GUIDELINES E CONSENSOS
Guidelines,
linhas de orientação, orientações, directrizes, são sinónimos que significam
indicações compiladas por alguém no sentido de tornar a execução dum
procedimento mais fácil, por mais automática e sem exigir tanto esforço de
decisão, e mais igual sejam quais forem os intervenientes, seguindo todos essas
mesmas indicações, admitindo-se também que assim se possa obter maior
qualidade. Em medicina, orientações clínicas são guidelines estabelecidas em geral para alguns aspectos de
diagnóstico, terapêutica ou follow-up
específicos nalgumas patologias, habitualmente por serem mais complexos, ou
saídos duma discussão recente ou estarem ainda sujeitos a alguma.
Desde sempre
houve guidelines em medicina, a forma
de se chegar a elas é que mudou. Durante milhares de anos assentaram na
tradição, ou em argumentos da autoridade e da experiência de médicos de renome,
que as redigiam, e impunham (magíster
dixit), e eram entendidas a partir daí quase como uma bíblia pelos seus
vindouros, até que surgiam outras, doutras proveniências, sobre os mesmos
temas, que as alteravam ou até totalmente contrariavam. Mas hoje vivemos na
época da medicina baseada na evidência, e embora esta não seja a melhor
tradução de “evidence-based medicine” todos a entendemos correctamente. Já não
bastam opiniões pessoais, mesmo que vindas de profissionais muito experientes e
sabedores, há que fazer estudos e avaliar resultados do ponto de vista
estatístico para lhes encontrar o significado que permita tirar conclusões
científicas.
O conhecimento
médico procura ser hoje o mais científico possível, embora sem descartar,
naturalmente, a arte que a prática médica também implica. Para além da
investigação científica, de base experimental e laboratorial, recorre-se
actualmente a conhecimento científico baseado em avaliações estatísticas de
grandes grupos de doentes, ou a revisão de múltiplos trabalhos científicos
sobre o mesmo tema realizados de forma considerada adequada, e é a partir desse
conhecimento científico que nalgumas situações são elaboradas guidelines.
Quem as elabora?
Qualquer um o pode fazer, recorrendo aos mesmos conhecimentos disponíveis para
todos, mas em geral são grupos de profissionais, de sociedades científicas,
capítulos de sociedades mais ligados ao tema em debate, associações de médicos.
Admitindo que actualmente as guidelines
procuram sempre uma base científica, o valor intrínseco de cada uma está, no
entanto, muito dependente da sua origem, de quem as elaborou, por um lado, e,
por outro, da forma como se chegou a ela, e a nenhuma se pode atribuir um valor
absoluto e indiscutível. Aliás, uma orientação é isso mesmo, serve para
orientar, e não implica uma obrigatoriedade estrita no seu cumprimento. É uma
ajuda, todos devemos ter conhecimento das que dizem respeito à nossa actividade,
mas não são um protocolo que se tenha de seguir sempre rigorosamente. Em
primeiro lugar, porque podem variar segundo a sua autoria, daí a importância de
se saber a sua origem e a preocupação cada vez maior de instituições médicas de
relevo quererem ter as suas, bem como de organizações governamentais nos vários
países, que as elaboram, através de reconhecidos peritos convidados para o
efeito, para terem presumivelmente uma maior garantia de qualidade. Exemplo
disso, e louvável, é a nossa Direcção Geral de Saúde e as várias orientações
clínicas que vai produzindo. Depois, para além de variarem segundo os
conhecimentos, a experiência e a capacidade de quem as faz, podem variar com o
tempo, são sempre datadas, é preciso serem substituídas de vez em quando. E um
problema, por exemplo, é saber quando já deviam ter sido substituídas e ainda o
não foram.
Há,
frequentemente, a tendência para pensar que o que é científico, ou foi obtido
por métodos científicos, é certo e está para além de qualquer dúvida ou discussão.
E esta é uma ideia errada e que pode ser perigosa. Porque o que caracteriza, na
realidade, a ciência é a sua incerteza! A ciência está em constante evolução,
progride continuamente pela investigação, na procura da verdade. Mas o que hoje
parece verdade amanhã pode não ser, e ser até errado. É nesta incerteza na
procura que reside o valor e o interesse da ciência, como algo que nunca está
esgotado. Algo que, por exemplo, não se pode resumir a uma simples
orientação... Não que elas não devam existir, devem com certeza, para
simplificar, lembrar, estandardizar, tornar mais eficiente o conhecimento que
cada um tem do assunto em questão, mas sem que se pretenda que substituam esse
conhecimento! Não se podem diagnosticar, tratar, seguir, doentes apenas por guidelines, sem estar dentro da
respectiva patologia; mas é importante conhecê-las e aplicá-las, percebendo
eventualmente quando há que fazer algo diferente, de acordo com o que se sabe
do assunto e do doente em causa. É frequente
dizer-se com propriedade que muita coisa boa se pode fazer conscientemente fora
das guidelines – mas desde que se
conheçam, acrescento eu...
Nalguns
problemas médicos sem consenso no que respeita à etiologia, etiopatogenia,
diagnóstico, terapêutica ou follow-up,
com dúvidas e discussão em curso, recorre-se por vezes a reuniões chamadas de
consenso. Juntam-se peritos da área em apreço que, em conjunto, baseados no
conhecimento científico de que se dispõe no momento, se manifestam sobre o
assunto. Esses consensos correspondem, pois, a opiniões assentes em dados
científicos e procuram traduzir o estado da arte na matéria em questão, podendo
levar mais tarde à criação de guidelines.
Como em qualquer consenso, não é forçoso que os membros do grupo constituído
estejam todos de acordo, e não se atinge por votação em que os que são a favor
sejam em maior número que os que votam contra: é necessário é que haja uma
maioria a favor e os outros não sejam contra.
Tratando de
problemas relacionados com a investigação científica, e dada a incerteza que
caracteriza a ciência, ainda mais em questões que, por definição da necessidade
de consenso, não estão bem estabelecidas, também há necessidade da revisão
periódica destes consensos, embora talvez menos vezes que das orientações
clínicas. E também o seu peso científico está relacionado com o peso individual
de quem integrou o grupo de consenso, e a forma como foi atingido, podendo até
haver conclusões diferentes de grupos diferentes, na mesma altura e sobre a
mesma matéria.
Consensos
médicos são, pois, afirmações científicas sobre determinados assuntos feitas
por conjuntos de peritos que se pretendem representativos da comunidade
científica, e que se crê traduzirem o que a evidence-based
medicine nos diz no momento em que elas são feitas, nomeadamente envolvendo
investigações específicas a decorrer. Correspondem a imagens da realidade
médica, necessariamente datadas mas que terão sempre, naquela data, de ser
tomadas em conta na prática médica.
Finalmente, de
notar, porque não infrequente, o facto de um consenso científico que se formou
sobre um determinado assunto poder ser extrapolado para fora da ciência e usado
como argumento ou força de pressão numa discussão doutro cariz, ou para basear
uma qualquer teoria doutro tipo, noutro contexto, por exemplo social, económico
ou político, inclusivamente esquecendo-se o seu carácter necessariamente
incerto e sujeito a mudanças. E do mesmo modo ao contrário, isto é, a falta
ainda de consenso científico pretender ser tomada como a sua ausência
definitiva e irrevogável.
Guidelines
e consensos constituem, assim, parte integrante da medicina baseada na
evidência, e têm de ser compreendidos, valorizados e utilizados como aquilo que
são.
In Newsletter da Cirurgia C, 2017
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