aos seus entes queridos, que o esperam com ansiedade e amor… sem nunca sequer imaginarem que houve alguém no hospital que decidiu que “não valia a pena”...  É que não se trata de não intervir num doente com grande probabilidade de morrer nessa intervenção, e maior de sobreviver se não for intervencionado: aí a preocupação é pela vida do doente. Ou de recusar fazer um tratamento que não tem qualquer possibilidade de resultar, num doente sem esperança de se salvar: aqui seria distanásia, e essa já se sabe que se deve evitar. Não, é alguém que decide se o doente “tem uma vida que vale a pena viver” ou não; e, pela abstenção terapêutica, a maior parte das vezes não vive mesmo, o que poderia não acontecer se tivesse sido tratado… Claro que situação diferente ainda é se não houver vaga de internamento, ou houver mais do que um candidato para uma só vaga: aqui terá de se fazer um escalonamento da gravidade das situações clínicas em apreço, e dos próprios doentes, idade e vitalidade incluídas. Nessa altura, por muito que custe, por vezes terá de se escolher um em detrimento de outro; a obrigação do médico em todas as situações é fazer por cada doente o melhor possível, mas dentro das condições de que disponha no local onde trabalha. Agora, simplesmente desistir dum doente porque é muito velho, ou porque pode vir a ficar internado muito tempo, e isso “não vale a pena”, soa a eutanásia involuntária, e essa é proibida em todo o lado. E, afinal, são situações dessas que fazem temer o tal “slippery slope”, referido atrás, e a que eventualmente o suicídio assistido poderia vir abrir a porta…
In Newsletter da Cirurgia C, 2018