quarta-feira, 24 de junho de 2020

O MEDO

O medo saiu às ruas, e esvaziou-as. Não foi o vírus, foi o medo que foi criado e que fez as pessoas esconderem-se em casa, temerosas, como fazem os animais quando, assustados por algo, se metem na toca e só de lá saem pressionados pela fome. O medo que as fez durante mais de três meses sair apenas em incursões ao supermercado para comprar mantimentos, ou em pequenos passeios desentorpecedores mas não muito longe do local onde se acoitavam.
O medo duma única doença, e que manteve as pessoas em casa, escondidas, ignorando inclusivamente todas as outras moléstias e queixas, exacerbando-se esse medo em pavor só de pensarem em ir a um hospital, lugar onde por certo os temidos vírus se concentravam e as podiam contagiar!  E foi esse medo que fez com que patologias graves e urgentes se mantivessem escondidas em casa com os pacientes, sem diagnóstico nem tratamento, com as consultas externas desertas e as urgências sem utentes. Juntamente com as salas de operações fechadas, para possível utilização dos ventiladores, tudo se juntou para parecer que o mundo só tinha de se preocupar com a covid-19 e que todas as outras doenças tinham sido consumidas por ela!
E foi esse o poder do medo. Um país quase parado, com os locais públicos e os estabelecimentos comerciais deixados às moscas. Com os hospitais de referência para a covid-19 assoberbados com trabalho e os outros meio vazios, como se a saúde afinal reinasse para além do SARS-CoV-2.
Os meses passaram, a pandemia começou a amainar na Europa, e o medo a desvanecer-se com ela. Por isso o vírus ficou nas ruas mas as pessoas começaram a voltar.
Houve muitas que entenderam bem o que se passava: que foram o confinamento e os cuidados tomados que levaram a atalhar a propagação da infecção.
Dessas, menos perceberam também que a resposta do nosso SNS a esta epidemia se fez apenas pela organização e pela concentração de meios nesta doença, e que dessa concentração resultou falta de assistência a muitos doentes, com doenças graves, muito mais graves que a virose em questão. Por, na verdade, não haver condições assistenciais para ser de outro modo. Porque o Serviço Nacional de Saúde vai dando cada vez menos resposta através dos hospitais públicos e mais pelos serviços alugados aos privados, pondo os doentes em espera, em listas cada vez maiores. Quando se sai do dia a dia e não é possível a espera, a incapacidade pública vem ao de cima.
Mas houve quem respondesse apenas ao medo, não à doença. Como perderam o medo, a doença e as insuficiências sanitárias e de assistência médica, tornadas claras por ela, deixaram de contar.
Assim, alguns deixaram de tomar as medidas de segurança necessárias, e adoptaram comportamentos de risco para transmissão da infecção como se ela tivesse deixado de existir.
Outros, aliviados do medo de não se conseguir tratar os doentes na primeira leva da pandemia, começaram logo a desmantelar o que estava preparado para lhe resistir; e mais, como as camas para covid-19 foram ficando vazias, e sem perceberem que as outras doenças que antes as enchiam não desapareceram, apenas os doentes não vão aos hospitais como não vão aos restaurantes, às lojas, aos cinemas e aos cafés, logo pensaram que afinal nem faziam falta, e eram uma despesa a abater nas suas contas de gestão hospitalar.
Dizer que estas duas atitudes revelam apenas estupidez e falta de visão é capaz de ser demasiado. E daí talvez não.
O medo é um sentimento natural, positivo quando leva a uma reacção em busca da solução para uma agressão, sendo inteligente criar as condições que tornem mais eficaz e eficiente uma futura resposta a uma situação semelhante. Ou que evitem que a situação se repita.  Mas o medo pode ser apenas uma reacção primária, cujo único fito é a sobrevivência imediata, sem capacidade de analisar o presente e sobre ele projectar o futuro, aprendendo com o que causou o medo e o modo como foi ultrapassado. Não há medo, há medos, sentidos por pessoas diferentes.
Esta pandemia mostrou o que o SNS tem de bom, mas também tornou evidentes debilidades que tem, e que urge corrigir. Tornou óbvio que vai ser preciso investir e que, pelo contrário, o desinvestimento é um péssimo caminho. Para além dos doentes deixados necessariamente para trás, houve cidades onde nesta epidemia foi preciso erguer tendas de campanha e colocar contentores à porta dos hospitais, ou encher de macas pavilhões desportivos. Pois em Coimbra isso não foi necessário.
Porque tem dois hospitais gerais centrais, e um deles pôde ser dedicado temporariamente à pandemia. Foi um exemplo do que se pretenderia noutros locais, e do que deve ser considerado como desejável.
Mas será que a lição de Coimbra não foi aprendida por quem gere a saúde no país? Inclusivamente em Coimbra? E as tendas de campanha e os contentores é que se querem como futuro do SNS?... Pois agora é que se vai ver o que queremos como Serviço Nacional de Saúde, e o que nos querem dar. Estejamos atentos ao que se vai passar. A prova da pandemia de covid-19 não nos vai enganar nesta matéria…
In Dário As Beiras, 24 de Junho de 2020

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