terça-feira, 31 de dezembro de 2019

BRINCANDO ÀS CARREIRAS

É ponto assente entre os médicos portugueses já com prática clínica significativa que as carreiras médicas foram um dos pilares do nosso serviço nacional de saúde, e condição que permitiu que, a par de uma formação médica pré-graduada de qualidade e que não coloca de maneira nenhuma mal o nosso país no mundo ocidental, os nossos especialistas também possam ombrear com os seus colegas ocidentais. Apresentando uma preparação profissional com o mesmo nível de qualidade num país muito mais pobre, e agora a ficar decididamente para trás nesta Europa superalargada - se não se conseguir entretanto aumentar o nosso produto interno bruto, em fase descendente.
As carreiras não só permitiram uma formação médica estruturada e contínua, como souberam criar, com naturalidade e insensivelmente, os estímulos necessários e suficientes para a obtenção dessa formação. E, aspecto muito importante, uma formação homogénea, nos grandes hospitais como nos pequenos, quer no litoral quer no interior mais recôndito, com uma cobertura nacional de especialistas de qualidade, permitindo que todos os portugueses possam aspirar a ser bem tratados sem terem de se deslocar para longe da sua casa e da sua família, e muito menos para o estrangeiro.  
Mas a verdade é que as carreiras médicas acabaram. Não por decreto ou anúncio na televisão, mas na prática e na decorrência directa do novo regime de gestão hospitalar. Foi este, na verdade, que as matou. 
Passou a haver contratações apenas em regime individual de trabalho, e para os médicos que já estavam integrados nas carreiras o grau ou o lugar que nelas ocupavam deixou de contar seja para o que for, a não ser para, prosaicamente e como sinal dos novos tempos que aí estão, de primado do dinheiro na saúde, ganharem de maneira diferente uns dos outros. Mas o sinal mais evidente, e o primeiro a mostrar que as carreiras já estavam condenadas a desaparecer pelo governo e seus comissários políticos nos hospitais, foi o modo como se passaram a nomear os directores de serviço nos hospitais EPE, e até já antes nalguns hospitais SPA, nestes ao arrepio da lei mas com a cobertura da tutela.
O director de serviço é o encarregado da gestão do serviço, sendo que esta não se pode entender separadamente da actividade clínica, estando forçosamente imbricada com ela, uma vez que não se deve confundir – como alguns, intencionalmente ou por ignorância, pretendem – com uma gestão contabilística ou de guarda-livros. O director de serviço tem, pois, de ser uma referência profissional entre os colegas, o profissional com mais experiência e provas dadas, mais graduado em termos de hierarquia técnico-científica, mais conceituado dentro e fora do serviço e do hospital. É a ele que é confiada a formação pós-graduada, quem escolhe os orientadores de formação, o responsável pelos internos e pela actividade científica e de investigação do grupo de trabalho que o Serviço constitui.  
Com lógica, a sua escolha, definida na lei, era feita entre os que no Serviço tinham atingido o topo da carreira médica, depois de ouvidos todos os outros para se auscultar a sua aceitação. Agora é imposto pelo conselho de administração, independentemente do grau da carreira, sem quaisquer regras ou critérios definidos, a não ser o de possuir o “perfil” adequado. Qual perfil? O que o conselho de administração ache que é o adequado. Porventura o mesmo que alguém achou também que eles tinham para integrar aquele conselho. É o “achismo”, a nova forma de nomeação nos hospitais públicos no nosso país. Que, como se adivinha, abre as portas escancaradas ao “amiguismo” e ao compadrio, os quais, valha a verdade, sempre tentaram marcar presença entre nós. Mas que só agora ficaram institucionalizados.
E as nomeações sucedem-se, de amigos e compadres por amigos e compadres, num “achismo” eventualmente temperado por quezílias pessoais, pequenas ou grandes invejas, desentendimentos e vinganças, e muito, muito oportunismo. E sem falar também do modo deselegante – para dizer o menos – como muitos directores têm sido afastados e substituídos, sem qualquer explicação, manifestação só por si preocupante de desrespeito humano, impunidade e arbitrariedade.
É claro que um dia se irá inevitavelmente regressar ao primado da competência, das provas dadas, da diferenciação técnica, da hierarquia profissional assente em conhecimentos e experiência, e uma onda virá que leve de volta ao local de onde saíram tantos dos noveis gestores de serviço agora achados. Mas não sem que fiquem marcas negativas nos Serviços, nos Hospitais e na Saúde, e por isso é bom que tudo se registe agora, como memória futura para se poderem mais tarde fazer as correcções adequadas. 
Ora, paralelamente a esta situação, continuam nos hospitais EPE os concursos da carreira médica, seja para a graduação em consultor seja para o lugar de chefe de serviço. E para quê?! Concursos numa carreira acabada? Brinca-se às carreiras médicas? Ou desempenha-se um papel imaginário numa realidade desaparecida, como loucos encerrados num manicómio que piedosamente se deixam viver convencidos que são personagens que já não existem? E que assim vão continuar até morrerem ou, neste caso, até se reformarem, extinguindo-se os seus lugares mal isso aconteça. Porquê isto?
Com certeza que todos têm direito a progredir na carreira, todos tinham expectativas de o fazer e ficamos contentes que o façam, isso não está em causa. Como também os que tinham atingido o topo tinham expectativas acerca disso, agora goradas. Porque um facto é que a carreira médica acabou, e a progressão nela deixou de ter finalidade, a não ser ganhar mais fazendo exactamente o mesmo.  
Se o único objectivo desses concursos agora parece ser o de permitir que alguns médicos passem a ganhar mais, por que razão eles são abertos na lógica governamental vigente de poupar o mais possível na saúde? A explicação razoável é que se gasta algum dinheiro para procurar manter os médicos de carreira hospitalar entretidos, na ideia de que está, afinal, tudo na mesma, iludindo assim os seus próprios protestos. Porque eles são os que compreendem melhor a importância das carreiras médicas e serão os primeiros a protestar pelo seu desaparecimento. Que já aconteceu, apesar dos concursos a decorrer…
Estes concursos, na verdade, não fazem sentido no momento actual, embora se devam, com certeza, aproveitar. O que não nos devem é fazer esquecer o fim real das carreiras médicas, nem abrandar sequer o movimento de lutar pelo seu ressurgimento, como factor verdadeiramente crucial de qualidade e progresso na medicina e na saúde do nosso país, pese embora o que delas o ministério da saúde pensa – ou não pensa.
2007, in Farpas pela nossa Saúde, 2009, Ed. MinervaCoimbra


quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

OS CUSTOS DA SAÚDE


Sou português e médico, e agora representante de médicos que resolveram dedicar a sua vida profissional a trabalhar nos hospitais, em exclusividade ou não. Os médicos têm uma mística, bem consubstanciada no chamado juramento de Hipócrates, que os leva a pretenderem sempre, com naturalidade, o melhor para os seus doentes. Esta mística, que muito mais prosaicamente se poderá chamar simplesmente “consciência profissional”, não é de todo compreendida por muitos, incluindo alguns que trabalham na área da saúde mas não lidam com os doentes.  
É na verdade uma verdadeira “deformação profissional”, que nos faz procurar em todos os momentos os melhores remédios, os exames auxiliares de diagnóstico mais adequados, as melhores condições para os doentes. Essa preocupação ultrapassa todas as questões políticas, a importância social ou financeira dos doentes, a rentabilidade económica do hospital. Se não pudermos tratar adequadamente um doente, isso dói, marca, corrói. Uma vida não se pode simplesmente traduzir em euros. Muitos não entendem isto, a não ser que um dia lhes toque à porta, como doentes. A nós toca-nos todos os dias.
Mas é claro que como profissionais, e também como cidadãos, não nos apartamos dos gastos com a nossa profissão. Num jornal há tempos dizia-se que o Estado Português despende 20 milhões de euros por dia com a saúde. Não vou pôr esse número em questão, apesar de não conhecer exactamente a sua origem. Mas é um número absoluto, e eu pergunto: é muito ou pouco? Para aquilo que nos proporciona, quero dizer.
A ser correcto, corresponderá ao quadro do que é reconhecido internacionalmente que a saúde no nosso país custa: 9,6% do PIB (dados da Organização Mundial de Saúde). E isso é muito? Não é? Para se ter uma ideia, veja-se que os Estados Unidos da América gastam 15,2 %. Do PIB deles, sempre a crescer e que nos últimos 30 anos aumentou 10 vezes. Não como o nosso, que cresce tão pouco que mais parece ter sempre o mesmo valor. Na Europa comunitária, os gastos com a saúde, por exemplo, em França são de 10,1 % do PIB local, na Alemanha 11,1 %, na Grécia 9,9 %. Também há a Espanha com 7,7 %, a Irlanda com 7,3 % e o Reino Unido com 8 %. Portugal está, pois, na média, mas se calcularmos o que cada país gasta realmente ”per capita” com a saúde, então o nosso país é de longe aquele em que a saúde fica mais barata: contra os nossos 1700 dólares temos os 2389 do Reino Unido, os 2500 da Irlanda e os 1850 da Espanha, para além dos 2000 da Grécia, dos 3000 da Alemanha e dos 2900 da França, para não referir já os 5700 dos Estados Unidos. Para melhor comparação se podem referir ainda outros países da Europa Ocidental, como a Suécia, com 9,4 % e 2700 dólares por cabeça, e a Finlândia, com 7,4 % do PIB mas 2100 dólares gastos por cada finlandês. Quer dizer, anunciar que o nosso país é um gastador desastroso com a saúde é uma falácia, já que na realidade é o que gasta menos.
Mas quando se gasta dinheiro, há que avaliar a sua rentabilidade. Perguntemo-nos portanto: o que se tem obtido entre nós com esses 1700 dólares por cabeça? Um Serviço Nacional de Saúde aberto a todos, podendo cada português recorrer aos Centros de Saúde ou aos Hospitais e ser atendido de acordo com as suas queixas clínicas sem ter de provar que tem dinheiro para pagar; medicamentos comparticipados, alguns a 100 %; e hospitais bem equipados, com médicos com boa preparação de base, em boas Escolas Médicas, com formação pós-graduada contínua adequada e avaliada periodicamente, escalonados nos locais de trabalho pela sua diferenciação profissional e provas dadas. Um Serviço com alguns problemas de funcionamento, mas nada impossível de ser corrigido.
No último relatório da OMS sobre sistemas de saúde dos vários países do mundo, o Serviço Nacional de Saúde português surge classificado em 12º lugar no desempenho global. É o 5º da Europa comunitária, e bem à frente dos EUA, país que ocupa apenas o 37º lugar. Em que outra actividade é Portugal melhor do que 12º no mundo, a contar da frente? No futebol, no hóquei, e…
Portanto os gastos com a saúde têm valido a pena. Mas é evidente que o aumento do custo da saúde nos deve preocupar a todos. Em grande parte ele é devido a um avanço científico e tecnológico nunca antes observado, e que nos deverá fazer sentir felizes a todos – enquanto possíveis doentes – por se dar na nossa época. E também agrada aos médicos, claro, que assim se realizam mais profundamente do ponto de vista profissional, deitando-se mais vezes felizes por terem ajudado nesse dia um doente que estaria há uns anos sem qualquer solução.
Esses gastos são, por esse lado, bem-vindos. Com certeza que devem ser racionalizados, mas um país socialmente evoluído não poderá invocar falta de dinheiro para deixar de ter uma medicina de boa qualidade, não poderá pretender ser avançado e ao mesmo tempo deixar-se atrasar do ponto de vista sanitário. É lícito procurar conter as despesas com a saúde, mas é preciso manter a qualidade do atendimento aos doentes. E para isso é crucial manter a qualidade profissional dos médicos, e dos outros profissionais que ajudam a tratar os doentes, o que é directamente dependente da organização médico-hospitalar nacional. Diminuir os gastos diminuindo a qualidade não é habilidade nenhuma.
Nos Estados Unidos da América existe também a preocupação de conter o custo da saúde. Cortar a qualidade médica do atendimento não lhes parece ser a solução, embora algumas medidas entretanto tomadas tenham tido esse efeito, logo severamente criticado. Como foi a de diminuir drasticamente nalguns hospitais o número de enfermeiros, substituindo-os por pessoal menos qualificado, e por isso mais barato.
Analisando o problema, especialistas norteamericanos chegaram à conclusão que cerca de 40% do orçamento para a saúde vai para a área administrativa, não contemplando portanto o binómio médico-doente. Pelo contrário, grande parte do trabalho dos administrativos e administradores é simplesmente procurarem reduzir o que os médicos gastam com os doentes. E calcularam que cortando para metade esses custos administrativos, sem relação directa com o atendimento aos doentes, poderiam pagar o acesso médico a todos os que naquele país não o têm neste momento estabelecido por falta de meios financeiros. Interessante, não é? E por cá?... Mas uma decisão dessas tem-se mostrado difícil, porque lá, como noutros países, quem a deveria tomar move-se precisamente naquela área.
Outro modo de reduzir os custos, dizem os americanos, seria diminuir o número de hospitais e outros centros de atendimento a doentes. Na verdade, não são os salários do pessoal de saúde que justificam os custos crescentes, mas sim, para além do preço duma máquina burocrática e informática sempre a aumentar, o consumo pelos doentes de medidas diagnósticas e terapêuticas cada vez mais eficazes mas também mais caras. Se não houver acesso fácil e rápido dos pacientes aos cuidados de saúde, pode calcular-se que muitos acabarão por desistir, porque ficaram entretanto sem queixas, ou porque recorreram a outras medidas quaisquer, não comparticipadas pelo sistema. É claro que haverá também aqueles para quem o atraso na ida ao médico correu mal…
No economicismo da saúde o preço da saúde é limitativo, e há que fazer contas. Mas para o médico, um doente seu que morre tem um valor absoluto. Muito oportunamente, na conjuntura actual, o nosso Bastonário alertou já para o facto de ser uma falta grave do ponto de vista da ética profissional deixar de se tratar um único doente que seja, rico ou pobre, citadino ou rural, duma cidade grande ou duma aldeia pequena, para poupar dinheiro.
Se se quiser manter o acesso fácil e universal de todos os portugueses à saúde, como é preceituado constitucionalmente – já que o tendencialmente gratuito parece ter ficado definitivamente esquecido – não é fechando hospitais e centros de saúde que se conseguirá
Em resumo, há que ter preocupação com os custos da saúde, mas há formas apropriadas de os conter, visando sempre manter a qualidade dos cuidados de saúde prestados. Que em Portugal não desmerecem, até ao momento, da sua qualidade de país europeu evoluído. Com gastos reduzidos quando comparados com o resto da Europa. Mas o nosso Governo quer poupar dinheiro com a saúde, e nesse sentido tem vindo a tomar medidas que afectam sobretudo o atendimento aos doentes. Sem que tenha com isso conseguido travar o crescimento das despesas, eventualmente pela sobrecarga administrativa e burocrática que essas mesmas medidas acarretaram. Em termos clínicos não parece possível poupar mais sem reduzir a qualidade para baixo dos níveis admissíveis.
Aguardemos o que o Ministério da Saúde vai fazer. Seja o que for, o que conta é o resultado, e haverá sempre que o comparar com o que temos actualmente. Sobretudo em termos de atendimento aos doentes, o qual é directamente resultante das condições de trabalho e da formação contínua dos médicos deste país. Que há que preservar, a bem do que é inestimável em qualquer povo: a Saúde. Se o Ministério tiver como desiderato final e único reduzir os gastos com a saúde, deverá ter como objectivo a Libéria, com gastos na Saúde de 4,7 % do PIB e 17 dólares por cabeça. Saúde mais barata não há. Será que a vamos atingir?...  
2006, in Farpas pela nossa Saúde, 2009

sábado, 21 de dezembro de 2019

ORIENTADORES DE FORMAÇÃO - UMA APOSTA GANHA


1992. Criação pelo Ministério da Saúde da figura do "orientador de formação", por proposta do Conselho Nacional dos Internatos Médicos (CNIM) ao Departamento de Recursos Humanos da Saúde. A par da expectativa interessada e construtiva dos internos e da maioria dos especialistas, muitos deles responsáveis pela formação pós-graduação, houve nalguns círculos de médicos uma atitude de descrença acompanhada da tentativa de destruir essa figura logo à nascença. Aparentemente não conseguiram tais colegas antever as funções desse orientador de formação criado por lei, e a sua importância na preparação dos internos, ou então, por razões várias que não é altura para tentar descortinar, não as quiseram ver. Não há realmente pior cego do que o que não quer ver.
Para os que a priori rejeitavam o orientador de formação proposto pelo CNIM, o ridículo seria o grande óbice para a sua existência, a par da sua completa inutilidade e até do perigo que poderia representar. Diziam eles que se queria comparar os internos de especialidade a crianças de jardim-escola, acompanhadas de perto pelos educadores, e que os especialistas teriam de suportar a presença constante dos seus orientandos. Mais: os internos do complementar eram perfeitamente capazes de aprender sozinhos, o que era preciso era que o Serviço onde estagiavam tivesse uma boa casuística; e o facto de serem postos a trabalhar exclusivamente com um especialista dar-lhes-ia uma visão muito restrita e truncada da matéria da sua especialidade.
Esta era a parte negativa apontada, vejamos o que era pretendido e o que aconteceu.
A regulamentação dos internatos médicos levada a cabo em Portugal forneceu aos internos portugueses um conjunto de direitos e deveres nessa fase da sua vida profissional. Esses direitos e deveres estão directa e intimamente relacionados com o programa de formação estabelecido para a sua especialidade, programa em que se definem os objectivos didácticos a atingir, quer do ponto de vista dos actos médico-cirúrgicos a praticar quer das atitudes e dos conhecimentos profissionais a adquirir. Os internos devem procurar atingir esses objectivos no decurso do seu período de formação, e têm o direito de exigir que na Instituição onde foram colocados lhes sejam criadas condições para que isso aconteça.
O programa de formação não é, obviamente, exaustivo, e deve servir antes como linha orientadora, indicando o que os internos devem minimamente ter feito e saber antes de poderem iniciar a sua actividade como especialistas. Por isso é também chamado currículo mínimo, contribuindo como tal para a definição quantitativa e qualitativa da idoneidade dos Serviços para ministrarem internatos de especialidade. Mas entre esse mínimo que é exigido e a melhor preparação pós-graduação possível vai uma distância que compete ao interno procurar percorrer, com a ajuda da Instituição e dos que, mais diferenciados, com ele nela trabalham.
No internato geral pretende-se que os jovens médicos adquiram as atitudes e o comportamento próprios dum profissional médico, no internato complementar quer-se que se formem como especialistas, entrando aqui a ajuda dos seus orientadores de formação. Mas note-se que estes não são os equivalentes modernos dos mestres da antiga Grécia na medicina hipocrática, em que os candidatos a médico aprendiam acompanhando os médicos, vendo como procediam, fazendo como eles faziam, ouvindo as suas explicações e o relato dos casos que tinham tido. Esse papel é, nos nossos dias, desempenhado por nós todos, quando médicos mais velhos e mais diferenciados com quem cada interno lida diariamente e a quem insensivelmente imita na sua actividade profissional, pelo menos até adquirir ele próprio uma capacidade crítica independente. Todos nos devemos, pois, lembrar permanentemente disto, e estar conscientes que o nosso comportamento e o nosso desempenho estão a servir de modelo para alguém menos diferenciado.
Mas para que servem então os orientadores de formação? A resposta é simples: para orientar a formação.
Orientar significa encaminhar, nortear. A formação médica pós-graduada é seguramente agora muito mais difícil e complicada do que em tempos idos, embora os meios para a sua obtenção sejam cada vez mais sofisticados e poderosos. O orientador de formação foi antes de mais delineado como um profissional com especialização na área de formação do interno, e capaz por isso de lhe transmitir algumas das suas experiências, aconselhá-lo quanto ao modo de melhor utilizar os recursos ao seu dispor, programar com ele e com o Director do Serviço os estágios a efectuar e a respectiva cronologia, animá-lo e ensiná-lo nos seus momentos de maior desânimo e de maior dificuldade. Momentos por que eventualmente já passou e que compreende perfeitamente. Um outro aspecto é a colaboração na produção de trabalhos científicos, de investigação, de revisão de casos clínicos ou de bibliografia, a apresentar nas reuniões do Serviço ou externamente, colaboração que servirá ao fim e ao cabo como um estímulo para os dois, orientador e orientando. A indicação de livros e de revistas técnico-científicos mais aconselhados é algo que se espera de quem orienta a formação profissional de alguém, bem como a escolha dos melhores locais para os estágios parcelares extra-Serviço, podendo eventualmente, de acordo com o Director de Serviço, estabelecer os contactos pessoais necessários. 
Uma preocupação constante do orientador de formação deve ser a avaliação dos progressos e das dificuldades revelados pelo interno, avaliação feita pessoalmente ou por troca de impressões com os especialistas com quem ele tenha trabalhado directamente. Esta avaliação contínua é fundamental para o aproveitamento do internato, isto é, para corrigir atempadamente erros ou insuficiências na formação. Periodicamente há avaliações formais, de conhecimentos e do currículo entretanto conseguido, em que o orientador também participa, tal como na avaliação final, contribuindo assim para um melhor conhecimento do interno e, portanto, para uma classificação o mais correcta possível.
É este o papel previsto para o orientador de formação, e há que admitir que duma maneira geral ele tem sido adequadamente desempenhado pelos colegas a quem foi distribuído. Como em todas as áreas da actividade humana, haverá com certeza uns melhores do que outros, uns com mais jeito, ou mais capacidade, ou mais vontade para desempenhar as suas funções. Mas isso não põe seguramente em causa as próprias funções, e a sua importância. E a verdade é que a figura do orientador de formação se instalou e faz parte do dia a dia dos nossos internatos. Para além do seu efeito benéfico na própria formação, ele veio contribuir para um maior entrosamento na equipa médica de cada Serviço, contribuindo imperceptivelmente para desenvolver um maior espírito de entreajuda e de colaboração, dentro e fora do Serviço. E ousarei dizer que muitos trabalhos científicos, alguns eventualmente de grande qualidade, tiveram na sua base uma orientação de formação empenhada, responsável, e até entusiasta. Geradora também de grandes amizades para toda a vida. 
Em conclusão, a aposta do CNIM nos orientadores de formação foi manifestamente ganha, pesem embora alguns desinteresses ou incapacidades individuais pontuais. As dúvidas que sobre eles foram de início lançadas, procurando sobretudo ridicularizá-los, não colheram, e a prática se encarregou de as dissipar. Há é que os estimular, dignificar e recompensar, até mesmo, por que não, monetariamente.
Para terminar, gostaria de citar a Comissão Consultiva para a Formação Médica, órgão consultivo máximo da União Europeia nesta matéria, e que recomenda expressamente a existência de orientadores de formação nos internatos médicos. Será que essa Comissão tem razão?! Em Portugal já os temos há 8 anos e eu acho que sim, acho que tem razão. 
In Revista do CHC (Centro Hospitalar de Coimbra), 2000

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

O MEU MÉDICO

O meu médico, e da minha família, quando eu era garoto e vivíamos em Moura, no Baixo Alentejo, era o Dr. Janeirinho. Era ele que tratava os nossos achaques todos, o ataque de reumatismo da minha mãe, a úlcera duodenal do meu pai, a hipertensão arterial da minha avó, as minhas doenças de infância – só não entrou no meu quarto quando viu da porta que eu tinha sarampo, coisa que ele nunca tinha tido e não queria ter... Foi a ele que o meu pai recorreu quando num final de tarde quente de Verão, quase à hora de jantar, eu dei com a cabeça na ombreira de pedra da porta, ao brincar ao “agarra” com os meus amigos, na minha rua. Entrei em casa, já com todos à mesa, com a cara cheia de sangue que escorria abundantemente duma ferida aberta na testa. Fomos de imediato ao consultório do nosso médico, que era junto à casa onde morava, e ele saiu da mesa de jantar, afável e atento como sempre, para me vir observar, procurou estancar a hemorragia e tentou dar-me uns pontos. Digo tentou porque, perante a minha gritaria, ele e o meu pai acordaram em deixar a ferida cicatrizar por segunda intenção e eu ficar com a pequena cicatriz que tenho na testa... 
E foi ele quem enviou o meu pai de urgência para Lisboa quando a úlcera perfurou. A ambulância teve de atravessar no cacilheiro, não havia ainda a ponte, lembro-me bem de tudo porque a minha mãe me levou com ela na ambulância, por não ter na altura com quem me deixar em segurança. Chegámos às Urgências do Hospital de S. José e o meu pai esperou lá oito horas até ser operado. Não com certeza por incompetência ou negligência, mas porque era para onde iam praticamente todas as urgências, quase duas mil por dia, e, embora tivesse uma equipa de cirurgia de vinte elementos (vim a saber já depois de cirurgião), havia momentos em que não tinham mãos a medir. Felizmente teve alta ao fim de doze dias, e no almoço de comemoração que os amigos lhe ofereceram em Moura foi convidado de honra o nosso médico, apesar de no dia a dia não fazer propriamente parte desse grupo.
A organização da Saúde no nosso país mudou muito desde então, com o Serviço Nacional de Saúde, as Carreiras e os Internatos Médicos. E o termo “médico de família” passou a ser a expressão duma especialidade médica. Mas a verdade é que os cuidados primários e imediatos da população terão de continuar a estar nas mãos destes médicos, tal como os nossos estavam nas do “nosso” Dr. Janeirinho. Não sei se algum seu descendente virá a ler estas minhas palavras, mas se o fizer ficará a saber da importância que ele teve para a minha família, de modo a ainda hoje isso me saltar à memória quando falo do “meu médico” de infância. Não sei que experiência ele teria em suturar feridas (provavelmente não teria tido a possibilidade de frequentar um curso prático nessa matéria, como um que o nosso Serviço vai passar a levar a cabo, já no dia 21 de Março próximo, especificamente para médicos de família), mas se calhar estava à vontade a fazê-lo depois de muitas tentativas e erros em muitos doentes, com muito esforço e muito empenho em fazer bem o que era preciso fazer!... Como disse, os tempos mudaram, e há condições para mudarem ainda mais, para melhor.
A cada passo no hospital ouvimos os doentes falarem do “seu médico”, a quem recorrem nos seus achaques, do que ele lhes diz para fazer ou não fazer, e que se espera encare, diagnostique e trate o que puder ser feito e tratado no local, sem envio sistemático para os Serviços de Urgência hospitalares. Sobretudo depois de as Urgências de proximidade terem sido progressivamente desactivadas, substituídas por ambulâncias, táxis ou carros particulares dos doentes ou seus familiares e amigos. Mas terão de ser atribuídos aos médicos de família os meios e as condições para que possam lidar no local com os “seus doentes”, daí ganhando a satisfação profissional que tal lhes poderá proporcionar enquanto especialistas de medicina geral e familiar. Mantendo, naturalmente, uma ligação directa e fácil com os colegas dos hospitais da sua zona, com intercâmbio de informação, comunicação de resultados, troca de correspondência sobre os doentes que, sendo do “seu médico”, também passam pelo hospital. Não pode haver uma separação de cuidados, antes uma especialização de cuidados, que há forçosamente que ter integrados, para benefício dos “nossos doentes”.
Com a concentração (outro nome para fusão, ou para encerramento) de Serviços, Hospitais, Urgências, o número destes, por um lado, diminuiu e, por outro lado, foram afastados de muitos cidadãos, marcando ainda mais a periferia em que estes vivem, seja do país seja das grandes cidades. Por isso é tantas vezes penoso terem de se deslocar para longe em busca de cuidados de saúde, sozinhos ou acompanhados pela família, com perda por eles todos de tempo de trabalho e com gasto de recursos. Procurando pequenos e grandes cuidados de saúde em grandes Urgências concentradas, totalmente superlotadas por doentes e profissionais, estes sempre poucos para tanta procura. Como aconteceu naquela noite no Hospital de S. José ao meu pai, com a peritonite, a mulher e o filho criança.
A evolução em Portugal, durante anos de SNS, foi no sentido da descentralização, com Centros de Saúde e com Hospitais e Urgências mais pequenos e bem equipados, espalhados pelo país. Melhores condições mais perto dos cidadãos, desde o seu médico de família ao seu hospital. E os resultados foram muito bons. Face ao que temos vivido, esperemos que à descentralização não se siga a concentração de novo, levando os doentes outra vez obrigatoriamente aos grandes Hospitais e às suas Urgências sobrepovoadas e, por isso, impessoais e menos atentas, com muito maior risco de erros e complicações.
2017, in Newsletter da Cirurgia C, 2018

sábado, 14 de dezembro de 2019

INTERNATOS MÉDICOS À PORTUGUESA


Uma amiga minha holandesa veio a Portugal há anos, em trabalho, e aproveitou para dar uma volta de carro pela zona centro do País. Quando regressou, disse-me: “Tu vives num país inacabado!”. Fiquei surpreendido – esperava que as suas primeiras impressões fossem sobre o sol, a paisagem, a simpatia das pessoas, a boa comida, o bom vinho e as más estradas – mas depois de pensar um pouco não pude deixar de lhe dar razão. Bastou-me evocar as bermas das estradas novas, não arranjadas e, na verdade, completamente esfarrapadas; o terreno à volta das casas recém-construídas e já habitadas, cheio de restos de material de construção ali esquecidos, como bocados de madeira, latas de tinta vazias, areia, etc.; as placas centrais das avenidas novas e o espaço debaixo das pontes já construídas e utilizadas, durante tempos infindos “decorados” com o entulho das respectivas obras, e do mesmo modo as placas centrais das rotundas, frequentemente deixadas durante muito tempo cheias de pedras, lixo, sinalizadores de plástico…. Se bem pensarmos, até dizem que dá azar acabar completamente a nossa casa…
Os exemplos que corroboram a justeza da apreciação daquela minha arguta amiga, cidadã pragmática e eficiente dum país do norte, em relação ao nosso velho Portugal, são, na verdade, inúmeros. Bastar-nos-á, inclusivamente, olhar à nossa volta no local onde diariamente nos esforçamos por trabalhar o melhor possível: um Bloco Operatório terminado sem que os respectivos acessos por elevador tenham sido construídos, por quem o devia ter feito, a Unidade de Cuidados Intensivos Pós-Operatórios de obras feitas mas sem equipamento nem doentes, a nova Urgência à espera sine die, já com as colunas de cimento armado erguidas, os caixotes com equipamento jazendo tempos infindos pelos corredores…
Antes de estabelecidos os internatos médicos hospitalares, a especialização pós-graduada era conseguida com base em dois aspectos fundamentais: o convite e o voluntariado. Os recém-licenciados podiam ser convidados para assistente, seguindo depois ou não a carreira docente, mas tendo desse modo a possibilidade de receber treino na especialidade eventualmente do seu agrado. E digo "eventualmente" porque a maior parte das vezes não eram eles que a escolhiam, eram antes os jovens médicos que eram escolhidos pelos Professores para as diversas Cadeiras, correspondentes às várias especialidades. Digamos que o dar aulas práticas, para aqueles não especialmente interessados na docência, era, para além, obviamente, duma forma de valorização pessoal, um meio para atingir um fim: tornarem-se especialistas. E ganhando dinheiro ao mesmo tempo, porque havia os que o faziam voluntariamente, trabalhando no Hospital, na especialidade da sua escolha mas só depois de serem aceites no Serviço respectivo, sem por isso receberem um tostão. Era o que vulgarmente se chamava "tirar a especialidade à Ordem": após um período de tempo variável, de acordo com o que iam conseguindo fazer no Hospital e com a opinião do Director do Serviço onde estagiavam, podiam apresentar-se a exame final na Ordem dos Médicos, a fim de obterem o respectivo título de Especialista.
Refira-se que neste quadro havia uma excepção no que respeita especificamente aos Hospitais Civis de Lisboa, com os seus Internatos pagos, com concurso de admissão e perfeitamente estruturados, e, com certeza também por isso, de altíssima qualidade e durante longo tempo referência para todo o País. Acrescente-se ainda que nos outros Hospitais Centrais havia também concurso todos os anos para admissão de um total de dois ou três internos, pagos pelo Hospital, e que eram escalonados por ordem da classificação final no curso.
O facto de os internos voluntários não ganharem nada no Hospital onde treinavam, e caso não tivessem meios próprios ou de família que os sustentassem durante aqueles anos, sendo já licenciados, levava a que procurassem trabalho remunerado como médicos, o que faziam fora do hospital. Era o célebre trabalho de "fazer Caixas", isto é, fazer consultas de clínica médica nos postos clínicos das Caixas de Previdência, como se chamava a Segurança Social de então. Isto é, havia que dividir, e frequentemente sobrepor (...), o horário de trabalho gratuito no hospital, de especialização, com o de trabalho remunerado, de sobrevivência, nas "Caixas". Imagina-se a dificuldade em obter deste modo uma preparação especializada aceitável, em matérias ainda por cima eminentemente práticas, de contacto directo com os doentes. Não havia controlo nenhum obrigatório da sua actividade hospitalar, mas eram, evidentemente, obrigados a cumprir o seu horário nos postos clínicos onde viam doentes. O exame final, na Ordem dos Médicos, mais ou menos difícil consoante os júris, mas desgarrado que era em relação à real preparação clínica dos candidatos, não tinha, porque não podia pura e simplesmente ter, em conta o que eles sabiam fazer, ou tinham feito, na prática. E uma especialidade médica não pode, obviamente, ser puramente livresca: ela é para exercer na prática, é para lidar com casos concretos, nas consultas, nas enfermarias, nos blocos operatórios.  
Em 1982 foi criado o Regulamento dos Internatos Médicos, com o objectivo de estruturar o ensino médico pós-graduação em Portugal. Entraram então em funcionamento os Órgãos dos Internatos Médicos - Directores de Internato Médico, nos Hospitais, e Coordenadores de Internato na Clínica Geral e na Saúde Pública, Comissões Regionais de Internato Médico (CRIM), Comissão Nacional dos Internatos Médicos (CNIM), presentemente Conselho Nacional dos Internatos Médicos - visando a organização, nacional, regional e local, desse ensino, o qual foi, desse modo, tornado algo definido por lei, obrigatório de adquirir e de ministrar.
A fim de permitir que os internos se dedicassem completamente à sua função específica - profissionalização nos internos gerais, especialização nos internos de especialidade – passou-lhes a ser entregue uma remuneração. Esta era primitivamente paga directamente pelo Ministério da Saúde, mas em breve este alijou esse encargo para os Hospitais. O objectivo é, pois, que eles não sejam obrigados a dispersar-se por outras actividades, médicas ou não médicas, não relacionadas com a sua aprendizagem específica, a qual deve constituir o seu desideratum no Hospital onde estão colocados, e o desideratum do próprio Hospital no que lhes diz respeito.
A primeira preocupação das Comissões de Internato, logo após a sua criação por Decreto-Lei, foi de estruturar os diversos internatos, de modo a que todo e qualquer interno no país recebesse uma preparação especializada considerada pelo menos como minimamente capaz, e que isso pudesse ser avaliado quer no final do internato quer durante este. Esta última avaliação, contínua, deve, na verdade, ser considerada como parte integrante da preparação, uma vez que é a única maneira de a corrigir atempadamente: chegar ao fim do internato e dizer a um interno que não aprendeu como devia é um pouco tardio… E é principalmente pouco eficaz.
Rapidamente os membros das Comissões se aperceberam de que aquela avaliação, como manifestação duma preparação programada, evolutiva e consequente, e que se queria homogénea, igual ou pelo menos equivalente, em todo o País, estava na dependência da existência dum Programa de Formação para cada especialidade. Um programa mínimo de formação (que às vezes se vê chamado de "curriculum mínimo"), que fosse seguido em todo os Serviços que tivessem internos daquela especialidade. Isto teria também por fim, por um lado, poder-se analisar objectivamente a capacidade do Serviço para fornecer a especialização em causa (isto é, a chamada "idoneidade" do Serviço), e, por outro, evitar que os internos estivessem totalmente dependentes da maior ou menor boa vontade dos membros do Serviço, dum maior ou menor desejo ou capacidade de ensinar, de mais ou menos paciência para ajudar a fazer e a aprender. É claro que há-de haver sempre Serviços melhores do que outros, mas deste modo procurou-se conseguir uma equalização de todos os Serviços idóneos, quanto mais não fosse pelo nível mínimo necessário. Há objectivos concretos a cumprir, e isso é uma garantia de qualidade, pelo menos na quantidade... Relacionada com este último aspecto está a indicação, caracterizando a idoneidade atribuída, do número máximo de internos colocáveis em cada Serviço, número que o Ministério depois reduz a vagas, por critérios que lhe são próprios e estranhos à CNIM.
Os programas de formação de cada especialidade tinham obviamente de ser redigidos por especialistas na área, e foi assim que a Comissão Nacional dos Internatos Médicos recorreu aos Colégios de Especialidade, ou melhor, às suas direcções. Os programas foram sendo elaborados, e a Comissão apenas procurou que todos eles, tanto quanto possível, seguissem um modelo semelhante, que permitisse a tal objectividade no que diz respeito à avaliação contínua daquilo que é ensinado, aprendido e praticado.
A figura do Orientador de Formação (1992), tão ridicularizada no início, provou ser uma boa aposta, e destina-se sobretudo a actuar mais directa e precocemente na correcção de quaisquer dificuldades que o interno tenha ou sinta na sua preparação, contribuindo também, claro, para o avaliar. O Director de Serviço é o responsável pela formação especializada do interno complementar, e deve velar para que ele se prepare adequadamente, seguindo como orientação o programa do respectivo internato. E é ele também o responsável final pelas classificações parcelares atribuídas a cada interno. O Director de Internato coordena os vários internatos no Hospital e assegura o cumprimento dos respectivos programas.
As classificações parcelares são apenas um aspecto da avaliação contínua, a qual, como atrás se diz, deve ser considerada como parte integrante da formação, traduzindo realmente o que o interno aprendeu e fez durante todo o internato, isto é, os seus conhecimentos e desempenho.
As Comissões de Internato sempre consideraram a existência dum exame final de internato em complemento da avaliação contínua de conhecimentos e de desempenho, e sempre assim se manifestaram. Não fazia era sentido haver dois exames: o do Hospital, ou do Ministério da Saúde, que na verdade é o responsável pela formação pós-graduada, e que até a paga, e o da Ordem dos Médicos. A imposição teimosa de haver dois exames tinha por base a asserção "o meu exame é melhor que o teu", e por isso os internos eram obrigados a fazer os dois (um para ser especialista pelas Carreiras Médicas, ou Assistente Hospitalar, outro para ser Especialista pela Ordem dos Médicos). Não tinha qualquer cabimento, tanto mais que, face à CEE, eram ambos equivalentes. Depois de longas negociações com a Direcção da Ordem dos Médicos, e sendo dela Presidente o Dr. Santana Maia (que os mais novos porventura não saberão pertencer ao quadro do Centro Hospitalar de Coimbra, ter sido durante muitos anos Director do Serviço de Medicina Interna do nosso Hospital e ocupado o lugar de Presidente do Conselho de Gerência, agora de Administração, do C.H.C.), chegou-se finalmente, em 1994, à Titulação Única, por que todos ansiavam.      
Encerrou-se nessa altura um ciclo, 12 anos depois, terminando-se um trabalho iniciado com a regulamentação dos Internatos Médicos e a criação dos respectivos Órgãos de Internato. Havia-se começado por estabelecer balizas objectivas para as matérias a aprender, as atitudes a adquirir e os actos técnicos a praticar em cada processo de formação especializada, definindo conjuntamente o tempo de duração deste e os locais idóneos para ser ministrado. Realçou-se depois a importância da avaliação contínua e surgiram os orientadores de formação, sendo nessa altura a preocupação-chave tornar a formação o mais eficaz possível, com feedback a cada momento. Finalmente, após uma formação criteriosa, entendeu-se dever haver um exame final, como corolário de toda essa preparação, permitindo classificar mais precisamente o interno mas, principalmente, contribuindo para assegurar que ele está em condições de ser considerado especialista.
O que nos pode encher de satisfação, como portugueses, é que somos o único país com os internatos médicos estruturados dentro dos parâmetros apresentados. Mas satisfação porquê? Porque o órgão máximo da CEE nestas matérias, o Advisory Committee for Medical Training, ainda está na fase de recomendar que os internos sejam sempre pagos durante a sua aprendizagem, que haja programas de formação definidos, que sejam acompanhados por orientadores de formação e que os locais de internato sejam escolhidos consoante a sua idoneidade para os ministrar... Nisto, pelo menos, vamos bem à frente!
Ao fim e ao cabo, e ao contrário do que é habitual no nosso país, estamos, nesta matéria, diante duma obra terminada, construída com princípio, meio e fim. É claro que nada está definitivamente feito, é sempre possível modificar um edifício. Tentativas pode haver de melhorar o que existe, como por exemplo a experiência ora iniciada em Coimbra de encurtar o internato geral, iniciando-se a fase de profissionalização ainda durante o curso médico. Mas o que agora ressalta é uma outra característica deste povo à beira-mar plantado, e que aquela minha amiga holandesa, por muito perspicaz que seja, não teve tempo para perceber: é o dizer mal das poucas obras terminadas que por cá vai havendo, é o não fazer mas também não deixar fazer, é o destruir o que logra ser feito. Não descansar enquanto não se destrói tudo o que está bem, é outra pecha nossa. Quando há algo organizado e a funcionar, que até os países do norte por acaso ainda não conseguiram, embora para lá caminhem, há que intrigar, atacar, minar, desorganizar. Pois é a isso que se está neste momento a assistir, contra a Regulamentação dos Internatos Médicos e as Comissões de Internato.
Num meio predominantemente desorganizado e a viver de expedientes, sem que se queira ir ao âmago das questões, a organização funciona frequentemente como um corpo estranho que até parece indesejável. Nessas condições a tendência entre nós parece ser, infelizmente, a de nivelar pela desorganização, ou, pelo menos, pela indefinição. E, apesar de tudo, isso pode compreender-se, pois para muitos dos incapazes a desordem é que é boa, na confusão é que conseguem o que doutro modo lhes estaria, para bem de todos, vedado. 
In Farpas pela nossa Saúde, 2009, Ed. MinervaCoimbra

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

O ERRO MÉDICO

Errar é humano, e como tal todos podemos errar e esperar desculpa por isso, se o erro não tiver sido intencional ou doloso. O problema é quando desse erro tiver resultado algum inconveniente, ou transtorno, para outrem, que aparece então como vítima ocasional. Mas em Medicina nem sempre é fácil definir o que é erro, e a sua percepção é seguramente diferente dos médicos para os doentes. Para estes, basta que o resultado do que o médico fez não seja tão bom como o esperado para o espectro do erro surgir de imediato. E os médicos, pelo contrário, sabem que nem sempre os erros têm maus resultados. São bem conhecidos os aforismos da prática médica segundo os quais “um erro por ter bom resultado não deixa de ser um erro”, e “há médicos que têm êxitos que não merecem”. Por outro lado, frequentemente o que as pessoas pensam ser um erro médico é, antes, um efeito adverso duma conduta adequada, uma intercorrência médica, ou, então, um acidente, que não são da responsabilidade de ninguém porque não houve qualquer falha. Isto porque a prestação de cuidados de saúde é uma actividade complexa, incerta no resultado e com reconhecido potencial para causar danos colaterais nos doentes, embora estes tendam a não aceitar essa realidade.
Mas, afinal, o que é um erro médico? Pode-se definir primariamente como uma conduta profissional inadequada (em desacordo com as leges artis), por acção ou omissão, e que supõe a inobservância de regras técnico-científicas, com produção de danos à vida ou à saúde de alguém, sem intenção de os produzir.  Esta definição pode, no entanto, ser sujeita a discussão, desde logo porque exclui condutas daquele tipo cujo resultado não constitua dano para o paciente. E quanto ao não seguimento das regras técnicas e científicas, sendo a ciência caracterizada pela incerteza, e pela mudança, nem sempre será fácil determinar que elas não foram realmente seguidas.
Se há situações em que o erro é óbvio, como amputar o membro errado ou deixar uma compressa esquecida no abdómen, há outras em que não é assim tão fácil de o considerar. O tipo de tratamento cirúrgico escolhido para um determinado caso, a técnica utilizada os meios de diagnóstico usados, por exemplo, poderão eventualmente ser considerados errados por uns e não por outros, e já vimos que nem sempre o resultado obtido faz a diferença. E para que um mau resultado leve à conclusão da existência de erro prévio, é preciso estabelecer-se um nexo de causalidade com o que foi feito, sendo inequivocamente excluídas como causas todas as possíveis variantes da evolução clínica, e atentas as condições particulares do caso em cada momento. 
Frequentemente se fazem sobrepor as designações “erro” e “negligência”, mas não são exactamente a mesma coisa. Isto é, considera-se negligência um erro particular, em que à violação das leges artis se junta um comportamento do profissional que configura uma falta ao “dever de cuidado”. Quer dizer, em que o profissional tenha mostrado falta de cuidado para com o paciente, e não tenha feito por ele tudo o que era suposto fazer naquelas circunstâncias, e da melhor maneira. Também aqui é necessário fazer corresponder os danos no paciente à actuação do profissional, e excluída alguma falta de condições da instituição de saúde, por exemplo organizativas ou técnicas, que não lhe permitisse actuar doutro modo.
“Erro médico” não significa forçosamente erro do médico, mas sim de qualquer profissional ligado à saúde, ou que é da responsabilidade global duma instituição médica. É algo que, obviamente, preocupa todos os médicos e restantes profissionais envolvidos, bem como as instituições onde trabalham, e um estudo do Eurobarómetro da Comissão Europeia mostrou que cerca de 50% dos portugueses têm receio de vir a ser vítimas dum erro médico, embora só 16% declarem ter já sofrido algo que classificaram desse modo. Esta discrepância de números pode traduzir algum destaque exagerado que a comunicação social tem dado ao assunto entre nós, mas nos EUA o erro médico é anunciado como 6ª causa de morte. As especialidades em que ele é mais vezes invocado são a Obstetrícia, a Ortopedia, a Cirurgia Geral, a Ginecologia, a Oftalmologia e a Medicina Interna.
Sendo verdade que todos podemos numa dada altura errar, há um conjunto de situações que levam a que o erro aconteça mais facilmente. Para começar, essa possibilidade aumenta com a menor experiência do profissional, e menos conhecimentos técnico-científicos, ou falta de perícia técnica, sobretudo se em associação com imprudência e inconsciência, por não reconhecimento das próprias limitações. Há quem, por palavras simples, aponte três mecanismos principais para o erro médico: a negligência (não fazer o que devia ser feito), a imprudência (fazer o que não devia fazer), e a imperícia (fazer mal o que devia fazer).
Também o excesso de trabalho, a falta de tempo para o executar como deve ser, o cansaço durante a sua execução, a falta de horas de sono, são factores que podem ser determinantes.
Pode-se errar por simples falta de atenção, eventualmente num acto que se considera mais rotineiro, ou menos importante, mas o erro tem maior probabilidade de acontecer em casos mais difíceis e complexos.  Muitas vezes por deficiência de registo do que se fez e do que se pretende fazer, do plano estabelecido para o doente, e por falta de comunicação entre os profissionais que se afadigam à volta dele. E o stress, sentido em momentos cruciais que obrigam a decisões quase imediatas, ou com muitos prós e muitos contras, predispõe claramente para a ocorrência de erro.
Na prevenção do erro, a existência de protocolos de actuação em várias situações mais frequentes, libertando a atenção e o raciocínio, quer nos casos mais simples quer nos mais exigentes, pode ser eficaz. Mas lembrar o erro é crucial para o evitar. É importante termos sempre presente a sua possibilidade, desse modo procurando evitar todas as situações que o facilitam. Também é eficaz haver nos hospitais revisões de morbimortalidade em que sejam identificados e discutidos erros eventualmente cometidos, não com intuito punitivo mas didáctico e de prevenção. E tem sido advogada, nomeadamente pela Comissão Europeia, a publicação periódica oficial de erros, juntamente com incidentes e acidentes (como no programa Notific@, da nossa DGS), de forma a todos aprenderem com a experiência de todos, e assim possibilitar a implementação de medidas que impeçam a repetição desses eventos. O problema com estas duas últimas medidas é que podem ser entendidas como reconhecimento de culpa, e por isso ser usadas para processar os profissionais ou/e as instituições em causa.
Mas os hospitais, para combater o erro, devem fazer mais do que simplesmente confiar na capacidade dos seus profissionais para o evitar, estimular as reuniões de morbimortalidade,  publicar listas de eventos adversos e erros e estabelecer protocolos de actuação: têm de olhar pelas condições de trabalho que proporcionam, a qualidade do material que fornecem, a sua organização clínico-administrativa. Porque tudo isso, se insuficiente, pode levar ao erro, e ser julgado como negligência dele causadora.
E o que deve fazer um cirurgião quando o erro ou o acidente cirúrgicos acontecem? Antes de mais deve reconhecer o que aconteceu, e enfrentar a situação. E procurar resolvê-la, de imediato se for possível. Qualquer cirurgião tem de ter os conhecimentos teóricos e o know-how técnico necessários para corrigir as complicações que resultarem da sua actividade cirúrgica. Será imprudente que opere sem os ter, dependendo então em absoluto doutros colegas, que podem estar ou não ao seu alcance imediato quando forem necessários; mas a quem ele não deve hesitar em pedir ajuda se achar que precisa, ou que o doente precisa, para o melhor resultado possível. Aliás, a boa regra é quem comete um erro pedir sempre ajuda a um colega em quem confie, mesmo que tenha a capacidade para o corrigir: alguém não comprometido com o acontecido, sem essa preocupação, estará seguramente de cabeça mais desanuviada, com o raciocínio mais limpo, e a sua intervenção será do maior valor, mesmo que seja só para dar uma opinião.
Não dar conta do erro cometido é mau, mas dar e fazer de conta que não aconteceu é pior. Não fazer nada na esperança que passe despercebido, agravando as consequências do evento, entra directamente no campo da negligência pura e dura. A tentativa de esconder o sucedido, se tiver consequências deletérias para o paciente, é criminosa. Se cometeu um erro tem de o assumir e procurar resolvê-lo, na medida do possível.
Outro aspecto importante é se o cirurgião deve ou não comunicar sempre o erro ao doente. Em acidentes ou erros sem resultados nefastos essa questão não se põe: dá-los a conhecer ao doente seria inútil e contraproducente, por gerar sofrimento psicológico desnecessário. Nos outros casos, creio que será uma questão de bom senso, dentro da empatia que deve estar na base da relação do médico com o doente, e orientada no sentido da melhor resolução possível da situação.
Os acidentes previamente considerados possíveis, tenham sido dados especificamente a conhecer ao doente, aquando da obtenção do seu consentimento informado, ou não, por entrarem no grupo das complicações cirúrgicas gerais, não colocam problemas. Os erros sim. É sabido que é mais fácil os doentes não os aceitaram se a sua relação com o médico não for boa, ou se se deteriorar na altura. É fundamental por isso procurar preservá-la, escolhendo judiciosamente o que dizer ao doente, quer em termos de forma quer de conteúdo, tendo sempre presente que o paciente tem o direito de saber o que lhe aconteceu. Mantê-lo ostensiva e agressivamente na ignorância é mau, como pode ser comunicar-lhe o sucedido de forma fria e quase impessoal, como se fosse algo que não diz respeito ao médico ou que não o incomoda. Informá-lo, assumindo que algo correu mal mas que se vai fazer, em conjunto com ele e por causa dele, todo o esforço para resolver o assunto ou pelo menos diminuir os estragos, é em geral a melhor atitude. O envolvimento da família mais chegada também pode ser útil para reduzir a ansiedade do próprio paciente.
Há quem advogue um distanciamento do doente e da sua família por parte do médico – com o que não concordo, como digo atrás -, bem como do seu advogado - o que já acho bem: a ser necessário, serão os advogados a contactar uns com os outros. Há também quem, valorizando a preservação da relação médico-doente, insista em que o médico, ao assumir o erro, deve pedir desculpa ao paciente por ele. Podendo haver situações extremas que o justifiquem, não parece que na maior parte dos casos isso seja razoável, desde logo porque não vai ajudar em nada a manter uma boa relação do doente para com o médico, indo minar ainda mais a sua confiança (já de si abalada pelo sucedido) no que continua a ser o seu médico, e depois porque esse pedido poderá ser usado como reconhecimento liminar de culpa num processo legal que venha a ser levantado. 
Em resumo, o erro médico pode acontecer a qualquer um, em situações complicadas como em situações simples, e a possibilidade da sua ocorrência deve estar sempre presente, o que ajuda a evitá-lo. Como ajuda a enumeração periódica dos erros e a avaliação das condições em que se produziram, levando a que sejam tomadas, quer pelos profissionais quer pelas instituições, medidas que os possam evitar. Quando sucedem têm de ser reconhecidos e as suas consequências enfrentadas e minoradas ou eliminadas, devendo o médico causador envolver-se decisivamente na sua resolução e envolver também o doente, procurando preservar a relação profissional entre os dois.

In Newsletter da Cirurgia C, 2018

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

A RELAÇÃO MÉDICO-DOENTE

Este é um assunto de crucial importância para médicos e doentes desde que Hipócrates fez emergir da medicina mágica e religiosa da altura a medicina ao jeito da que hoje praticamos. Faz parte da arte médica que se mantém para além da cada vez maior tecnologia, e por isso nunca perde actualidade. Ainda no recente Congresso Nacional de Medicina, em Coimbra, ele mereceu uma mesa redonda onde foram feitas palestras de grande interesse e profundidade, focando-a sobretudo em dois aspectos: empatia e tempo. Eu teria posto antes a tónica noutro: profissionalismo.
Ser médico é uma profissão, e por isso a relação entre o médico e o doente é uma relação profissional. Diz-se frequentemente que “o maior risco para um doente é ser amigo do médico”, o que significa que este pode ter o seu raciocínio clínico toldado pela amizade por aquele, por exemplo não querendo sujeitar a pessoa de quem gosta a exames ou tratamentos que podem ser desagradáveis, seguindo sem se dar conta a convicção que os seus amigos não vão ter doenças graves que os possam matar, não tomando medidas drásticas que às vezes se impõem, etc. Quer dizer, é perigoso para o doente que a afectividade do médico em relação a ele possa interferir na relação profissional entre ambos. Por isso o médico deve abster-se o mais possível de tal afectividade. Doutra maneira a sua relação com os doentes estaria dependente dela, tratando aqueles de quem gosta de maneira diferente dos que não gosta. E isso, obviamente, não pode acontecer. Porque é a sua profissão.
O profissional médico deve, pois, tratar os doentes sem afectividade por eles, de modo a manter o raciocínio frio e a tomar sem envolvimento pessoal as decisões mais correctas, enquanto técnico, em cada caso. Mas se não envolve a sua própria afectividade, não pode de maneira nenhuma pôr de parte a do doente. Porque é um profissional, e o seu objecto enquanto tal – o paciente - tem sentimentos, estados de alma, receios, esperança, desespero, e tudo isso pode ter influência física na evolução da doença, através provavelmente de mediadores químicos, alguns já conhecidos, a maior parte ainda não. Isto é, os afectos fazem parte do doente, e ele não deve ser considerado sem eles.
É nesta conformidade que é fundamental estabelecer empatia com o doente. Empatia é a capacidade de se entender a emoção dos outros, de compreendermos os seus sentimentos em cada altura, procurando nós experimentá-los de forma objectiva e racional como se estivéssemos na mesma situação vivenciada por eles. É compartilhar a dor psicológica dos outros, é saber ouvi-los sem julgar, sentindo-nos no seu lugar e transmitindo-lhes essa sensação. A empatia assim estabelecida ajuda a compreender melhor o seu comportamento e motivações em determinadas circunstâncias, e a forma como tomam decisões. E orientar a terapêutica de acordo com isso. E leva à confiança do doente no seu médico, sentimento que contribui seguramente para se conseguirem melhores resultados.
Empatia deriva do grego “empatheia”, que significa “paixão, emoção, sentimento”, e pressupõe uma comunicação afectiva com outra pessoa, sendo desse modo um dos fundamentos da identificação e compreensão psicológica de outros indivíduos. É muito importante que o médico tenha em conta a emoção do seu paciente, a sinta, comungue com ela, mas sem se consumir nela. Isto é, a empatia estabelecida deve fazê-lo compreender os problemas do doente, e que este sinta essa compreensão e que existe preocupação e vontade em o entender e ajudar, mas sem que isso tolde a sua visão clara, objectiva e não emocional da pessoa doente que tem à sua frente e com quem fala. Porque empatia não é sinónimo de simpatia, e muito menos de amizade, ou amor, e devemos procurar estabelecê-la com todos os doentes, quer nos sejam simpáticos ou mesmo gostemos deles, quer exactamente o contrário. E também não é sinónimo ou implica compaixão, porque aí também se sente a emoção do outro como se fosse nossa mas sofremos com ela. A procura de empatia na relação médico-doente tem de fazer parte integrante do profissionalismo médico, e deve sem dúvida ser treinada na sua preparação enquanto tal, e depois aperfeiçoada ao longo da sua vida profissional.
Estabelecer empatia com o doente implica conversar com ele, ouvi-lo, questioná-lo, olhá-lo nos olhos, mostrar-lhe que estamos ali, diante dele, a procurar entendê-lo e ajudá-lo. Mais, que o vamos ajudar e acompanhar no esforço que vai ter de fazer até ficar curado. Olhar para o computador e escrever enquanto ele fala, parecendo um polícia a tomar conta duma ocorrência, não ajuda. Ignorar com ar mais ou menos enfadado as queixas menos relevantes ou não relacionadas, também não. Estabelecer um diálogo vivo com ele, orientando-o para o clinicamente importante, e construindo uma história clínica, sim. E é importante tentar perceber os seus receios (algumas vezes cuidadosamente disfarçados, não vão ser confirmados…), e procurar fazê-los desaparecer ou atenuar, não dando falsas esperanças mas nunca as tirando por completo. A empatia médico-doente é na verdade uma arte, fácil e intuitiva para alguns, mais complexa para outros, mas todos a devem procurar atingir e melhorar. Porque é fundamental quando se lida com pessoas, e com elas a parte científica e tecnológica da medicina, só por si, é pouco.
Outro aspecto de relevo na relação empática com o doente reside na forma como o chamamos. É importante tratá-lo pelo nome – o problema coloca-se sobretudo em ambiente hospitalar -, de modo a personalizar o nosso relacionamento com ele, identificando-o no meio de todos os outros doentes. E como ele não está a cumprir pena, ou a ser castigado, antes está num momento particularmente difícil da sua vida, e forçosamente fragilizado, deveremos ter o cuidado de nos dirigirmos a ele do modo por que é tratado habitualmente. Quer dizer, entre nós em geral pelo apelido (embora às vezes pelo primeiro nome), e com algum título que lhe pertença e seja usado no dia a dia. Isto de modo nenhum colocando-o em qualquer pedestal na enfermaria, com privilégios especiais (todos os doentes têm de ser tratados da melhor maneira possível), mas no sentido de não o agredir chamando-o de modo a que não está habituado. E sabemos que qualquer agressão é negativa para o nosso esforço de o ajudar a recuperar da sua doença.
Para além de tudo isso, e para não quebrar eventualmente a empatia criada com o doente, deverá sobremaneira evitar-se qualquer discussão clínica diante dele que demonstre algum desconhecimento nosso sobre o seu processo. Por isso a visita médica deverá ser preparada previamente, recolhendo-se todos os dados que durante ela venham a ser necessários, sobretudo nos Hospitais e Serviços mais evoluídos informaticamente em que já não há papel a acompanhar a visita, se bem que nalguns desses, ainda mais diferenciados nesse aspecto, ela já seja seguida em tempo real por tablet  ou smartphone (como há muito se faz no Serviço onde trabalho).
Também o tempo dedicado aos doentes tem de ser o que um profissional necessita. Nem mais, nem menos. Ainda dentro da noção de empatia, nunca se deve dar a impressão ao doente que estamos com pressa – mesmo que seja o caso. O doente tem de sentir que temos para ele todo o tempo de que necessita, o que não significa, claro, que passemos com ele horas de conversa social! Admito que seja considerado um tempo médio de consulta - como de intervenções cirúrgicas, ou de outros quaisquer procedimentos – mas devemos lembrar-nos que o tempo necessário depende do médico, do doente e de cada caso clínico. O tempo médio não pode ser um tempo absoluto, ao fim do qual o guichet se fecha ou o doente tem de dar lugar a outro! Ou o médico é penalizado, e por isso fica condicionado para despachar mais depressa os seus doentes mais difíceis ou que ele não consegue observar ou tratar devidamente no tempo definido como regra. Se é verdade que há consultas que podem ser bem feitas em muito pouco tempo, há outras que para o ser vão muito além do tempo médio. A querer seguir-se a tónica da “produção”, hoje tão na moda dos que tornaram os hospitais centros de produção, calcule-se então essa média num período de trabalho suficientemente alargado, para que todos os doentes possam ser observados e tratados no tempo de que necessitem sem que o médico que o faz seja penalizado por o fazer. Assim se preservando acima de tudo a qualidade do acto médico praticado.
Concluindo, a relação médico-doente não é uma relação simpática com alguém simpático. É uma relação profissional, que deve ser baseada numa empatia estabelecida entre o médico e o seu doente, e em que aquele dedica a este o tempo necessário, e cria condições para o acompanhar durante a sua doença e enquanto ele estiver ao seu cuidado.
In Revista Portuguesa de Cirurgia
RETALHOS DE VIDA DUM CIRURGIÃO

Introdução

Cheguei à idade em que se olha mais para trás do que para diante, mas não quero deixar de encarar o futuro de frente, vivendo o presente em função do que quero que aquele seja, e batendo-me para o conseguir.  Costuma-se dizer que “a vida é uma luta”, mas querem saber uma coisa? É que é mesmo.  Para uns mais que outros, alguns combatendo mais afincadamente, havendo os que chegam ao fim melhor que outros, mas em todos ela deixa marcas, que constituem uma experiência. E é assim, uma experiência, que as devemos encarar, no sentido de as podermos aproveitar para ir aprendendo a agir e a reagir da melhor maneira ao que nos vai acontecendo. É hábito dizer, também, que no fim da vida é que estaríamos em melhores condições de a começar, mas, infelizmente, tal não se pode experimentar. E, na verdade, não sei se quereria: isso tirar-nos-ia a excitação da descoberta, da aprendizagem, das sensações novas, que constituem muito do prazer de viver, sendo certo que muita dessa experiência seria muito útil para saber encarar adequadamente o presente e preparar correctamente o futuro.  Claro que um modo de conjugar tudo isto será procurar transmitir aos mais novos a experiência dos mais velhos. Tarefa difícil, pela própria definição de juventude… E porque cada um tem de arranjar a sua própria experiência, isto é, tem de viver…

Seja como for, passou-me pela cabeça e resolvi aproveitar a rede social e ir apresentando nesta página, periodicamente, textos que publiquei dispersamente ao longo dos últimos anos em várias revistas e jornais, ou reuni em dois livros, “Farpas pela nossa Saúde” e “Newsletter da Cirurgia C”. Porque os tempos que correm mos fazem evocar, e se calhar porque me dá prazer revisitá-los. E também na esperança que sirvam para alguma coisa aos colegas mais novos, e haja mais velhos que neles se revejam. E, ainda, permitir que doentes – que somos nós todos, afinal, mais tarde ou mais cedo… - tenham uma ideia do que os médicos – neste caso, eu – possam pensar e sentir no exercício da sua profissão.

E aqui vai hoje o primeiro.