terça-feira, 10 de dezembro de 2019

O ERRO MÉDICO

Errar é humano, e como tal todos podemos errar e esperar desculpa por isso, se o erro não tiver sido intencional ou doloso. O problema é quando desse erro tiver resultado algum inconveniente, ou transtorno, para outrem, que aparece então como vítima ocasional. Mas em Medicina nem sempre é fácil definir o que é erro, e a sua percepção é seguramente diferente dos médicos para os doentes. Para estes, basta que o resultado do que o médico fez não seja tão bom como o esperado para o espectro do erro surgir de imediato. E os médicos, pelo contrário, sabem que nem sempre os erros têm maus resultados. São bem conhecidos os aforismos da prática médica segundo os quais “um erro por ter bom resultado não deixa de ser um erro”, e “há médicos que têm êxitos que não merecem”. Por outro lado, frequentemente o que as pessoas pensam ser um erro médico é, antes, um efeito adverso duma conduta adequada, uma intercorrência médica, ou, então, um acidente, que não são da responsabilidade de ninguém porque não houve qualquer falha. Isto porque a prestação de cuidados de saúde é uma actividade complexa, incerta no resultado e com reconhecido potencial para causar danos colaterais nos doentes, embora estes tendam a não aceitar essa realidade.
Mas, afinal, o que é um erro médico? Pode-se definir primariamente como uma conduta profissional inadequada (em desacordo com as leges artis), por acção ou omissão, e que supõe a inobservância de regras técnico-científicas, com produção de danos à vida ou à saúde de alguém, sem intenção de os produzir.  Esta definição pode, no entanto, ser sujeita a discussão, desde logo porque exclui condutas daquele tipo cujo resultado não constitua dano para o paciente. E quanto ao não seguimento das regras técnicas e científicas, sendo a ciência caracterizada pela incerteza, e pela mudança, nem sempre será fácil determinar que elas não foram realmente seguidas.
Se há situações em que o erro é óbvio, como amputar o membro errado ou deixar uma compressa esquecida no abdómen, há outras em que não é assim tão fácil de o considerar. O tipo de tratamento cirúrgico escolhido para um determinado caso, a técnica utilizada os meios de diagnóstico usados, por exemplo, poderão eventualmente ser considerados errados por uns e não por outros, e já vimos que nem sempre o resultado obtido faz a diferença. E para que um mau resultado leve à conclusão da existência de erro prévio, é preciso estabelecer-se um nexo de causalidade com o que foi feito, sendo inequivocamente excluídas como causas todas as possíveis variantes da evolução clínica, e atentas as condições particulares do caso em cada momento. 
Frequentemente se fazem sobrepor as designações “erro” e “negligência”, mas não são exactamente a mesma coisa. Isto é, considera-se negligência um erro particular, em que à violação das leges artis se junta um comportamento do profissional que configura uma falta ao “dever de cuidado”. Quer dizer, em que o profissional tenha mostrado falta de cuidado para com o paciente, e não tenha feito por ele tudo o que era suposto fazer naquelas circunstâncias, e da melhor maneira. Também aqui é necessário fazer corresponder os danos no paciente à actuação do profissional, e excluída alguma falta de condições da instituição de saúde, por exemplo organizativas ou técnicas, que não lhe permitisse actuar doutro modo.
“Erro médico” não significa forçosamente erro do médico, mas sim de qualquer profissional ligado à saúde, ou que é da responsabilidade global duma instituição médica. É algo que, obviamente, preocupa todos os médicos e restantes profissionais envolvidos, bem como as instituições onde trabalham, e um estudo do Eurobarómetro da Comissão Europeia mostrou que cerca de 50% dos portugueses têm receio de vir a ser vítimas dum erro médico, embora só 16% declarem ter já sofrido algo que classificaram desse modo. Esta discrepância de números pode traduzir algum destaque exagerado que a comunicação social tem dado ao assunto entre nós, mas nos EUA o erro médico é anunciado como 6ª causa de morte. As especialidades em que ele é mais vezes invocado são a Obstetrícia, a Ortopedia, a Cirurgia Geral, a Ginecologia, a Oftalmologia e a Medicina Interna.
Sendo verdade que todos podemos numa dada altura errar, há um conjunto de situações que levam a que o erro aconteça mais facilmente. Para começar, essa possibilidade aumenta com a menor experiência do profissional, e menos conhecimentos técnico-científicos, ou falta de perícia técnica, sobretudo se em associação com imprudência e inconsciência, por não reconhecimento das próprias limitações. Há quem, por palavras simples, aponte três mecanismos principais para o erro médico: a negligência (não fazer o que devia ser feito), a imprudência (fazer o que não devia fazer), e a imperícia (fazer mal o que devia fazer).
Também o excesso de trabalho, a falta de tempo para o executar como deve ser, o cansaço durante a sua execução, a falta de horas de sono, são factores que podem ser determinantes.
Pode-se errar por simples falta de atenção, eventualmente num acto que se considera mais rotineiro, ou menos importante, mas o erro tem maior probabilidade de acontecer em casos mais difíceis e complexos.  Muitas vezes por deficiência de registo do que se fez e do que se pretende fazer, do plano estabelecido para o doente, e por falta de comunicação entre os profissionais que se afadigam à volta dele. E o stress, sentido em momentos cruciais que obrigam a decisões quase imediatas, ou com muitos prós e muitos contras, predispõe claramente para a ocorrência de erro.
Na prevenção do erro, a existência de protocolos de actuação em várias situações mais frequentes, libertando a atenção e o raciocínio, quer nos casos mais simples quer nos mais exigentes, pode ser eficaz. Mas lembrar o erro é crucial para o evitar. É importante termos sempre presente a sua possibilidade, desse modo procurando evitar todas as situações que o facilitam. Também é eficaz haver nos hospitais revisões de morbimortalidade em que sejam identificados e discutidos erros eventualmente cometidos, não com intuito punitivo mas didáctico e de prevenção. E tem sido advogada, nomeadamente pela Comissão Europeia, a publicação periódica oficial de erros, juntamente com incidentes e acidentes (como no programa Notific@, da nossa DGS), de forma a todos aprenderem com a experiência de todos, e assim possibilitar a implementação de medidas que impeçam a repetição desses eventos. O problema com estas duas últimas medidas é que podem ser entendidas como reconhecimento de culpa, e por isso ser usadas para processar os profissionais ou/e as instituições em causa.
Mas os hospitais, para combater o erro, devem fazer mais do que simplesmente confiar na capacidade dos seus profissionais para o evitar, estimular as reuniões de morbimortalidade,  publicar listas de eventos adversos e erros e estabelecer protocolos de actuação: têm de olhar pelas condições de trabalho que proporcionam, a qualidade do material que fornecem, a sua organização clínico-administrativa. Porque tudo isso, se insuficiente, pode levar ao erro, e ser julgado como negligência dele causadora.
E o que deve fazer um cirurgião quando o erro ou o acidente cirúrgicos acontecem? Antes de mais deve reconhecer o que aconteceu, e enfrentar a situação. E procurar resolvê-la, de imediato se for possível. Qualquer cirurgião tem de ter os conhecimentos teóricos e o know-how técnico necessários para corrigir as complicações que resultarem da sua actividade cirúrgica. Será imprudente que opere sem os ter, dependendo então em absoluto doutros colegas, que podem estar ou não ao seu alcance imediato quando forem necessários; mas a quem ele não deve hesitar em pedir ajuda se achar que precisa, ou que o doente precisa, para o melhor resultado possível. Aliás, a boa regra é quem comete um erro pedir sempre ajuda a um colega em quem confie, mesmo que tenha a capacidade para o corrigir: alguém não comprometido com o acontecido, sem essa preocupação, estará seguramente de cabeça mais desanuviada, com o raciocínio mais limpo, e a sua intervenção será do maior valor, mesmo que seja só para dar uma opinião.
Não dar conta do erro cometido é mau, mas dar e fazer de conta que não aconteceu é pior. Não fazer nada na esperança que passe despercebido, agravando as consequências do evento, entra directamente no campo da negligência pura e dura. A tentativa de esconder o sucedido, se tiver consequências deletérias para o paciente, é criminosa. Se cometeu um erro tem de o assumir e procurar resolvê-lo, na medida do possível.
Outro aspecto importante é se o cirurgião deve ou não comunicar sempre o erro ao doente. Em acidentes ou erros sem resultados nefastos essa questão não se põe: dá-los a conhecer ao doente seria inútil e contraproducente, por gerar sofrimento psicológico desnecessário. Nos outros casos, creio que será uma questão de bom senso, dentro da empatia que deve estar na base da relação do médico com o doente, e orientada no sentido da melhor resolução possível da situação.
Os acidentes previamente considerados possíveis, tenham sido dados especificamente a conhecer ao doente, aquando da obtenção do seu consentimento informado, ou não, por entrarem no grupo das complicações cirúrgicas gerais, não colocam problemas. Os erros sim. É sabido que é mais fácil os doentes não os aceitaram se a sua relação com o médico não for boa, ou se se deteriorar na altura. É fundamental por isso procurar preservá-la, escolhendo judiciosamente o que dizer ao doente, quer em termos de forma quer de conteúdo, tendo sempre presente que o paciente tem o direito de saber o que lhe aconteceu. Mantê-lo ostensiva e agressivamente na ignorância é mau, como pode ser comunicar-lhe o sucedido de forma fria e quase impessoal, como se fosse algo que não diz respeito ao médico ou que não o incomoda. Informá-lo, assumindo que algo correu mal mas que se vai fazer, em conjunto com ele e por causa dele, todo o esforço para resolver o assunto ou pelo menos diminuir os estragos, é em geral a melhor atitude. O envolvimento da família mais chegada também pode ser útil para reduzir a ansiedade do próprio paciente.
Há quem advogue um distanciamento do doente e da sua família por parte do médico – com o que não concordo, como digo atrás -, bem como do seu advogado - o que já acho bem: a ser necessário, serão os advogados a contactar uns com os outros. Há também quem, valorizando a preservação da relação médico-doente, insista em que o médico, ao assumir o erro, deve pedir desculpa ao paciente por ele. Podendo haver situações extremas que o justifiquem, não parece que na maior parte dos casos isso seja razoável, desde logo porque não vai ajudar em nada a manter uma boa relação do doente para com o médico, indo minar ainda mais a sua confiança (já de si abalada pelo sucedido) no que continua a ser o seu médico, e depois porque esse pedido poderá ser usado como reconhecimento liminar de culpa num processo legal que venha a ser levantado. 
Em resumo, o erro médico pode acontecer a qualquer um, em situações complicadas como em situações simples, e a possibilidade da sua ocorrência deve estar sempre presente, o que ajuda a evitá-lo. Como ajuda a enumeração periódica dos erros e a avaliação das condições em que se produziram, levando a que sejam tomadas, quer pelos profissionais quer pelas instituições, medidas que os possam evitar. Quando sucedem têm de ser reconhecidos e as suas consequências enfrentadas e minoradas ou eliminadas, devendo o médico causador envolver-se decisivamente na sua resolução e envolver também o doente, procurando preservar a relação profissional entre os dois.

In Newsletter da Cirurgia C, 2018

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