terça-feira, 21 de julho de 2020

ENVELHECIMENTO, GERIATRIA E HOSPITAIS

Saibamos o que é quando se fala de envelhecimento activo, geriatria e hospitais geriátricos.
Envelhecimento é um processo que nos conduz desde que nascemos até ao fim da nossa vida natural, na velhice. Não se sabe exactamente o que provoca o envelhecimento, e admite-se que o nosso organismo tenha dentro de si biologicamente inscrito um tempo limitado de existência, que é muito variável de pessoa para pessoa (como é de espécie para espécie). A esse processo biológico junta-se um conjunto de doenças que, não sendo exclusivas da velhice, se vão tornando mais frequentes à medida que os anos passam, e que são, globalmente: doenças cardiovasculares, neurológicas, cancro e diabetes.
Para além desse relógio biológico interno, haverá um conjunto de factores extrínsecos que poderão fazer com que tal relógio trabalhe mais rápido nuns indivíduos que noutros. Não só trazendo mais cedo na vida o que caracteriza a velhice, como também impedindo que esta chegue, através duma morte precoce. Porque, afinal, chegar a velho é o que todos desejamos, já que a alternativa não é solução…
Por outro lado, o passar dos anos acarreta em si alterações físicas, psicológicas e sociais, dependentes da nossa vivência, que, sendo muito variáveis a nível individual, são consistentes no seu conjunto. Psicologicamente, entre nós o maior problema do adulto idoso (que se convencionou ser o que tem mais de 65 anos) advém de socialmente haver a tendência crescente de o considerar um adulto em fim de vida, a descartar, um gastador de recursos, uma “peste grisalha”, alguém que quando doente se pode discutir se vale a pena ser tratado, apenas por causa da idade.
Assim, o modo como envelhecemos depende sobretudo dos nossos genes e características pessoais, mas também do meio em que vivemos, como vivemos, das agressões que vamos sofrendo ao longo da vida. Por isso admite-se que possa ser influenciado por alguns cuidados a ter e opções a fazer - no que se chama envelhecimento activo ou saudável. Num esforço para afastar, ou atrasar no tempo, algumas características do envelhecimento biológico e algumas doenças que com os anos se vão tornando mais presentes, se não tiverem aparecido antes.
Geriatria ou medicina geriátrica é o acompanhamento médico dos indivíduos idosos no seu envelhecimento. Às vezes erradamente tida com a mesma lógica da Pediatria face às crianças, por se desconhecer que estas têm de ser encaradas dum modo totalmente diferente dos adultos, já que não são adultos em miniatura. Ao contrário dos adultos idosos, cujo envelhecimento, tão variável duns para outros, não os transforma em seres diferentes e a separar dos mais novos. É claro que se tem de ter presente a possibilidade de alterações provocadas pelo envelhecimento quando se lida com doentes mais velhos, e por isso conhecimentos geriátricos devem estar sempre presentes na Medicina.
É desejável, e o foco da geriatria, conseguir-se um envelhecimento activo o mais generalizado possível, de modo a aumentar a esperança média de vida saudável dos cidadãos, mediante vários tópicos: adesão às terapêuticas instituídas; prevenção de quedas; prevenção de fragilidades funcionais; monitorização remota de saúde, reduzindo o número de visitas ao hospital; implementação de estruturas de apoio ao ambiente físico e social onde os idosos com limitações residam.
A geriatria é, pois, sobretudo importante na prevenção de doenças dos adultos à medida que envelhecem, procurando mantê-los longe dos hospitais o mais possível, no sítio onde vivam, saudáveis e activos, através de acompanhamento em consulta ou de acções de formação. Não faz qualquer sentido acumular doentes idosos em hospitais especiais, chamados “geriátricos”, segregados pela idade, com doenças que os mais novos também têm. A idade não é uma doença, é só mais um factor que deverá ser tomado em conta, como muitos outros. Quando internados, todos os pacientes têm de ser avaliados nas suas várias patologias e factores de risco, e os com mais de 65 anos não são diferentes dos outros.  A atitude só pode ser tratar todos os doentes por igual, isto é, da melhor maneira possível, utilizando todos os meios disponíveis.
In Diário As Beiras, 21 Julho 2020

terça-feira, 7 de julho de 2020

CARREIRAS NA MIRA

Desde sempre foi evidente que a nova lei de gestão hospitalar – publicada pelo actual ministro da Saúde quando o era em 2002 - dificilmente seria articulável com a existência de carreiras médicas, e do mesmo modo o sistema (?!) de saúde que se vai desde então delineando aos poucos dá sinais de não contar com elas e de as considerar mesmo um empecilho. Oiça-se o que se ouvir, na prática é o que se vê.
E na prática a destruição das carreiras já começou, ao ser possível, e vir a ser praticada, a nomeação como directores de serviço de médicos que não atingiram ainda o topo da carreira, quando estes estão disponíveis. Nos hospitais empresarializados (SA ou EPE), legalmente, e nos outros, apesar da lei aplicável o contradizer, qualquer um, mais graduado ou menos graduado, pode ser nomeado para o efeito. A escolha é do director clínico, ou antes, do director do hospital, o qual por sua vez foi quem escolheu o director clínico e o pode demitir a qualquer momento, se ele deixar de cumprir os critérios que levaram à sua nomeação. Que critérios? Os critérios não estão estabelecidos em parte alguma, são pessoais, de confiança pessoal e política, os mesmos que levaram à nomeação do próprio director do hospital pelo ministro da Saúde, e que traçarão o “perfil” exigido aos directores de serviço nomeados em cada hospital.
Ora o papel do director de serviço é eminentemente técnico, responsável máximo no Serviço pela actividade clínica e pelo treino dos mais novos, elemento que deve ser de referência para os outros, com a experiência e o prestígio pessoal e profissional que o tornem naturalmente respeitado e aceite no grupo de trabalho que um Serviço clínico deve ser. É, pois, obviamente desejável que ele seja escolhido entre os que, por provas dadas, da carreira médica e, eventualmente, da carreira académica, atingiram a maior diferenciação profissional no grupo.
Mas na nova ordem implantada nos nossos hospitais, não é isso que se passa, pelo menos não obrigatoriamente. É deixado ao poder discricionário de um, com os seus critérios pessoais. O grau de carreira e as provas dadas não contam para nada, a opinião desse é que prevalece. E isso dá que pensar. Porquê assim? Procurando resposta para esta questão lembrei-me, muito a propósito, como verão, dum facto respeitante à guerra do Vietname.
Nos campos de prisioneiros de guerra é norma internacional que haja um deles que lidera os outros, os organiza e os representa face aos captores, e esse é o oficial de patente mais elevada presente entre os detidos. Essa liderança é indiscutida, o grupo permanece coeso, organizado, e essa organização ajuda-os a mais facilmente sobreviver, enquanto grupo e individualmente, como seres vivos mas também como militares e como homens. Contrariando a norma, nos campos de prisioneiros americanos na guerra do Vietname isso não se passava assim. Os vietcongs escolhiam eles aquele a quem punham o nome de líder do grupo de prisioneiros, por critérios que eram do director do campo. Era um oficial subalterno, um sargento, um cabo ou até um simples soldado, um elemento que ele entendesse ter o perfil adequado para servir os seus desígnios. Ao mesmo tempo que diminuía perante todos o oficial mais graduado, o chefe natural, escolhia o mais novo em idade, ou mais medroso, mais inseguro ou então o mais ambicioso e com menos escrúpulos, que ao sentir-se de posse dum poder que não esperava e que não merecia tudo faria para o manter. Nenhum dos outros lhe reconhecia intrinsecamente autoridade, e por isso a única que ele podia exercer é a que lhe provinha de quem o nomeara, o que o transformava desde logo numa simples correia de transmissão do director do campo. À medida que o tempo passava e a sua actuação se revelava nesse sentido, mais dependente ele ficava do lugar e com receio de o perder. Assim os captores conseguiam a desagregação do grupo, o desentendimento no seu interior, o seu enfraquecimento, a completa falta de iniciativas credíveis e com alguma hipótese de sucesso.
E esta foi uma estratégia de sucesso, como estratégia de destruição. Será que se pode ver alguma semelhança, respeitando-se as diferenças? Mas será que alguém está interessado em destruir os Serviços, e a vida hospitalar? Provavelmente não, mas o desejo cego de eliminar as Carreiras Médicas poderá levar a isso. Se isso acontecer, haverá que responsabilizar alguém. E depois não se diga que foram atitudes e medidas impensadas.
Mas talvez a mira não esteja sobre as carreiras médicas. Ao fim e ao cabo outras carreiras têm tido problemas. E não se afirma já que o Procurador Geral da República não precisa de ser um Procurador (magistrado do ministério público)?… Será que alguém neste país pensará em substituir as carreiras profissionais por uma espécie de carreirismo político?...
In Farpas pela nossa Saúde, Setembro de 2006

segunda-feira, 6 de julho de 2020

INCOMPREENSÃO

O ministro da Saúde agora substituído clamava que o país não compreende o alcance das mudanças introduzidas no nosso sistema de saúde. O próprio presidente da República também parece não as compreender e, naturalmente, expressa preocupação. É claro que se pode dar uma interpretação governamentalmente conveniente a toda essa incompreensão, a de que são precisas mais explicações sobre o que se pretende com as medidas tomadas. Mas ela também pode interpretar-se, em bom português, de outra maneira: como um generalizado desacordo com o que tem vindo a ser feito.
E, no entanto, há quem diga compreender, e que considere até estúpidos todos os outros, os que não percebem. O problema é que os “estúpidos” são, para além dos doentes e seus familiares e amigos, os profissionais que com eles lidam no dia a dia dos hospitais e dos centros de saúde, que os tratam ou procuram tratar e que tentam ultrapassar os entraves que na sua função lhes são colocados progressiva e sistematicamente.
É realmente preocupante que seja quem está no terreno, os produtivos, os profissionais que são o núcleo do sistema e cuja actuação justifica tudo o resto que à sua volta gravita, quem começa por não compreender. E mais preocupante ainda é que quando o Dr. António Arnaut, há umas dezenas de anos, introduziu as mudanças profundas que constituíram o Serviço Nacional de Saúde, todos perceberam. Desde os doentes aos profissionais de saúde, todos as entenderam, não houve “estúpidos”, muito menos geraram manifestações populares e vigílias de repúdio, ou explicações ministeriais sistemáticas sobre a morte de doentes alegadamente por falta de assistência. E o bom resultado dessas medidas viu-se durante 30 anos, tendo dado origem à porventura maior realização social após o 25 de Abril.
A verdade é que há muita gente a falar do que não sabe. Se cada um falasse do que sabe – o que implicaria para alguns não falar da saúde só por ouvir dizer - chegar-se-ia com certeza mais facilmente a bons resultados. Urgências, emergências, casos agudos, falsas urgências, urgências básicas ou polivalentes, etc., são tudo matérias e situações clínicas,  que aos médicos dizem respeito e a ser discutidas e resolvidas entre médicos. Não se compreende que esquemas e planos elaborados por esses técnicos nessas áreas, alvos dum consenso razoável, possam depois ser adulterados por razões declaradamente políticas, ou melhor, partidárias.
Não se compreende que uma nova lei de gestão hospitalar tenha pura e simplesmente inviabilizado as carreiras médicas, eliminando a estrutura que foi um dos pilares do SNS e contribuiu decisivamente para a boa formação pós-graduada contínua dos nossos médicos, com as repercussões negativas que se antevêem a curto prazo. E que fazem com que os profissionais procurem reconstruí-las, agora que o ministério as destruiu.
A nova lei produziu hospitais desestruturados, com muitos serviços tecnicamente desierarquizados, com chefias escolhidas “ad hoc”, de acordo com parâmetros também eles incompreensíveis. E evidenciando uma preocupação com a produtividade médica centrada no controlo biométrico de assiduidade, revelando um pungente desconhecimento da natureza da actividade médica e das suas particularidades e idiossincrasias, como actividade nuclear do hospital, com ignorância de que o melhor caminho para atingir aquele fim seria confiá-lo à gestão clínica de cada serviço. Mas compreende-se que para isso a nomeação dos directores clínicos e de serviço teria de ser feita doutra maneira e a gestão dos hospitais intrinsecamente diferente. A liberalização que se dizia pretender redundou afinal em mais burocratização e na funcionarização dos médicos.
Também não se compreende que vantagens trouxe retalhar o tecido hospitalar nacional em dezenas de empresas, geridas por pessoas que esmagadoramente apenas querem que o “seu” hospital tenha menos prejuízo que os outros, administrando-o para isso como uma mercearia de bairro, sem terem minimamente em conta a função de cada instituição hospitalar no quadro sanitário do país e na zona onde está inserida.
Vá lá que é claramente perceptível o objectivo fulcral da política de saúde do nosso actual governo: poupar dinheiro na saúde. Ou melhor, gastar menos dinheiro, porque poupar seria manter a mesma qualidade gastando menos dinheiro, e infelizmente a nossa descida no ranking internacional das qualidades de saúde nacionais é acelerada. Quem dirige a saúde dessa maneira percebeu que há dois grandes óbices: por um lado os doentes que querem ser tratados, por outro os médicos que os querem tratar. Por isso houve que dificultar o acesso dos doentes aos locais onde os cuidados médicos são prestados, colocando-os mais longe e com horários limitados, e ao mesmo tempo criar toda a espécie de incómodos e dificuldades aos médicos hospitalares, levando-os mesmo a sair para a medicina privada.
Mas nessa preocupação economicista já não se percebe o porquê de atulhar os hospitais com administradores hospitalares, ainda por cima isentos de horário, como se fossem eles a eventualmente demorarem mais tempo a operar um doente ou a sentirem a necessidade de ir ver algum fora de horas. Num delírio administrativo que levou também a gastos sumptuários com sistemas informáticos dispensáveis, sobretudo quando se quer poupar dinheiro, para além de não serem compatíveis uns com os outros, como se tem visto.
Compreende-se que a saúde dum país deve assentar primariamente nos cuidados de saúde primários, por isso não se compreende que os médicos de família vão sendo colocados fora do circuito dos “seus” doentes. As emergências pré-hospitalares claro que dizem respeito ao INEM, mas procurou-se eufemísticamente acentuar uma diferença entre urgência e caso agudo, para justificar que os doentes não precisam de procurar o seu médico, nem devem fazê-lo, até pode ser perigoso, eles não sabem nem têm condições. Ora alguém que durante a noite, ou num sábado, domingo ou feriado, tem uma dor de barriga e vómitos, ou uma forte dor de cabeça ou de ouvidos, ou dispneia moderada com tosse, ou um pico hipertensivo, ou uma descompensação da sua crónica insuficiência cardíaca, etc., precisa com urgência de um médico, não dum bombeiro, dum enfermeiro, ou dum emergencista, seja por exemplo ortopedista, cirurgião ou anestesista. E não precisaria provavelmente de ser deslocado para uma urgência hospitalar a cinquenta ou sessenta quilómetros de distância, onde chega sem ter sido visto antes pelo “seu” médico, ou outro, gastando dinheiro, perdendo tempo, sofrendo e incomodando-se. Mas talvez alguns entretanto desistam…
Compreende-se, pois, que as urgências hospitalares estejam cada vez mais sobrecarregadas com doentes, e que o atendimento possa por isso ter falhas, mas já não se compreende que nelas se diminuam as equipas e reduzam as especialidades presentes, tornando-as frequentemente locais de trabalho quase impraticáveis e perigosos. Ao mesmo tempo que do chamado plano de reestruturação das urgências tenham resultado apenas encerramentos, quando se encerram também centros de saúde e de atendimento permanente, em vez de se criarem nesses centros as condições necessárias para não ser “perigoso” os doentes lá irem de urgência.  
Como se vê, da reforma da saúde em curso há muita coisa que não se compreende, na asserção semântica de não se estar nada de acordo com ela. Mas uma coisa não se compreende mesmo, é por que razão o governo vai gastar milhões numa auditoria externa, estrangeira, a esta política de saúde, só para que alguém possa eventualmente dizer bem duma coisa de que quase todos os que a sentem na pele dizem mal. É mais um gasto inútil, no meio de tanta poupança, mesmo que não se pague mais para o resultado ser menos negativo.
In Farpas pela nossa Saúde, Maio 2008

domingo, 5 de julho de 2020

OS DOIS ANTÓNIOS DO PS NA SAÚDE

O Dr. António Arnaut, advogado de Coimbra e membro antigo do Partido Socialista, foi o criador do Serviço Nacional de Saúde (SNS), há mais de 25 anos. E ficou na História por bons motivos, "pai" dum serviço que neste último quarto de século funcionou perfeitamente, e que até há uns meros 5 anos a Organização Mundial de Saúde classificava em 12º lugar entre todos os sistemas de saúde do mundo, com o 5 º lugar na Europa e muito à frente do inglês e do norteamericano (37º), sendo apesar disso o que gasta menos entre todos os dos países da Europa dos doze. Um Serviço de Saúde verdadeiramente aberto a todos, ricos e pobres, nas cidades maiores e nas aldeias mais recônditas, tendencialmente gratuito, e permitindo com facilidade e "souplesse" a articulação com as Carreiras Médicas. Estas foram um passo decisivo na organização médica e na nossa formação pós-graduada, responsáveis por um avanço ímpar na nossa História em termos de preparação técnico-científica dos médicos, e sobretudo na sua homogeneização em todo o território, desde os hospitais maiores até aos mais pequenos e distantes dos grandes centros.
O outro António, o Dr. Correia de Campos, socialista mais recente, chegou ao Ministério da Saúde em 2002, saiu e voltou a entrar, e desde sempre tem demonstrado para com a Saúde uma preocupação economicista redutora, que coloca acima de tudo e de todos. Essa preocupação veio fixar muito claramente um preço à saúde, e à vida (habitualmente ditas sem preço), pondo cada vez mais restrições nessa área. Tem o objectivo confesso de poupar dinheiro com a saúde, o que justificou as medidas que tem tomado para alterar o SNS, e que ao que tudo indica vão pôr em perigo as próprias Carreiras Médicas. Apesar dessa preocupação, e das medidas que tem tomado, a despesa não pára de crescer, eventualmente pela sobrecarga administrativa e burocrática que elas próprias acarretaram. Obrigando a uma cada vez maior comparticipação financeira directa dos doentes, já agora uma das mais elevadas na Europa dos doze.
São estes os dois Antónios do PS em questão. Um ficou famoso, o outro vamos a ver. Tudo dependerá dos resultados.
In Farpas pela nossa Saúde, Agosto de 2006

sexta-feira, 3 de julho de 2020

É EXTRAORDINÁRIO!

Coimbra é uma cidade curiosa, para onde vim estudar aos 17 anos, onde fiquei e onde nasceram os meus filhos, que também cá estudaram e ficaram. Curiosa, porque nunca foi uma cidade grande mas foi capital do Reino. Quer dizer, teoricamente ainda é, porque a mudança para Lisboa, acompanhando a conquista do território aos árabes, nunca foi definida em lei. E curiosa porque, não sendo uma cidade grande, e já na altura menor que Lisboa, “sede de muitas e desvairadas gentes”, um rei brilhante e de vistas largas, muito à frente do seu tempo, resolveu colocar nela a Universidade que criou, e uma das poucas que nesse tempo existiam no mundo.
Curiosa porque, desde essa altura, a cidade vive à sombra da sua Universidade, como “cidade universitária”, mas sem um entrosamento entre a instituição universitária e o resto da urbe. Antes com uma separação indelével entre estudantes e futricas, mostrando que a primeira foi implantada na segunda, a qual vive grandemente à custa dela mas pouco lhe dá, sendo certo também que a outra a usa quase só como uma localização e um nome.
E curiosa ainda porque, nestas condições, Coimbra alberga gente que se compraz em apoucar a sua cidade, e reduzi-la simbolicamente ao burgo em volta do edifício da Universidade, bastando à sua satisfação de conimbricenses um facto indiscutível: a cidade albergar a mais antiga Universidade portuguesa… Gente que não quer mais do que isso, porque mais exige esforço, capacidade, ambição, e para quê?!...
É curiosa, esta limitação de ambições, esta pequenez de vistas que se traduz bem, nesses, no diminutivo “coimbrinhas”. Ao contrário dos habitantes das outras cidades que, não lhes tendo um rei, um dia, dado uma prenda, se esforçam agora por a sua cidade ser e ter o mais e o melhor possível.  
No entanto, é extraordinário como há em Coimbra gente que rema contra essa maneira de sentir e actuar e quer mais, e melhor, e se esforça para engrandecer a cidade, a par da Universidade e não escondida atrás dela, ou por ela! Gente com projectos ambiciosos, com visão, fazendo jus a outros que cá viveram e deixaram as suas marcas para o futuro. E que ainda são visíveis. Mas não é menos extraordinário que continue a haver a oposição a esses dos que vêem em Coimbra apenas uma capital de distrito sem nada que a distinga das outras, e sem direito próprio de ser mais do que isso no panorama nacional!
Como cidade universitária, Coimbra tem sido referência no Ensino e na Saúde. Falemos agora da Saúde, e de como é extraordinário que gente dentro dela a queira limitar e reduzir precisamente nessa área! Comparando-a com outras a nível de concelho (!), dizendo que nesse campo está sobredimensionada, que não pode nem merece ser mais do que as outras cidades da Região Centro!
É extraordinário que essa gente não perceba que na organização hospitalar há uma hierarquização com níveis de recursos crescentes, até aos Hospitais Centrais. E que se admite que deva haver um Hospital desses por cada milhão de utentes. Tendo a Região Centro cerca de dois milhões e trezentos mil habitantes, deverá ter pelo menos dois Hospitais Gerais Centrais. Que há 45 anos tem, centralizados em Coimbra. Como os da Região Sul estão centralizados em Lisboa e os da Região Norte no Porto. Três pontos de convergência no país, e não mais dadas as curtas distâncias no nosso território.
E porquê em Coimbra? Porque, não sendo uma cidade grande, continua a ser a maior da Região Centro. Com uma Universidade que é a segunda maior do país, apesar de, e mais uma vez, não ser uma cidade grande… Com uma Faculdade de Medicina grande, e várias outras Escolas ligadas à Saúde, bem como Institutos de Investigação nessa área. Portanto, com muitos profissionais de Saúde, muitos professores, alunos, formandos, doutorandos, internos, investigadores, na área da Saúde. E, logicamente, muitos doentes. O que implicará instituições em que todos esses profissionais trabalhem, e em que os doentes sejam estudados e tratados, com todos os recursos tecnológicos, desde os mais vulgares aos mais especializados, em Hospitais que são fim de linha e referência para os outros. Que outra cidade da Região Centro é assim?!  É extraordinário não perceber isto!
São precisos dois Hospitais Gerais Centrais na Região Centro. E já há. Não se fala em construir nenhum. Tentou-se fundir os dois num, por razões economicistas impostas pela UE, e é extraordinário não perceber que o resultado foi mau, com a Urgência atulhada de pacientes horas à espera, as intermináveis listas de espera para consultas, exames, cirurgias, incluindo de doentes oncológicos, contentores para albergar doentes, o assoberbamento de trabalho do pessoal num Hospital que se quer que seja o restante de dois! E´ extraordinário não se querer saber que as fusões de hospitais no nosso país produziram invariavelmente diminuição da quantidade e da qualidade da assistência médica, e redução do pessoal de saúde que se fixe no hospital e na cidade (o que, para quem se queixa que a população de Coimbra está a diminuir, será sem dúvida bom…).
É extraordinário que falem em sobredimensionamento hospitalar em Coimbra quando, não sendo uma cidade grande, já vai com seis clínicas privadas (os hospitais do SNS estão a mais porque incomodam as clínicas privadas?!)…  número atingido depois da fusão dos dois hospitais públicos que quase destruiu os dois, e aproveitando-se dela… e que, nove anos depois, trouxe a população às ruas protestando pela assistência médica hospitalar na cidade...
Curiosa esta cidade, sem dúvida. Para onde eu e muitos outros viemos trabalhar e viver, e ter e criar os nossos filhos, e queremos que muitos outros venham e fiquem. Mas que alberga dentro de si quem se queixe mas na verdade não queira isso. Quem se esforce para que ela não cresça e ocupe o lugar de destaque no País para o qual continua a ter condições. Fazendo oposição aos que querem. Vamos esperar que estes, os que não são coimbrinhas, persistam, e façam Coimbra crescer e continuar o destino que D. Dinis e outros depois dele apostaram para ela.
In Diário As Beiras, 2 de Junho de 2020