quarta-feira, 24 de junho de 2020

O MEDO

O medo saiu às ruas, e esvaziou-as. Não foi o vírus, foi o medo que foi criado e que fez as pessoas esconderem-se em casa, temerosas, como fazem os animais quando, assustados por algo, se metem na toca e só de lá saem pressionados pela fome. O medo que as fez durante mais de três meses sair apenas em incursões ao supermercado para comprar mantimentos, ou em pequenos passeios desentorpecedores mas não muito longe do local onde se acoitavam.
O medo duma única doença, e que manteve as pessoas em casa, escondidas, ignorando inclusivamente todas as outras moléstias e queixas, exacerbando-se esse medo em pavor só de pensarem em ir a um hospital, lugar onde por certo os temidos vírus se concentravam e as podiam contagiar!  E foi esse medo que fez com que patologias graves e urgentes se mantivessem escondidas em casa com os pacientes, sem diagnóstico nem tratamento, com as consultas externas desertas e as urgências sem utentes. Juntamente com as salas de operações fechadas, para possível utilização dos ventiladores, tudo se juntou para parecer que o mundo só tinha de se preocupar com a covid-19 e que todas as outras doenças tinham sido consumidas por ela!
E foi esse o poder do medo. Um país quase parado, com os locais públicos e os estabelecimentos comerciais deixados às moscas. Com os hospitais de referência para a covid-19 assoberbados com trabalho e os outros meio vazios, como se a saúde afinal reinasse para além do SARS-CoV-2.
Os meses passaram, a pandemia começou a amainar na Europa, e o medo a desvanecer-se com ela. Por isso o vírus ficou nas ruas mas as pessoas começaram a voltar.
Houve muitas que entenderam bem o que se passava: que foram o confinamento e os cuidados tomados que levaram a atalhar a propagação da infecção.
Dessas, menos perceberam também que a resposta do nosso SNS a esta epidemia se fez apenas pela organização e pela concentração de meios nesta doença, e que dessa concentração resultou falta de assistência a muitos doentes, com doenças graves, muito mais graves que a virose em questão. Por, na verdade, não haver condições assistenciais para ser de outro modo. Porque o Serviço Nacional de Saúde vai dando cada vez menos resposta através dos hospitais públicos e mais pelos serviços alugados aos privados, pondo os doentes em espera, em listas cada vez maiores. Quando se sai do dia a dia e não é possível a espera, a incapacidade pública vem ao de cima.
Mas houve quem respondesse apenas ao medo, não à doença. Como perderam o medo, a doença e as insuficiências sanitárias e de assistência médica, tornadas claras por ela, deixaram de contar.
Assim, alguns deixaram de tomar as medidas de segurança necessárias, e adoptaram comportamentos de risco para transmissão da infecção como se ela tivesse deixado de existir.
Outros, aliviados do medo de não se conseguir tratar os doentes na primeira leva da pandemia, começaram logo a desmantelar o que estava preparado para lhe resistir; e mais, como as camas para covid-19 foram ficando vazias, e sem perceberem que as outras doenças que antes as enchiam não desapareceram, apenas os doentes não vão aos hospitais como não vão aos restaurantes, às lojas, aos cinemas e aos cafés, logo pensaram que afinal nem faziam falta, e eram uma despesa a abater nas suas contas de gestão hospitalar.
Dizer que estas duas atitudes revelam apenas estupidez e falta de visão é capaz de ser demasiado. E daí talvez não.
O medo é um sentimento natural, positivo quando leva a uma reacção em busca da solução para uma agressão, sendo inteligente criar as condições que tornem mais eficaz e eficiente uma futura resposta a uma situação semelhante. Ou que evitem que a situação se repita.  Mas o medo pode ser apenas uma reacção primária, cujo único fito é a sobrevivência imediata, sem capacidade de analisar o presente e sobre ele projectar o futuro, aprendendo com o que causou o medo e o modo como foi ultrapassado. Não há medo, há medos, sentidos por pessoas diferentes.
Esta pandemia mostrou o que o SNS tem de bom, mas também tornou evidentes debilidades que tem, e que urge corrigir. Tornou óbvio que vai ser preciso investir e que, pelo contrário, o desinvestimento é um péssimo caminho. Para além dos doentes deixados necessariamente para trás, houve cidades onde nesta epidemia foi preciso erguer tendas de campanha e colocar contentores à porta dos hospitais, ou encher de macas pavilhões desportivos. Pois em Coimbra isso não foi necessário.
Porque tem dois hospitais gerais centrais, e um deles pôde ser dedicado temporariamente à pandemia. Foi um exemplo do que se pretenderia noutros locais, e do que deve ser considerado como desejável.
Mas será que a lição de Coimbra não foi aprendida por quem gere a saúde no país? Inclusivamente em Coimbra? E as tendas de campanha e os contentores é que se querem como futuro do SNS?... Pois agora é que se vai ver o que queremos como Serviço Nacional de Saúde, e o que nos querem dar. Estejamos atentos ao que se vai passar. A prova da pandemia de covid-19 não nos vai enganar nesta matéria…
In Dário As Beiras, 24 de Junho de 2020

quinta-feira, 18 de junho de 2020

ENSINO PRÉ E PÓS-GRADUADO NUM
HOSPITAL GERAL CENTRAL EM COIMBRA

Ensino pré-Graduado
Passados apenas quatro anos da inauguração do Hospital dos Covões, o Centro Hospitalar de Coimbra criou a Unidade de Ensino Clínico do CHC. Integrada na Universidade de Coimbra, com um Corpo Docente e um Conselho Pedagógico próprios, partilhava com a Faculdade de Medicina de Coimbra a docência do Curso de Medicina, dando as aulas teóricas e práticas das cadeiras dos três anos do ciclo clínico, isto é, da segunda metade do Curso. Assim se manteve durante vários anos, havendo, portanto, muitos médicos, agora ilustres, que lá estudaram e tiraram o seu curso de Medicina. Só quando surgiu a implantação do numerus clausus nesse curso, entrando logo apenas noventa alunos (!) em vez das três centenas habituais, essa acção docente foi descontinuada, por obviamente não necessária.
Mas os valores do numerus clausus foram crescendo. Até a várias centenas de novo… e os alunos voltaram a ir para os Covões, agora por conta da Faculdade de Medicina, para algumas aulas teóricas nalgumas cadeiras, mas sobretudo práticas e estágios hospitalares em cadeiras clínicas do actualmente existente mestrado integrado de Medicina. Mostrando abertura e inteligência da Faculdade de Medicina, e deixando para trás alguns espectros de endogamia arrogante de outrora.
Com os alunos entrados cada ano a atingirem as cinco ou seis centenas – e a aumentarem ainda mais já no próximo ano lectivo -, com turmas práticas em cadeiras clínicas de 30 e 40 alunos (!), é óbvio que não faz qualquer sentido tentar-se desactivar como Hospital o outro Hospital Geral Central em que os estudantes de Medicina de Coimbra até agora estagiavam e podiam aprender em boas condições. Fazer isso não poderá ser por desconhecimento da realidade, nem só por incompetência.
Aliás, a dificuldade nas aulas práticas e estágios clínicos dos alunos de Medicina é reconhecida quando se prevê agora a sua ida também para clínicas privadas. Que está a ser combinada, acompanhando a desactivação do hospital público para onde iam até agora… Como se pudesse ser a mesma coisa! Como se a função duma clínica privada não fosse ganhar dinheiro tratando doentes!
Ensino pós-graduado
Desde 1973 que o Hospital dos Covões foi sede de formação pós-graduada, quer de formação geral quer de formação especializada. Foram milhares de internos que por lá passaram em 45 anos, e se formaram como especialistas.  Especialistas de qualidade espalhados por todos o país e pelo estrangeiro, todos com uma relação de amizade e de gratidão por uma instituição que se pautou sempre pelo humanismo nas relações interpessoais, entre profissionais e de profissionais para doentes. E que ressalta ainda mais quando se compara com outras instituições.
As vagas abertas ao longo dos anos nos vários serviços contribuíram antes de mais para que mais jovens médicos pudessem escolher a especialidade que gostavam, e mais especialistas se formassem em Portugal, dentro das condições mínimas de qualidade que essa formação exige.
E os internos tiveram no Hospital dos Covões a possibilidade de trabalhar em serviços que, nas várias áreas – e não só nas mais badaladas na comunicação social -, muitas vezes apresentaram inovações, novidades, avanços, resultados, apreciados e elogiados, referidos e seguidos quer nacional quer internacionalmente. E que lhe construíram o nome, quer interpares quer entre os doentes que a ele sempre acorreram, e querem acorrer, e para isso se manifestam. E que têm tornado tão difícil encerrá-lo…
E pergunta-se então: quem quer acabar com este Hospital? E porquê??...

terça-feira, 16 de junho de 2020

SOMA E SEGUE.  TÁ BEM, DÊXA…

Na semana passada a população de Coimbra manifestou-se na margem esquerda por melhores condições de assistência médica hospitalar na cidade. Há quantos anos tal não acontecia? E porquê acontece agora? Mais de dois mil manifestantes, juntando populares e pessoal de saúde, reuniram-se no polo de saúde junto ao Hospital dos Covões, num “Cordão Solidário com os Covões”, pedindo sobretudo que o Hospital fosse reactivado e recuperasse as suas funções, para que os seus doentes, agora perdidos nas listas e filas de espera do HUC, a ele pudessem voltar. Notável era a consternação indignada pelo progressivo desaparecimento dum dos dois Hospitais Gerais Centrais de Coimbra e da Região Centro, deixando o vazio que fez agora levantar a opinião pública.
Durante o período agudo da pandemia de covid-19, foi o Hospital dos Covões o escolhido como referência para combater a doença, e pôde sê-lo por manter toda a estrutura e equipamento que tinha como Hospital, pese embora ter vindo a ser fortemente despojado de recursos humanos e reduzido em serviços. Para isso os serviços ainda presentes foram esvaziados dos seus doentes, para receber os de covid, e enfermarias que estavam inexplicavelmente encerradas foram reabertas pelo mesmo motivo. Depois do bom trabalho que nele se fez, esperava-se que a administração do CHUC percebesse a importância da sua existência como Hospital, permitindo que a resposta do SNS em Coimbra e na Região Centro a um aumento brusco de doentes graves pudesse ser a adequada, não sendo possível numa altura dessas estar dependente da criação  de listas de espera, depois lentamente esvaziadas através dos hospitais privados. Mas não! Pelo contrário, aproveitou a diminuição do número de doentes infectados para voltar a encerrar as enfermarias que estava fechadas, e encerrar, ou quase, algumas que estavam abertas antes. No caminho para a sua desactivação como Hospital, tentaram mesmo encerrar-lhe a Urgência… que outros exigiram que fique aberta… mas como urgência básica, quer dizer, uma urgência como a de qualquer clínica privada ou dum hospital concelhio… Urgência hospitalar polivalente é apenas uma, a do HUC.
Depois da manifestação, e do apoio que praticamente todas as forças políticas de Coimbra expressamente lhe deram, o desmantelamento continuou, absolutamente inalterado. A enfermaria de cirurgia fica com apenas dez camas, a pneumologia fecha, a cardiologia fecha, a Unidade de Cuidados Intensivos Coronários fecha, e, para ter a certeza que estas duas últimas ficam fechadas, as respectivas camas são levadas para o HUC…
Respondendo a esta preocupação generalizada com a repercussão catastrófica da desactivação do Hospital dos Covões como Hospital, sendo transformado numa espécie de armazém ou anexo do outro, o PSD Coimbra organizou um debate público de urgência, exactamente sobre “o futuro dos Covões”. Futuro que, diga-se, é indestrinçável do futuro do CHUC e do futuro da Saúde em Coimbra e na Região Centro. Nesse debate tornou-se evidente que a fusão dos dois Hospitais, ou melhor, do CHC e do HUC, não foi benéfica. Do modo como está feita, nem se conseguiu simplesmente que 1+1 fosse igual a 2; antes se obteve, numa álgebra distorcida e maléfica, que 1+1=2-1=1. E agora, ao fim de nove anos, a população sai à rua para reclamar por melhores cuidados de saúde nos hospitais. Os doentes de Coimbra vão cada vez mais pedir segundas opiniões a Lisboa ou ao Porto, vão cada vez mais ser tratados nessas cidades, e há especialistas vindos de fora de Coimbra dar consultas em hospitais privados em Coimbra. Se alguém precisar de ir a uma Urgência polivalente, em vez de ir à única de cá e esperar oito horas para ser atendido, pode ir ao Porto, a uma das duas Urgências dessa cidade, ser visto e tratado e regressar, e poupa muito tempo… Num passado muito recente, de há nove anos para trás, quando havia CHC e HUC, Coimbra era uma referência na saúde, que os doentes procuravam e que os jovens médicos escolhiam em primeiro lugar para vir formar-se, e onde queriam ficar a trabalhar. Agora não escolhem, não querem vir e não ficam, indo tantos e tantos profissionais de saúde trabalhar e viver para outras cidades, enriquecendo a sua saúde e enriquecendo-as.
Para tentar reverter o desmantelamento do Hospital, surgiu uma Petição pública, já enviada, com 4500 assinaturas, e aceite para discussão na Assembleia da República, para que lhe seja devolvida a autonomia de gestão de modo a reorganizar-se para poder tratar os seus doentes, que dele necessitam e o querem.
Perante todo este quadro, seria minimamente lógico que o conselho de administração do CHUC parasse para reflectir, e tentasse perceber por que tanta gente, desde utentes, e políticos, até ao pessoal de saúde, se opõe frontalmente à destruição do Hospital dos Covões. Tanta insistência destruidora dá que pensar. E dá que pensar sobretudo a indiferença pelos argumentos, queixas e reclamações apresentados. Num assunto que é de saúde pública, da saúde do país e de todos nós, parece-nos ouvir a reposta do compadre alentejano às razões que o incomodam: “Tá bem, dêxa…”
In Diário As Beiras, Junho 2020
NO RESCALDO DUM DEBATE SOBRE O FUTURO DOS COVÕES

Congratula-se quem teve a ideia e a coragem de promover um debate sobre os Covões. Que é como diz, sobre o CHUC, porque as duas coisas são indestrinçáveis. E coragem porque dum debate aberto de ideias resulta exposto o que cada um pensa e, na realidade quer, e as razões que os movem a todos.
Ficou claro neste debate, promovido pelo PSD de Coimbra, que quanto ao tema há apenas, globalmente, duas posições. Uma, defendida pelo povo que saiu à rua acompanhando muitos profissionais, pela qual o Hospital dos Covões tem de ser isso mesmo, um Hospital, capaz de fazer frente a uma pandemia como de tratar os doentes que a ele acorram no dia a dia, e querem acorrer. E que a sua fusão no CHUC, e o modo como ela foi feita, fez com que deixasse de ser. A outra, defende que continue a ser aquilo em que nos nove anos de fusão o tentaram tornar, que é uma "coisa qualquer" que não um Hospital. A dúvida para esses está apenas em escolher que coisa há-de ser, mas sempre como acrescento do HUC, o único hospital geral central que pretendem que haja em Coimbra.
As duas posições ressaltaram perfeitamente claras. A segunda até no repúdio de falar do passado, de há nove anos apenas, de quando as pessoas de Coimbra não saíam à rua para reclamar por melhores cuidados de saúde, não iam pedir segundas opiniões a Lisboa ou ao Porto, nem recorriam às Urgências nessas cidades (essas sim, referências da Saúde no nosso país...) , nem esperavam por especialistas vindos de fora de Coimbra dar consultas em instituições privadas nesta cidade, nem iam cada vez mais ser tratadas em Lisboa ou no Porto. No repudiar que se fale dum passado tão recente, em que Coimbra era uma referência na saúde. Que os doentes procuravam e em que os jovens médicos queriam vir formar-se e onde queriam ficar a trabalhar. O passado tão recente e de tanto êxito é apontado condescendentemente como "coisa do passado", e dizem que é preciso é procurar "qualquer coisa" diferente do que existe e foi começado de há nove anos para cá, porque já se viu que o que foi feito não serve a saúde publica nesta cidade e na Região Centro, e que o povo já se apercebeu disso.
Os que querem que o Hospital dos Covões volte a ser um Hospital são uns revivalistas. Porque querem reviver numa cidade em que a Saúde não era um problema, e para isso querem que se desfaça o que nesse campo foi mal feito nos últimos anos.
Os outros todos querem, na verdade, manter o que foi feito. Isto é, que Coimbra tenha apenas um único Hospital Geral Central (o IPO não é um é Hospital Geral, é um Hospital Especializado, e, aliás, escapou à fusão apenas porque a sua administração não quis...), e tenha depois "umas coisas" feitas "nos Covões". Ou cirurgia de ambulatório e umas consultas, ou dois ou três serviços "de ponta", ou uns laboratórios, ou um centro de investigação (que já foi criado após a fusão, aliás, e nunca funcionou!), ou um centro de estudo de geriatria, ou de rejuvenescimento de velhos, ou um lar de idosos. Ou um centro de pandemias, que sem ser um Hospital polivalente não sei como seria... Enfim, uma coisa qualquer, Hospital é que não, que é o que as pessoas precisam e querem! Ficou claro que, para estes, isso é que não. Hospital em Coimbra há só um, o de Celas e mais nenhum. Até porque para mais hospitais já temos os privados, isso não se pode esquecer...
Ficaram as posições bem definidas. Quem quer o Hospital a funcionar de novo como Hospital, devolvido aos seus doentes, e quem o quer desmembrado, fragmentado, dividido em bocados. A dúvida para estes reside apenas com que bocados deve ficar. Ou antes, com que bocados podem ficar os que por lá ficarem.
Não entendem os que lhe anseiam pelos bocados que nunca os poderão ter se o resto tiver desaparecido, se não trabalharem num Hospital, com intercâmbio constante com os colegas que lhes tratam os mesmos doentes, mas sim num sítio com uns aparelhos e uns profissionais de saúde. Não querem ver, na sua ânsia pessoal, que um Hospital é muito mais do que isso, e cada um, na sua área, só pode progredir se estiver incluído num conjunto bem organizado, interactivo, com uma dimensão apropriada e funcional, lutando todos pelo mesmo objectivo: tratar cada doente da melhor maneira possível, Nestas condições, todos juntos são muito mais que a soma das partes. Que é o que se passava antes. Desculpem lá falar do passado. De há nove aninhos...
In Campeão das Províncias, Junho 2020


quinta-feira, 11 de junho de 2020

A PESTE E O PRÉMIO

No ano 19 do século XXI o mundo foi visitado por mais uma “peste”, neste caso uma pandemia por um vírus respiratório, um novo coronavírus chamado SARS-CoV-2 (Coronavírus 2 da Insuficiência Respiratória Aguda Grave), que provoca a “doença pelo coronavírus de 2019”, ou covid-19. Esta afecta fundamentalmente o aparelho respiratório, mas atinge também outros órgãos e sistemas, e pode redundar em falência orgânica múltipla e morte. A pandemia teve início numa evoluída e cosmopolita cidade chinesa, Wuhan, de 11 milhões de habitantes, aparentemente pela passagem dum vírus de animais selvagens para a espécie humana, onde se tornou patogénico.
Curiosamente, a pandemia atingiu primeiro um conjunto de países do que podemos chamar primeiro mundo, e da Europa, muito provavelmente por serem aqueles mais visitados por pessoas vindas, desde logo, da China, e, depois, dos vários locais que iam tendo mais casos. Poupando, assim, relativamente, os países com menos intercâmbio de viajantes, a outros pôs rapidamente à prova os respectivos sistemas de saúde, pela elevada taxa e rapidez de contágio e a gravidade que podia revestir nalguns doentes, sobretudo mais idosos e mais fragilizados. O elevado número de casos ao mesmo tempo, com necessidade de cuidados intensivos em bastantes, provocou um quase caos sanitário em países como Itália, Espanha, Bélgica, Holanda, chegando ao ponto de aí criarem uma idade limite para os doentes poderem ser admitidos em unidades de cuidados intensivos, a fim de lhes reduzir o número, adaptando-o às vagas!
A evolução naqueles países serviu de aviso para os outros, sobretudo aqueles que viam também crescer o número de casos. Portugal foi um deles, e foram tomadas várias medidas, como a quarentena dos infectados e suspeitos de infecção, o distanciamento físico, o confinamento, a lavagem das mãos, o uso de máscara em espaços fechados e com muitas pessoas. Os doentes aumentaram rapidamente, e se muitos deles puderam ficar em casa, confinados, outros tiveram de ser internados, em enfermarias ou em unidades de cuidados intensivos. A ventilação artificial é, nestes últimos, muito importante, e equacionou-se desde logo a necessidade de aumentar o número de ventiladores disponíveis, adquirindo mais e disponibilizando para o efeito os das salas de operações e dos recobros cirúrgicos. Para isso, salas de operações tiveram de fechar, e as enfermarias foram sendo ocupadas por infectados com o vírus e passaram a ser um foco de contágio. Nalguns hospitais, cheias as camas, houve que armar tendas à entrada ou colocar macas em pavilhões desportivos, e nalguns países chegou-se mesmo a construir hospitais de campanha.
A resposta do Serviço Nacional de Saúde foi capaz, mercê da sua organização, mas depressa se percebeu tê-lo sido por se terem concentrado os recursos numa única doença: a covid-19. Tudo o mais foi sendo deixado para trás, com salas de operações fechadas, consultas vazias, exames por fazer, hospitais com enfermarias bloqueadas por doentes infectados. Numa doença que afectou até agora apenas cerca de 3 em cada 1000 cidadãos portugueses, um sinal objectivo de eficiência do SNS seria ter combatido a epidemia sem deixar para depois as outras patologias, pelo menos aquelas mais urgentes e que podem levar a um aumento de mortes a curto ou médio prazo, embora sem a contabilidade diária dos mortos que agora se faz… Isto é, seria ter uma folga na resposta pública às doenças de modo que quando houvesse um aumento brusco de doentes eles pudessem ser atempada e adequadamente tratados, sem se ter de recorrer à almofada que vai permitindo dizer que o serviço público de saúde é eficiente: as listas de espera! Escoando-se estas para o privado por conta do público…
Um caso particular foi o de Coimbra, porque, como referência hospitalar da Região Centro, tem há quase 50 anos dois Hospitais Centrais, embora agora unidos numa fusão imposta pela troika em 2011. Essa “fusão”, dando um chamado Centro Hospitalar, tem sido, ao contrário, entendida pelo seu conselho de administração como a criação dum único hospital, junção de dois em um, e o que tem sido tentado é fazer desaparecer um (Covões) para ficar só o outro. Pois felizmente que não o conseguiram, e o Hospital dos Covões, apesar de fortemente esvaziado de recursos humanos e de Serviços, mantém a sua estrutura de hospital e a sua tecnologia de Hospital Central (também por necessidade do HUC de a ela recorrer…), porque foi isso que tornou possível em Coimbra uma solução única nesta pandemia: reservar um Hospital para Hospital de Referência, mantendo o outro Hospital da cidade liberto para outras patologias e tratamentos. Ficaram separadas as águas (e as infecções), e para ter as camas necessárias para os infectados bastou esvaziar as enfermarias dos doentes que lá estavam e reabrir enfermarias que, inexplicavelmente, estavam fechadas. E o pessoal do Hospital, juntamente com outro que o veio momentaneamente repovoar, depois de acumulado no outro, conseguiram brilhantemente debelar o surto da doença.  
Seria previsível que o conselho de administração, face a esta ocorrência, percebesse finalmente a importância de ter recebido dois Hospitais com capacidade para tratar doenças complexas, como esta, podendo um ser reservado para o efeito, deixando o outro livre para o restante trabalho médico. Mas não, pelo contrário! Mal se nota um abrandamento da pandemia, logo quer fechar o que foi aberto, mais o que estava aberto e foi esvaziado para internar os infectados. E mais, propõe-se encerrar liminarmente o Serviço de Urgência, embora depois se contente, para já, em passá-lo a urgência básica, igual à urgência das clínicas privadas da cidade. Será que pensa que a pandemia já acabou?... Será que acha que os outros doentes, os que antes da pandemia enchiam as Urgências dos dois Hospitais, e inundavam a do HUC, ao ponto de gerar tempos de espera por atendimento de 8 e 10 horas, desapareceram todos com a covid-19?! Será que não entende que os doentes agora não vão aos Hospitais pela mesma razão que não vão aos restaurantes e aos cinemas? Por medo do vírus?... Mesmo os realmente, e muito, doentes?...
Em vez de se reconhecer a vantagem de ter dois Hospitais, que foi óbvia nesta situação, insiste-se cegamente na destruição de um!! Como diz o povo, “mais vale cair em graça que ser engraçado!”... Neste caso, “se não caíste em graça, de nada te vale ser engraçado”…
O Senhor Presidente da República falou dos que merecem um prémio pelo que fizeram pela comunidade nesta “peste”. Concordo que merecem, não só pelo resultado mas, e sobretudo, pelo esforço que fizeram. Mas com os que o fizeram, denodadamente, no Hospital dos Covões, o Senhor Presidente escusa de se incomodar: o “prémio” já lhes foi dado pelo conselho de administração da instituição onde trabalham…
In Campeão das Províncias digital, 9 de Junho 2020

HOSPITAL DOS COVÕES:
DA LINHA DA FRENTE PARA O FIM DA LINHA

Coimbra é referência para a saúde da Região Centro, com 2.230.000 pessoas, tem uma Universidade grande, uma Faculdade de Medicina grande, várias escolas de vários tipos e graus ligadas à saúde, vários institutos de investigação nessa área, e, por isso, tem muitos profissionais de saúde, formados e em formação, e muitos doentes. E, naturalmente, vários hospitais. Entre eles dois Hospitais Gerais Centrais, existindo e coexistindo há quase 50 anos, e constituindo a tal referência para a Região Centro em matéria de hospitais centrais, com a tecnologia e os recursos humanos necessários, fim de linha na referenciação de doentes desta Região.
Por lei de 2011 fez-se a fusão dos dois hospitais centrais: do HUC com o CHC (fundado em 1973, Hospital dos Covões, Maternidade Bissaya Barreto e Hospital Pediátrico), dela resultando o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Que, ao contrário do que o nome diz, não é um centro hospitalar, antes tem sido entendido como um hospital único com várias instalações espalhadas pela cidade a quilómetros de distância umas das outras. Nesta conformidade, o conselho de administração tem-se esforçado por concentrar todas as valências de hospital geral central no HUC, a pouco e pouco esvaziando de recursos humanos e de serviços o Hospital dos Covões. Felizmente a tecnologia lá instalada permanece, com Unidade de Cuidados Intensivos, Hemodiálise, Unidade de Cuidados Intensivos Coronários, Unidade de Hemodinâmica, Serviço de Urgência, Bloco Operatório, Geral e de Ambulatório, TAC, Ressonância Magnética Nuclear… porque foi isso que lhe permitiu ser o Hospital de Referência para covid-19 em Coimbra e na Região Centro. Função de que se saiu muito bem, mostrando toda a capacidade que tem como Hospital. E que é, convenhamos, o que o tem tornado difícil de matar, apesar dos continuados esforços nesse sentido…
Da acumulação de tudo no HUC resultou o seu superpovoamento, em doentes e funcionários (nas mesmas instalações de há já 33 anos), a sua falta de resposta atempada, com listas de espera cada vez maiores para consultas, exames e cirurgias (em grande medida escoadas para as clínicas privadas), taxas de infecção hospitalar proibitivas (que já levaram ao encerramento temporário de serviços), tempos de espera de 8 e 10 horas na Urgência, sobrecarga do pessoal. Tudo isto acompanhando a progressiva desactivação do Hospital dos Covões.
Esta situação tem sido exposta repetidamente, perante a passividade de quem não a devia ter. Esta indiferença levou mesmo, mais recentemente, a uma Petição pública, contestando essa gestão do CHUC (que nunca foi explicitada em qualquer plano director, aliás) e pedindo a autonomia de gestão para o Hospital dos Covões, devolvendo-o aos seus doentes de tantos anos, à cidade e à Região. Deixando de ser uma espécie de casa da quinta do outro, que serve para arrumar o que não se quer ou de momento não se pode acomodar noutro lado. Porque, obviamente, há necessidade de dois Hospitais, e não de um com um acrescento.  
Tudo em vão. E agora ultrapassou-se o limite. O conselho de administração do CHUC, depois de três meses do Hospital dos Covões na linha da frente a lutar contra a pandemia de covid-19, como Hospital de Referência, propôs-se encerrar a Urgência desse Hospital. A ARS Centro contrapôs mantê-la aberta como... Urgência Básica! Quer dizer, com os mesmos recursos da urgência duma clínica privada ou dum hospital concelhio!  Quando a Urgência do HUC está absolutamente assoberbada, e as Urgências de Coimbra são o fim de linha de toda a Região Centro. Se isto for por diante, resta desejar felicidades aos doentes que forem ao HUC e a quem lá trabalha!
A única explicação razoável para isto tudo é economicista, e errada. Porque outra seria um “clubismo” hospitalar bacoco, que a existir seria demasiado mau… Fiquemos pelo economicismo. É simplesmente o governo não querer gastar dinheiro na Saúde. E o erro da medida advém do facto de fundir dois Hospitais que fazem falta em um único insuficiente não trazer vantagem económica nenhuma, para além de ser uma quebra grande na prestação de cuidados de saúde às populações. Mas a verdade é que o extremo que esta última decisão constitui deixa antever uma atitude de austeridade, que é negada mas parece vir a caminho. Uma austeridade provocada por problemas económicos resultantes do combate à pandemia, e aplicada antes de mais no hospital que ajudou, e decisivamente, a lutar contra ela! Se não fosse trágico, até tinha graça! Esperando que ela se esteja a ir embora… e não volte… nem ela nem outra…  Porque se isso acontecer, e sem o Hospital que recebeu o embate, lá terão os doentes de se misturar com outros num mesmo hospital superlotado ou, não cabendo, em camas em pavilhões desportivos, ou em tendas de campanha montadas à porta do hospital…  É o que se chama ter vistas largas em saúde…
In Diário As Beiras on-line, 9 de Junho de 2020