INCOMPREENSÃO
O
ministro da Saúde agora substituído clamava que o país não compreende o alcance
das mudanças introduzidas no nosso sistema de saúde. O próprio presidente da
República também parece não as compreender e, naturalmente, expressa
preocupação. É claro que se pode dar uma interpretação governamentalmente
conveniente a toda essa incompreensão, a de que são precisas mais explicações
sobre o que se pretende com as medidas tomadas. Mas ela também pode
interpretar-se, em bom português, de outra maneira: como um generalizado
desacordo com o que tem vindo a ser feito.
E,
no entanto, há quem diga compreender, e que considere até estúpidos todos os
outros, os que não percebem. O problema é que os “estúpidos” são, para além dos
doentes e seus familiares e amigos, os profissionais que com eles lidam no dia
a dia dos hospitais e dos centros de saúde, que os tratam ou procuram tratar e
que tentam ultrapassar os entraves que na sua função lhes são colocados
progressiva e sistematicamente.
É
realmente preocupante que seja quem está no terreno, os produtivos, os
profissionais que são o núcleo do sistema e cuja actuação justifica tudo o resto
que à sua volta gravita, quem começa por não compreender. E mais preocupante
ainda é que quando o Dr. António Arnaut, há umas dezenas de anos, introduziu as
mudanças profundas que constituíram o Serviço Nacional de Saúde, todos
perceberam. Desde os doentes aos profissionais de saúde, todos as entenderam,
não houve “estúpidos”, muito menos geraram manifestações populares e vigílias
de repúdio, ou explicações ministeriais sistemáticas sobre a morte de doentes
alegadamente por falta de assistência. E o bom resultado dessas medidas viu-se
durante 30 anos, tendo dado origem à porventura maior realização social após o
25 de Abril.
A
verdade é que há muita gente a falar do que não sabe. Se cada um falasse do que
sabe – o que implicaria para alguns não falar da saúde só por ouvir dizer -
chegar-se-ia com certeza mais facilmente a bons resultados. Urgências,
emergências, casos agudos, falsas urgências, urgências básicas ou polivalentes,
etc., são tudo matérias e situações clínicas,
que aos médicos dizem respeito e a ser discutidas e resolvidas entre
médicos. Não se compreende que esquemas e planos elaborados por esses técnicos
nessas áreas, alvos dum consenso razoável, possam depois ser adulterados por
razões declaradamente políticas, ou melhor, partidárias.
Não
se compreende que uma nova lei de gestão hospitalar tenha pura e simplesmente
inviabilizado as carreiras médicas, eliminando a estrutura que foi um dos
pilares do SNS e contribuiu decisivamente para a boa formação pós-graduada
contínua dos nossos médicos, com as repercussões negativas que se antevêem a
curto prazo. E que fazem com que os profissionais procurem reconstruí-las,
agora que o ministério as destruiu.
A
nova lei produziu hospitais desestruturados, com muitos serviços tecnicamente
desierarquizados, com chefias escolhidas “ad hoc”, de acordo com parâmetros
também eles incompreensíveis. E evidenciando uma preocupação com a
produtividade médica centrada no controlo biométrico de assiduidade, revelando
um pungente desconhecimento da natureza da actividade médica e das suas
particularidades e idiossincrasias, como actividade nuclear do hospital, com
ignorância de que o melhor caminho para atingir aquele fim seria confiá-lo à
gestão clínica de cada serviço. Mas compreende-se que para isso a nomeação dos directores
clínicos e de serviço teria de ser feita doutra maneira e a gestão dos
hospitais intrinsecamente diferente. A liberalização que se dizia pretender
redundou afinal em mais burocratização e na funcionarização dos médicos.
Também
não se compreende que vantagens trouxe retalhar o tecido hospitalar nacional em
dezenas de empresas, geridas por pessoas que esmagadoramente apenas querem que
o “seu” hospital tenha menos prejuízo que os outros, administrando-o para isso
como uma mercearia de bairro, sem terem minimamente em conta a função de cada
instituição hospitalar no quadro sanitário do país e na zona onde está
inserida.
Vá
lá que é claramente perceptível o objectivo fulcral da política de saúde do
nosso actual governo: poupar dinheiro na saúde. Ou melhor, gastar menos
dinheiro, porque poupar seria manter a mesma qualidade gastando menos dinheiro,
e infelizmente a nossa descida no ranking internacional das qualidades de saúde
nacionais é acelerada. Quem dirige a saúde dessa maneira percebeu que há dois grandes
óbices: por um lado os doentes que querem ser tratados, por outro os médicos
que os querem tratar. Por isso houve que dificultar o acesso dos doentes aos
locais onde os cuidados médicos são prestados, colocando-os mais longe e com
horários limitados, e ao mesmo tempo criar toda a espécie de incómodos e
dificuldades aos médicos hospitalares, levando-os mesmo a sair para a medicina
privada.
Mas
nessa preocupação economicista já não se percebe o porquê de atulhar os
hospitais com administradores hospitalares, ainda por cima isentos de horário,
como se fossem eles a eventualmente demorarem mais tempo a operar um doente ou
a sentirem a necessidade de ir ver algum fora de horas. Num delírio
administrativo que levou também a gastos sumptuários com sistemas informáticos
dispensáveis, sobretudo quando se quer poupar dinheiro, para além de não serem
compatíveis uns com os outros, como se tem visto.
Compreende-se
que a saúde dum país deve assentar primariamente nos cuidados de saúde
primários, por isso não se compreende que os médicos de família vão sendo
colocados fora do circuito dos “seus” doentes. As emergências pré-hospitalares
claro que dizem respeito ao INEM, mas procurou-se eufemísticamente acentuar uma
diferença entre urgência e caso agudo, para justificar que os doentes não
precisam de procurar o seu médico, nem devem fazê-lo, até pode ser perigoso,
eles não sabem nem têm condições. Ora alguém que durante a noite, ou num
sábado, domingo ou feriado, tem uma dor de barriga e vómitos, ou uma forte dor
de cabeça ou de ouvidos, ou dispneia moderada com tosse, ou um pico
hipertensivo, ou uma descompensação da sua crónica insuficiência cardíaca,
etc., precisa com urgência de um médico, não dum bombeiro, dum enfermeiro, ou
dum emergencista, seja por exemplo ortopedista, cirurgião ou anestesista. E não
precisaria provavelmente de ser deslocado para uma urgência hospitalar a
cinquenta ou sessenta quilómetros de distância, onde chega sem ter sido visto
antes pelo “seu” médico, ou outro, gastando dinheiro, perdendo tempo, sofrendo
e incomodando-se. Mas talvez alguns entretanto desistam…
Compreende-se,
pois, que as urgências hospitalares estejam cada vez mais sobrecarregadas com
doentes, e que o atendimento possa por isso ter falhas, mas já não se
compreende que nelas se diminuam as equipas e reduzam as especialidades
presentes, tornando-as frequentemente locais de trabalho quase impraticáveis e
perigosos. Ao mesmo tempo que do chamado plano de reestruturação das urgências
tenham resultado apenas encerramentos, quando se encerram também centros de
saúde e de atendimento permanente, em vez de se criarem nesses centros as
condições necessárias para não ser “perigoso” os doentes lá irem de
urgência.
Como
se vê, da reforma da saúde em curso há muita coisa que não se compreende, na
asserção semântica de não se estar nada de acordo com ela. Mas uma coisa não se
compreende mesmo, é por que razão o governo vai gastar milhões numa auditoria
externa, estrangeira, a esta política de saúde, só para que alguém possa
eventualmente dizer bem duma coisa de que quase todos os que a sentem na pele
dizem mal. É mais um gasto inútil, no meio de tanta poupança, mesmo que não se
pague mais para o resultado ser menos negativo.
In Farpas pela nossa Saúde, Maio 2008
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