domingo, 2 de fevereiro de 2020

A  EUTANÁSIA

A palavra eutanásia deriva dum vocábulo grego composto por “eu” (bom) e “thanatos” (morte), e literalmente significava “boa morte”, no sentido duma morte tranquila, sem sofrimento. Não tinha, pois, a conotação polémica, e até ominosa, que hoje se lhe atribui. Conta-se que o imperador romano Augusto, sempre que lhe diziam que um conhecido havia morrido serenamente, exclamava “Que os deuses me concedam uma eutanásia assim!”. No nosso tempo, o termo corresponde a ajudar um doente a terminar a vida, para aliviá-lo de dor e sofrimento insuportáveis. Na verdade, essa ajuda pode significar, realmente, pôr termo à vida do doente. Ou, sem medo das palavras (que não se deve ter), matá-lo. Vejamos como e em que condições.
Sendo o objectivo genérico da medicina “prolongar e vida e evitar a morte”, terminar a vida não poderia deixar de suscitar uma série de acaloradas discussões no âmbito ético, religioso, médico e jurídico. Alguns entendem-na como um acto de misericórdia do médico, dentro das suas funções de cuidar dos doentes, fazendo com que os que não podem ser salvos possam morrer “bem”, sem a indignidade dum sofrimento atroz, destruidor em vida da sua personalidade; outros consideram que é uma perversão dos seus objectivos, mesmo uma inversão, tal como na obra de François Truffaut "Fahreneit 451, grau de destruição", em que os bombeiros se transformaram nos que ateavam programada e profissionalmente os fogos…
Antes de continuar, tenhamos noção de alguns procedimentos relacionados directamente com a ideia de eutanásia. Distanásia, por oposição, significa “má morte”, e em medicina entende-se como o adiamento da morte de um doente que se encontra em fase terminal, sem esperança de cura e em sofrimento, condicionando-lhe uma morte lenta e dolorosa, com o recurso a tratamentos médicos considerados desproporcionados. Com o mesmo significado é também usada a expressão "obstinação terapêutica". Ortotanásia, em alternativa às duas, é a morte natural, no momento certo. Não confundir eutanásia com suicídio assistido, no qual o médico fornece ao paciente os meios necessários para pôr termo à própria vida, desde que se verifiquem da parte do doente os pressupostos de incurabilidade, grande sofrimento e desejo, por isso, de morrer.
Eutanásia é o acto intencional de proporcionar a alguém uma morte rápida e indolor para aliviar o sofrimento causado por uma doença incurável e que provoca um grande sofrimento. Pode ser classificada em voluntária e involuntária. Na eutanásia voluntária é a própria pessoa doente que, de forma consciente e dentro dos parâmetros necessários, pede para ser morto. Na eutanásia involuntária a pessoa encontra-se incapaz de expressar o desejo de morrer e essa decisão é tomada por outrem, geralmente cumprindo o desejo anteriormente expresso pelo próprio nesse sentido. A eutanásia pode também ser classificada em activa e passiva. A eutanásia activa é o acto de intervir de forma directa e deliberada para terminar a vida do doente, a eutanásia passiva consiste em não realizar, ou interromper, o tratamento necessário à sua sobrevivência. Esta última poderia eventualmente confundir-se com não praticar distanásia, mas a diferença é que o tratamento abandonado poderia ser eficaz na doença em causa, enquanto na segunda se procura apenas arrastar a vida sem outro objectivo.
A eutanásia, onde é permitida por lei, deve ser levada a cabo por médicos, ou sob a sua supervisão, já que é realizada por motivos clínicos. Os mais comuns, da parte de doentes terminais, são a dor intensa e insuportável, a dispneia marcada e angustiante, a paralisia extensa. Também têm sido apontados a incontinência, a disfagia, náuseas e vómitos, que provocam uma redução significativa da qualidade de vida do doente e uma depressão profunda. Outro motivo psicológico reside no medo de perder o controlo do corpo, a dignidade e a independência. A verdade é que uma depressão psíquica conduz caracteristicamente ao suicídio e, na impossibilidade deste, poderá justificar o pedido de suicídio assistido ou de eutanásia voluntária; o que não significa que, melhorando um pouco, e uma vez passado o período depressivo, o doente não possa deixar de querer morrer.
A eutanásia está no centro de um intenso debate público com diversas considerações de ordem religiosa, ética e prática, que têm origem em diferentes perspectivas sobre o significado e valor da vida humana. Entre os argumentos a favor da prática da eutanásia estão a alegação de que as pessoas têm o direito a tomar decisões sobre o seu corpo e escolher como e quando querem morrer, e que o direito à morte faz parte dos Direitos Humanos (entretanto, se um qualquer indivíduo se tentar suicidar procurar-se-á impedi-lo, e se tentar várias vezes poderá ser proposto para tratamento psiquiátrico). Entre os argumentos contra, estão razões que se prendem com a vontade de Deus, ou falta de respeito pela inviolabilidade da vida, e pelo seu valor, ou considerações éticas sobre a função do médico, que é tratar e não matar. Um óbice mais técnico é o de a permissão da eutanásia voluntária, caso se aceite do ponto de vista moral, poder acabar por levar a casos de eutanásia involuntária, para reduzir custos com a saúde ou ter mais camas vagas (como na Alemanha na segunda guerra mundial, para acomodar o excesso de feridos que vinham da frente de batalha), ou encobrir homicídios. ou colaborar numa eliminação sistemática de todos aqueles que as autoridades julgarem incómodos ou prejudiciais para a sociedade ou para a “raça” (eutanásia eugénica, voltando ao exemplo da Alemanha nazi, em que a prática, estabelecida legalmente e com suporte médico, sem ser nos campos de concentração, foi de “terminar vidas que não valia a pena serem vividas”). Paralelamente, invoca-se que a existência de cuidados paliativos de qualidade retirará a indicação clínica para eutanásia ou para suicídio assistido, insistindo nessa antinomia.
Na maior parte dos países não existe legislação específica a permitir a eutanásia, pelo que terminar a vida dum doente que sofre, tal como fornecer-lhe os meios para o suicídio, é homicídio, punível com pena de prisão, embora frequentemente mitigada por ser um “homicídio piedoso”. Está, no entanto, dentro da lei o médico decidir não prolongar a vida em casos de sofrimento extremo, e administrar sedativos mesmo que isso diminua a esperança de vida do doente. Na Europa, apenas Bélgica, Luxemburgo e Holanda autorizam a eutanásia activa e o suicídio medicamente assistido, dentro de regras clínicas estabelecidas, sendo a Holanda o primeiro dos três a torná-los legais (2001). Na Suíça, a eutanásia não está legalizada mas o suicídio medicamente assistido sim, e do mesmo modo em 5 dos 50 Estados Unidos da América. Do resto do mundo, apenas a Colômbia e o Canadá autorizam a eutanásia voluntária activa e o suicídio assistido. A eutanásia involuntária é ilegal em todos os países e geralmente considerada homicídio. Mesmo nos países em que a eutanásia voluntária é legal, esta continua a ser considerada homicídio se não estiverem cumpridas a condições previstas na lei. No entanto, da Holanda chegam relatórios mencionando, para além de suicídios assistidos e eutanásias a pedido, doentes mortos sem terem expresso desejo disso, no momento ou previamente (por testamento vital, por exemplo), e mesmo sem o seu conhecimento ou das respectivas famílias, embora, naturalmente, sempre alegando razões médicas.
É, quanto a mim, nestas últimas circunstâncias, e naquelas mais antigas, que residem as maiores dúvidas na legalização do suicídio medicamente assistido, embora com regras muito estritas e que o tornem capaz de ser moralmente aceite. É que elas mostram ser possível o que é chamado “slippery slope”, isto é, de um procedimento muito restrito se ir deslizando para um maior alargamento das indicações, primeiro presumindo o desejo não expresso, depois resolvendo mesmo sem essa presunção, e aí por diante, eventualmente misturando as razões iniciais com fins diferentes, como seja de os médicos decidirem se doentes têm ou não vidas que mereçam a pena ser vividas, ou se as camas que ocupam não seriam mais necessárias para outros. Não seria nada inusitado e que não se possa prever, porque já aconteceu.
Em Portugal, foi recentemente posta à votação parlamentar a despenalização do suicídio medicamente assistido, tendo sido recusada. Embora, pessoalmente, não tenha uma ideia definitiva sobre o assunto,  face a todos os argumentos num sentido e noutro, não creio que se possa considerar moralmente inaceitável, e por isso forçosamente ilegal, o proporcionar a morte a um doente terminal, sem esperança de cura, em sofrimento intenso sem possibilidade de ser controlado significativamente, desde que ele o pretenda expressa e conscientemente. É, na realidade, um acto médico de misericórdia, embora também compreenda que para alguns de nós possa ferir o fim último da nossa profissão. Por isso, ele não poderá nunca passar a ser parte integrante e obrigatória do conteúdo funcional de cada médico. Mas trata-se de ajudar um doente a atravessar com alguma serenidade um momento tão dramático da vida como é a morte, depois dum período prolongado de grande sofrimento, já sem esperança. Fala-se do direito a morrer com dignidade, embora este, ao fim e ao cabo, não seja um direito individual absoluto, já que é necessário que outros lhe reconheçam ter as condições médicas exigidas para lhe ser concedido. Será, para quem o aceite, muito importante ter a certeza inquestionável de estarem reunidos esses pressupostos necessários, para além da vontade inequívoca, consciente, informada e esclarecida do interessado, e de esta não resultar, por exemplo, dum estado depressivo ocasional.
Como comentário final a este assunto, não posso deixar de referir situações intimamente relacionadas com ele e que são muito mais frequentes do que aquelas em que um doente possa desejar que lhe seja proporcionada a morte. Refiro-me a quando um doente de avançada idade necessita de cuidados mais diferenciados e, portanto, mais dispendiosos, ou mais consumidores de tempo e de recursos, e tal lhe é recusado. Como exemplo, um doente muito idoso que é operado de urgência, e que na sequência disso teria necessidade de cuidados intensivos, e a respectiva Unidade se recusa a recebê-lo, afirmando que “não vale a pena investir” naquele doente, por causa da idade; nessa impossibilidade, o paciente fica no recobro do bloco operatório, ou na enfermaria, onde eventualmente vem a recuperar, e tem alta, bem, de regresso aos seus entes queridos, que o esperam com ansiedade e amor… sem nunca sequer imaginarem que houve alguém no hospital que decidiu que “não valia a pena”...  É que não se trata de não intervir num doente com grande probabilidade de morrer nessa intervenção, e maior de sobreviver se não for intervencionado: aí a preocupação é pela vida do doente. Ou de recusar fazer um tratamento que não tem qualquer possibilidade de resultar, num doente sem esperança de se salvar: aqui seria distanásia, e essa já se sabe que se deve evitar. Não, é alguém que decide se o doente “tem uma vida que vale a pena viver” ou não; e, pela abstenção terapêutica, a maior parte das vezes não vive mesmo, o que poderia não acontecer se tivesse sido tratado… Claro que situação diferente ainda é se não houver vaga de internamento, ou houver mais do que um candidato para uma só vaga: aqui terá de se fazer um escalonamento da gravidade das situações clínicas em apreço, e dos próprios doentes, idade e vitalidade incluídas. Nessa altura, por muito que custe, por vezes terá de se escolher um em detrimento de outro; a obrigação do médico em todas as situações é fazer por cada doente o melhor possível, mas dentro das condições de que disponha no local onde trabalha. Agora, simplesmente desistir dum doente porque é muito velho, ou porque pode vir a ficar internado muito tempo, e isso “não vale a pena”, soa a eutanásia involuntária, e essa é proibida em todo o lado. E, afinal, são situações dessas que fazem temer o tal “slippery slope”, referido atrás, e a que eventualmente o suicídio assistido poderia vir abrir a porta…
In Newsletter da Cirurgia C, 2018

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