A
PESTE E O PRÉMIO
No
ano 19 do século XXI o mundo foi visitado por mais uma “peste”, neste caso uma
pandemia por um vírus respiratório, um novo coronavírus chamado SARS-CoV-2
(Coronavírus 2 da Insuficiência Respiratória Aguda Grave), que provoca a
“doença pelo coronavírus de 2019”, ou covid-19. Esta afecta fundamentalmente o
aparelho respiratório, mas atinge também outros órgãos e sistemas, e pode
redundar em falência orgânica múltipla e morte. A pandemia teve início numa
evoluída e cosmopolita cidade chinesa, Wuhan, de 11 milhões de habitantes,
aparentemente pela passagem dum vírus de animais selvagens para a espécie
humana, onde se tornou patogénico.
Curiosamente,
a pandemia atingiu primeiro um conjunto de países do que podemos chamar
primeiro mundo, e da Europa, muito provavelmente por serem aqueles mais
visitados por pessoas vindas, desde logo, da China, e, depois, dos vários
locais que iam tendo mais casos. Poupando, assim, relativamente, os países com
menos intercâmbio de viajantes, a outros pôs rapidamente à prova os respectivos
sistemas de saúde, pela elevada taxa e rapidez de contágio e a gravidade que
podia revestir nalguns doentes, sobretudo mais idosos e mais fragilizados. O
elevado número de casos ao mesmo tempo, com necessidade de cuidados intensivos em
bastantes, provocou um quase caos sanitário em países como Itália, Espanha,
Bélgica, Holanda, chegando ao ponto de aí criarem uma idade limite para os
doentes poderem ser admitidos em unidades de cuidados intensivos, a fim de lhes
reduzir o número, adaptando-o às vagas!
A
evolução naqueles países serviu de aviso para os outros, sobretudo aqueles que
viam também crescer o número de casos. Portugal foi um deles, e foram tomadas
várias medidas, como a quarentena dos infectados e suspeitos de infecção, o
distanciamento físico, o confinamento, a lavagem das mãos, o uso de máscara em espaços
fechados e com muitas pessoas. Os doentes aumentaram rapidamente, e se muitos
deles puderam ficar em casa, confinados, outros tiveram de ser internados, em
enfermarias ou em unidades de cuidados intensivos. A ventilação artificial é,
nestes últimos, muito importante, e equacionou-se desde logo a necessidade de
aumentar o número de ventiladores disponíveis, adquirindo mais e
disponibilizando para o efeito os das salas de operações e dos recobros
cirúrgicos. Para isso, salas de operações tiveram de fechar, e as enfermarias
foram sendo ocupadas por infectados com o vírus e passaram a ser um foco de
contágio. Nalguns hospitais, cheias as camas, houve que armar tendas à entrada
ou colocar macas em pavilhões desportivos, e nalguns países chegou-se mesmo a construir
hospitais de campanha.
A
resposta do Serviço Nacional de Saúde foi capaz, mercê da sua organização, mas
depressa se percebeu tê-lo sido por se terem concentrado os recursos numa única
doença: a covid-19. Tudo o mais foi sendo deixado para trás, com salas de
operações fechadas, consultas vazias, exames por fazer, hospitais com
enfermarias bloqueadas por doentes infectados. Numa doença que afectou até
agora apenas cerca de 3 em cada 1000 cidadãos portugueses, um sinal objectivo
de eficiência do SNS seria ter combatido a epidemia sem deixar para depois as
outras patologias, pelo menos aquelas mais urgentes e que podem levar a um
aumento de mortes a curto ou médio prazo, embora sem a contabilidade diária dos
mortos que agora se faz… Isto é, seria ter uma folga na resposta pública às
doenças de modo que quando houvesse um aumento brusco de doentes eles pudessem
ser atempada e adequadamente tratados, sem se ter de recorrer à almofada que
vai permitindo dizer que o serviço público de saúde é eficiente: as listas de
espera! Escoando-se estas para o privado por conta do público…
Um
caso particular foi o de Coimbra, porque, como referência hospitalar da Região
Centro, tem há quase 50 anos dois Hospitais Centrais, embora agora unidos numa
fusão imposta pela troika em 2011. Essa “fusão”, dando um chamado Centro
Hospitalar, tem sido, ao contrário, entendida pelo seu conselho de administração
como a criação dum único hospital, junção de dois em um, e o que tem sido tentado
é fazer desaparecer um (Covões) para ficar só o outro. Pois felizmente que não
o conseguiram, e o Hospital dos Covões, apesar de fortemente esvaziado de recursos
humanos e de Serviços, mantém a sua estrutura de hospital e a sua tecnologia de
Hospital Central (também por necessidade do HUC de a ela recorrer…), porque foi
isso que tornou possível em Coimbra uma solução única nesta pandemia: reservar
um Hospital para Hospital de Referência, mantendo o outro Hospital da cidade
liberto para outras patologias e tratamentos. Ficaram separadas as águas (e as
infecções), e para ter as camas necessárias para os infectados bastou esvaziar
as enfermarias dos doentes que lá estavam e reabrir enfermarias que,
inexplicavelmente, estavam fechadas. E o pessoal do Hospital, juntamente com
outro que o veio momentaneamente repovoar, depois de acumulado no outro,
conseguiram brilhantemente debelar o surto da doença.
Seria
previsível que o conselho de administração, face a esta ocorrência, percebesse finalmente
a importância de ter recebido dois Hospitais com capacidade para tratar doenças
complexas, como esta, podendo um ser reservado para o efeito, deixando o outro
livre para o restante trabalho médico. Mas não, pelo contrário! Mal se nota um
abrandamento da pandemia, logo quer fechar o que foi aberto, mais o que estava
aberto e foi esvaziado para internar os infectados. E mais, propõe-se encerrar
liminarmente o Serviço de Urgência, embora depois se contente, para já, em
passá-lo a urgência básica, igual à urgência das clínicas privadas da cidade. Será que pensa que a pandemia já acabou?... Será que acha que os outros
doentes, os que antes da pandemia enchiam as Urgências dos dois Hospitais, e
inundavam a do HUC, ao ponto de gerar tempos de espera por atendimento de 8 e
10 horas, desapareceram todos com a covid-19?! Será que não entende que os doentes agora não vão aos Hospitais pela
mesma razão que não vão aos restaurantes e aos cinemas? Por medo do vírus?...
Mesmo os realmente, e muito, doentes?...
Em
vez de se reconhecer a vantagem de ter dois Hospitais, que foi óbvia nesta
situação, insiste-se cegamente na destruição de um!! Como diz o povo, “mais
vale cair em graça que ser engraçado!”... Neste caso, “se não caíste em graça,
de nada te vale ser engraçado”…
O
Senhor Presidente da República falou dos que merecem um prémio pelo que fizeram
pela comunidade nesta “peste”. Concordo que merecem, não só pelo resultado mas,
e sobretudo, pelo esforço que fizeram. Mas com os que o fizeram, denodadamente,
no Hospital dos Covões, o Senhor Presidente escusa de se incomodar: o “prémio” já
lhes foi dado pelo conselho de administração da instituição onde trabalham…
In Campeão das Províncias digital, 9 de Junho 2020
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