INTERNATOS MÉDICOS À PORTUGUESA
Uma amiga minha holandesa veio a Portugal
há anos, em trabalho, e aproveitou para dar uma volta de carro pela zona centro
do País. Quando regressou, disse-me: “Tu vives num país inacabado!”. Fiquei
surpreendido – esperava que as suas primeiras impressões fossem sobre o sol, a
paisagem, a simpatia das pessoas, a boa comida, o bom vinho e as más estradas –
mas depois de pensar um pouco não pude deixar de lhe dar razão. Bastou-me
evocar as bermas das estradas novas, não arranjadas e, na verdade,
completamente esfarrapadas; o terreno à volta das casas recém-construídas e já
habitadas, cheio de restos de material de construção ali esquecidos, como
bocados de madeira, latas de tinta vazias, areia, etc.; as placas centrais das
avenidas novas e o espaço debaixo das pontes já construídas e utilizadas,
durante tempos infindos “decorados” com o entulho das respectivas obras, e do
mesmo modo as placas centrais das rotundas, frequentemente deixadas durante
muito tempo cheias de pedras, lixo, sinalizadores de plástico…. Se bem
pensarmos, até dizem que dá azar acabar completamente a nossa casa…
Os exemplos que corroboram a justeza da
apreciação daquela minha arguta amiga, cidadã pragmática e eficiente dum país
do norte, em relação ao nosso velho Portugal, são, na verdade, inúmeros.
Bastar-nos-á, inclusivamente, olhar à nossa volta no local onde diariamente nos
esforçamos por trabalhar o melhor possível: um Bloco Operatório terminado sem
que os respectivos acessos por elevador tenham sido construídos, por quem o
devia ter feito, a Unidade de Cuidados Intensivos Pós-Operatórios de obras
feitas mas sem equipamento nem doentes, a nova Urgência à espera sine die, já com as colunas de cimento
armado erguidas, os caixotes com equipamento jazendo tempos infindos pelos
corredores…
Antes de estabelecidos os internatos
médicos hospitalares, a especialização pós-graduada era conseguida com base em
dois aspectos fundamentais: o convite e o voluntariado. Os recém-licenciados
podiam ser convidados para assistente, seguindo depois ou não a carreira
docente, mas tendo desse modo a possibilidade de receber treino na
especialidade eventualmente do seu agrado. E digo "eventualmente"
porque a maior parte das vezes não eram eles que a escolhiam, eram antes os
jovens médicos que eram escolhidos pelos Professores para as diversas Cadeiras,
correspondentes às várias especialidades. Digamos que o dar aulas práticas,
para aqueles não especialmente interessados na docência, era, para além,
obviamente, duma forma de valorização pessoal, um meio para atingir um fim:
tornarem-se especialistas. E ganhando dinheiro ao mesmo tempo, porque havia os
que o faziam voluntariamente, trabalhando no Hospital, na especialidade da sua
escolha mas só depois de serem aceites no Serviço respectivo, sem por isso
receberem um tostão. Era o que vulgarmente se chamava "tirar a
especialidade à Ordem": após um período de tempo variável, de acordo com o
que iam conseguindo fazer no Hospital e com a opinião do Director do Serviço
onde estagiavam, podiam apresentar-se a exame final na Ordem dos Médicos, a fim
de obterem o respectivo título de Especialista.
Refira-se que neste quadro havia uma
excepção no que respeita especificamente aos Hospitais Civis de Lisboa, com os
seus Internatos pagos, com concurso de admissão e perfeitamente estruturados,
e, com certeza também por isso, de altíssima qualidade e durante longo tempo
referência para todo o País. Acrescente-se ainda que nos outros Hospitais
Centrais havia também concurso todos os anos para admissão de um total de dois
ou três internos, pagos pelo Hospital, e que eram escalonados por ordem da classificação
final no curso.
O facto de os internos voluntários não
ganharem nada no Hospital onde treinavam, e caso não tivessem meios próprios ou
de família que os sustentassem durante aqueles anos, sendo já licenciados,
levava a que procurassem trabalho remunerado como médicos, o que faziam fora do
hospital. Era o célebre trabalho de "fazer Caixas", isto é, fazer
consultas de clínica médica nos postos clínicos das Caixas de Previdência, como
se chamava a Segurança Social de então. Isto é, havia que dividir, e frequentemente
sobrepor (...), o horário de trabalho gratuito no hospital, de especialização,
com o de trabalho remunerado, de sobrevivência, nas "Caixas".
Imagina-se a dificuldade em obter deste modo uma preparação especializada
aceitável, em matérias ainda por cima eminentemente práticas, de contacto
directo com os doentes. Não havia controlo nenhum obrigatório da sua actividade
hospitalar, mas eram, evidentemente, obrigados a cumprir o seu horário nos
postos clínicos onde viam doentes. O exame final, na Ordem dos Médicos, mais ou
menos difícil consoante os júris, mas desgarrado que era em relação à real
preparação clínica dos candidatos, não tinha, porque não podia pura e
simplesmente ter, em conta o que eles sabiam fazer, ou tinham feito, na
prática. E uma especialidade médica não pode, obviamente, ser puramente
livresca: ela é para exercer na prática, é para lidar com casos concretos, nas
consultas, nas enfermarias, nos blocos operatórios.
Em 1982 foi criado o Regulamento dos
Internatos Médicos, com o objectivo de estruturar o ensino médico pós-graduação
em Portugal. Entraram então em funcionamento os Órgãos dos Internatos Médicos -
Directores de Internato Médico, nos Hospitais, e Coordenadores de Internato na
Clínica Geral e na Saúde Pública, Comissões Regionais de Internato Médico
(CRIM), Comissão Nacional dos Internatos Médicos (CNIM), presentemente Conselho
Nacional dos Internatos Médicos - visando a organização, nacional, regional e
local, desse ensino, o qual foi, desse modo, tornado algo definido por lei,
obrigatório de adquirir e de ministrar.
A fim de permitir que os internos se
dedicassem completamente à sua função específica - profissionalização nos
internos gerais, especialização nos internos de especialidade – passou-lhes a
ser entregue uma remuneração. Esta era primitivamente paga directamente pelo
Ministério da Saúde, mas em breve este alijou esse encargo para os Hospitais. O
objectivo é, pois, que eles não sejam obrigados a dispersar-se por outras
actividades, médicas ou não médicas, não relacionadas com a sua aprendizagem
específica, a qual deve constituir o seu desideratum
no Hospital onde estão colocados, e o desideratum
do próprio Hospital no que lhes diz respeito.
A primeira preocupação das Comissões de
Internato, logo após a sua criação por Decreto-Lei, foi de estruturar os
diversos internatos, de modo a que todo e qualquer interno no país recebesse
uma preparação especializada considerada pelo menos como minimamente capaz, e
que isso pudesse ser avaliado quer no final do internato quer durante este.
Esta última avaliação, contínua, deve, na verdade, ser considerada como parte
integrante da preparação, uma vez que é a única maneira de a corrigir
atempadamente: chegar ao fim do internato e dizer a um interno que não aprendeu
como devia é um pouco tardio… E é principalmente pouco eficaz.
Rapidamente os membros das Comissões se aperceberam
de que aquela avaliação, como manifestação duma preparação programada,
evolutiva e consequente, e que se queria homogénea, igual ou pelo menos
equivalente, em todo o País, estava na dependência da existência dum Programa
de Formação para cada especialidade. Um programa mínimo de formação (que às
vezes se vê chamado de "curriculum
mínimo"), que fosse seguido em todo os Serviços que tivessem internos
daquela especialidade. Isto teria também por fim, por um lado, poder-se
analisar objectivamente a capacidade do Serviço para fornecer a especialização
em causa (isto é, a chamada "idoneidade" do Serviço), e, por outro,
evitar que os internos estivessem totalmente dependentes da maior ou menor boa
vontade dos membros do Serviço, dum maior ou menor desejo ou capacidade de
ensinar, de mais ou menos paciência para ajudar a fazer e a aprender. É claro
que há-de haver sempre Serviços melhores do que outros, mas deste modo
procurou-se conseguir uma equalização de todos os Serviços idóneos, quanto mais
não fosse pelo nível mínimo necessário. Há objectivos concretos a cumprir, e
isso é uma garantia de qualidade, pelo menos na quantidade... Relacionada com
este último aspecto está a indicação, caracterizando a idoneidade atribuída, do
número máximo de internos colocáveis em cada Serviço, número que o Ministério
depois reduz a vagas, por critérios que lhe são próprios e estranhos à CNIM.
Os programas de formação de cada
especialidade tinham obviamente de ser redigidos por especialistas na área, e
foi assim que a Comissão Nacional dos Internatos Médicos recorreu aos Colégios
de Especialidade, ou melhor, às suas direcções. Os programas foram sendo
elaborados, e a Comissão apenas procurou que todos eles, tanto quanto possível,
seguissem um modelo semelhante, que permitisse a tal objectividade no que diz
respeito à avaliação contínua daquilo que é ensinado, aprendido e praticado.
A figura do Orientador de Formação (1992),
tão ridicularizada no início, provou ser uma boa aposta, e destina-se sobretudo
a actuar mais directa e precocemente na correcção de quaisquer dificuldades que
o interno tenha ou sinta na sua preparação, contribuindo também, claro, para o
avaliar. O Director de Serviço é o responsável pela formação especializada do
interno complementar, e deve velar para que ele se prepare adequadamente,
seguindo como orientação o programa do respectivo internato. E é ele também o
responsável final pelas classificações parcelares atribuídas a cada interno. O
Director de Internato coordena os vários internatos no Hospital e assegura o
cumprimento dos respectivos programas.
As classificações parcelares são apenas um
aspecto da avaliação contínua, a qual, como atrás se diz, deve ser considerada
como parte integrante da formação, traduzindo realmente o que o interno
aprendeu e fez durante todo o internato, isto é, os seus conhecimentos e
desempenho.
As Comissões de Internato sempre
consideraram a existência dum exame final de internato em complemento da
avaliação contínua de conhecimentos e de desempenho, e sempre assim se manifestaram.
Não fazia era sentido haver dois exames: o do Hospital, ou do Ministério da
Saúde, que na verdade é o responsável pela formação pós-graduada, e que até a
paga, e o da Ordem dos Médicos. A imposição teimosa de haver dois exames tinha
por base a asserção "o meu exame é melhor que o teu", e por isso os
internos eram obrigados a fazer os dois (um para ser especialista pelas Carreiras
Médicas, ou Assistente Hospitalar, outro para ser Especialista pela Ordem dos
Médicos). Não tinha qualquer cabimento, tanto mais que, face à CEE, eram ambos
equivalentes. Depois de longas negociações com a Direcção da Ordem dos Médicos,
e sendo dela Presidente o Dr. Santana Maia (que os mais novos porventura não
saberão pertencer ao quadro do Centro Hospitalar de Coimbra, ter sido durante
muitos anos Director do Serviço de Medicina Interna do nosso Hospital e ocupado
o lugar de Presidente do Conselho de Gerência, agora de Administração, do
C.H.C.), chegou-se finalmente, em 1994, à Titulação Única, por que todos
ansiavam.
Encerrou-se nessa altura um ciclo, 12 anos
depois, terminando-se um trabalho iniciado com a regulamentação dos Internatos
Médicos e a criação dos respectivos Órgãos de Internato. Havia-se começado por
estabelecer balizas objectivas para as matérias a aprender, as atitudes a
adquirir e os actos técnicos a praticar em cada processo de formação
especializada, definindo conjuntamente o tempo de duração deste e os locais
idóneos para ser ministrado. Realçou-se depois a importância da avaliação contínua
e surgiram os orientadores de formação, sendo nessa altura a preocupação-chave
tornar a formação o mais eficaz possível, com feedback a cada momento. Finalmente, após uma formação criteriosa,
entendeu-se dever haver um exame final, como corolário de toda essa preparação,
permitindo classificar mais precisamente o interno mas, principalmente,
contribuindo para assegurar que ele está em condições de ser considerado especialista.
O que nos pode encher de satisfação, como
portugueses, é que somos o único país com os internatos médicos estruturados
dentro dos parâmetros apresentados. Mas satisfação porquê? Porque o órgão
máximo da CEE nestas matérias, o Advisory
Committee for Medical Training,
ainda está na fase de recomendar que os internos sejam sempre pagos durante a
sua aprendizagem, que haja programas de formação definidos, que sejam
acompanhados por orientadores de formação e que os locais de internato sejam
escolhidos consoante a sua idoneidade para os ministrar... Nisto, pelo menos,
vamos bem à frente!
Ao fim e ao cabo, e ao contrário do que é
habitual no nosso país, estamos, nesta matéria, diante duma obra terminada,
construída com princípio, meio e fim. É claro que nada está definitivamente
feito, é sempre possível modificar um edifício. Tentativas pode haver de
melhorar o que existe, como por exemplo a experiência ora iniciada em Coimbra
de encurtar o internato geral, iniciando-se a fase de profissionalização ainda
durante o curso médico. Mas o que agora ressalta é uma outra característica
deste povo à beira-mar plantado, e que aquela minha amiga holandesa, por muito
perspicaz que seja, não teve tempo para perceber: é o dizer mal das poucas
obras terminadas que por cá vai havendo, é o não fazer mas também não deixar
fazer, é o destruir o que logra ser feito. Não descansar enquanto não se
destrói tudo o que está bem, é outra pecha nossa. Quando há algo organizado e a
funcionar, que até os países do norte por acaso ainda não conseguiram, embora
para lá caminhem, há que intrigar, atacar, minar, desorganizar. Pois é a isso
que se está neste momento a assistir, contra a Regulamentação dos Internatos
Médicos e as Comissões de Internato.
Num meio predominantemente desorganizado e
a viver de expedientes, sem que se queira ir ao âmago das questões, a
organização funciona frequentemente como um corpo estranho que até parece
indesejável. Nessas condições a tendência entre nós parece ser, infelizmente, a
de nivelar pela desorganização, ou, pelo menos, pela indefinição. E, apesar de
tudo, isso pode compreender-se, pois para muitos dos incapazes a desordem é que
é boa, na confusão é que conseguem o que doutro modo lhes estaria, para bem de
todos, vedado.
In Farpas pela nossa Saúde, 2009, Ed. MinervaCoimbra
Caro Carlos,
ResponderEliminarNão posso passar sem te fazer alguns comentários ao teu texto. Para começar, acho bem que fales da problemática dos júris, fazendo os exames mais ou menos "difíceis". Mas a verdade é que muito contribuíram para o caos que se verifica nas provas de finalização dos Internatos. Se tivessem um pouco mais de atenção às regras das referidas provas, talvez estas pudessem voltar à sua posição "prestigiante" que já tiveram. O mesmo se refere aos candidatos e aos Internatos. Nunca tivemos a "obrigação" de ser tutelados e as situações que mencionas são - as mais das vezes - de nossa culpa, já que não tivemos a calma suficiente para "tomar em nossas mãos" o que, desde sempre, lá devia estar: a legislação e as regras de como tudo deveria funcionar. (Caso das "Comissões de Internato" definidas por Decreto-Lei. Outro ponto que mencionas tem que ver com as situações de "idoneidade" de cada Serviço e com os "Orientadores de Formação"; não posso deixar de estar contra esta figura. A responsabilidade da formação dos Internos é de TODO o Serviço e não só apenas de uma ou duas pessoas cuja nomeação é apenas da responsabilidade do Director. Até poderão ser as pessoas menos indicadas para a tarefa; mas, a realidade é que será das responsabilidade de todo o Serviço a formação dos seus Internos. Da mesma maneira se põe a questão das Carreiras Médicas, infelizmente tão votadas ao esquecimento. É tempo de retomar os Concursos e as Carreiras (se necessário for, com uma Revisão das mesmas e com novos graus). Se preciso for compete ao Serviço pedir pela colaboração de outros Especialistas para completar a formação dos seus Internos; isto porque um cirurgião deverá ser capaz de resolver a maior parte (não todos) os problemas que lhe forem surgindo no decurso de qualquer cirurgia.
Quanto aos orientadores de formação, a minha opinião, que, creio, espelha a realidade, está expressa no artigo "Orientador de formação, uma aposta ganha".
EliminarO artigo, do livro Farpas pela nossa Saúde, publicado em 2009, reflecte, na minha opinião, o êxito que os nossos internatos constituíram. E que podem, e devem, servir para comparar com o que temos agora.
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