CARREIRAS NA MIRA
Desde sempre foi evidente que a nova lei de gestão
hospitalar – publicada pelo actual ministro da Saúde quando o era em 2002 -
dificilmente seria articulável com a existência de carreiras médicas, e do
mesmo modo o sistema (?!) de saúde que se vai desde então delineando aos poucos
dá sinais de não contar com elas e de as considerar mesmo um empecilho. Oiça-se
o que se ouvir, na prática é o que se vê.
E na prática a destruição das carreiras já começou, ao
ser possível, e vir a ser praticada, a nomeação como directores de serviço de
médicos que não atingiram ainda o topo da carreira, quando estes estão
disponíveis. Nos hospitais empresarializados (SA ou EPE), legalmente, e nos
outros, apesar da lei aplicável o contradizer, qualquer um, mais graduado ou
menos graduado, pode ser nomeado para o efeito. A escolha é do director
clínico, ou antes, do director do hospital, o qual por sua vez foi quem
escolheu o director clínico e o pode demitir a qualquer momento, se ele deixar
de cumprir os critérios que levaram à sua nomeação. Que critérios? Os critérios
não estão estabelecidos em parte alguma, são pessoais, de confiança pessoal e
política, os mesmos que levaram à nomeação do próprio director do hospital pelo
ministro da Saúde, e que traçarão o “perfil” exigido aos directores de serviço
nomeados em cada hospital.
Ora o papel do director de serviço é eminentemente
técnico, responsável máximo no Serviço pela actividade clínica e pelo treino
dos mais novos, elemento que deve ser de referência para os outros, com a experiência
e o prestígio pessoal e profissional que o tornem naturalmente respeitado e
aceite no grupo de trabalho que um Serviço clínico deve ser. É, pois,
obviamente desejável que ele seja escolhido entre os que, por provas dadas, da
carreira médica e, eventualmente, da carreira académica, atingiram a maior
diferenciação profissional no grupo.
Mas na nova ordem implantada nos nossos hospitais, não
é isso que se passa, pelo menos não obrigatoriamente. É deixado ao poder
discricionário de um, com os seus critérios pessoais. O grau de carreira e as
provas dadas não contam para nada, a opinião desse é que prevalece. E isso dá
que pensar. Porquê assim? Procurando resposta para esta questão lembrei-me,
muito a propósito, como verão, dum facto respeitante à guerra do Vietname.
Nos campos de prisioneiros de guerra é norma
internacional que haja um deles que lidera os outros, os organiza e os
representa face aos captores, e esse é o oficial de patente mais elevada
presente entre os detidos. Essa liderança é indiscutida, o grupo permanece
coeso, organizado, e essa organização ajuda-os a mais facilmente sobreviver,
enquanto grupo e individualmente, como seres vivos mas também como militares e
como homens. Contrariando a norma, nos campos de prisioneiros americanos na guerra
do Vietname isso não se passava assim. Os vietcongs escolhiam eles aquele a
quem punham o nome de líder do grupo de prisioneiros, por critérios que eram do
director do campo. Era um oficial subalterno, um sargento, um cabo ou até um
simples soldado, um elemento que ele entendesse ter o perfil adequado para
servir os seus desígnios. Ao mesmo tempo que diminuía perante todos o oficial
mais graduado, o chefe natural, escolhia o mais novo em idade, ou mais medroso,
mais inseguro ou então o mais ambicioso e com menos escrúpulos, que ao
sentir-se de posse dum poder que não esperava e que não merecia tudo faria para
o manter. Nenhum dos outros lhe reconhecia intrinsecamente autoridade, e por
isso a única que ele podia exercer é a que lhe provinha de quem o nomeara, o
que o transformava desde logo numa simples correia de transmissão do director
do campo. À medida que o tempo passava e a sua actuação se revelava nesse
sentido, mais dependente ele ficava do lugar e com receio de o perder. Assim os
captores conseguiam a desagregação do grupo, o desentendimento no seu interior,
o seu enfraquecimento, a completa falta de iniciativas credíveis e com alguma
hipótese de sucesso.
E esta foi uma estratégia de sucesso, como estratégia
de destruição. Será que se pode ver alguma semelhança, respeitando-se as
diferenças? Mas será que alguém está interessado em destruir os Serviços, e a
vida hospitalar? Provavelmente não, mas o desejo cego de eliminar as Carreiras
Médicas poderá levar a isso. Se isso acontecer, haverá que responsabilizar
alguém. E depois não se diga que foram atitudes e medidas impensadas.
Mas talvez a mira não esteja sobre as carreiras
médicas. Ao fim e ao cabo outras carreiras têm tido problemas. E não se afirma
já que o Procurador Geral da República não precisa de ser um Procurador
(magistrado do ministério público)?… Será que alguém neste país pensará em
substituir as carreiras profissionais por uma espécie de carreirismo
político?...
In Farpas pela nossa Saúde, Setembro de 2006
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