O
MEDO
O
medo saiu às ruas, e esvaziou-as. Não foi o vírus, foi o medo que foi criado e
que fez as pessoas esconderem-se em casa, temerosas, como fazem os animais
quando, assustados por algo, se metem na toca e só de lá saem pressionados pela
fome. O medo que as fez durante mais de três meses sair apenas em incursões ao
supermercado para comprar mantimentos, ou em pequenos passeios
desentorpecedores mas não muito longe do local onde se acoitavam.
O
medo duma única doença, e que manteve as pessoas em casa, escondidas, ignorando
inclusivamente todas as outras moléstias e queixas, exacerbando-se esse medo em
pavor só de pensarem em ir a um hospital, lugar onde por certo os temidos vírus
se concentravam e as podiam contagiar! E
foi esse medo que fez com que patologias graves e urgentes se mantivessem
escondidas em casa com os pacientes, sem diagnóstico nem tratamento, com as
consultas externas desertas e as urgências sem utentes. Juntamente com as salas
de operações fechadas, para possível utilização dos ventiladores, tudo se
juntou para parecer que o mundo só tinha de se preocupar com a covid-19 e que
todas as outras doenças tinham sido consumidas por ela!
E
foi esse o poder do medo. Um país quase parado, com os locais públicos e os
estabelecimentos comerciais deixados às moscas. Com os hospitais de referência
para a covid-19 assoberbados com trabalho e os outros meio vazios, como se a
saúde afinal reinasse para além do SARS-CoV-2.
Os
meses passaram, a pandemia começou a amainar na Europa, e o medo a
desvanecer-se com ela. Por isso o vírus ficou nas ruas mas as pessoas começaram
a voltar.
Houve
muitas que entenderam bem o que se passava: que foram o confinamento e os
cuidados tomados que levaram a atalhar a propagação da infecção.
Dessas,
menos perceberam também que a resposta do nosso SNS a esta epidemia se fez
apenas pela organização e pela concentração de meios nesta doença, e que dessa
concentração resultou falta de assistência a muitos doentes, com doenças
graves, muito mais graves que a virose em questão. Por, na verdade, não haver
condições assistenciais para ser de outro modo. Porque o Serviço Nacional de
Saúde vai dando cada vez menos resposta através dos hospitais públicos e mais
pelos serviços alugados aos privados, pondo os doentes em espera, em listas
cada vez maiores. Quando se sai do dia a dia e não é possível a espera, a
incapacidade pública vem ao de cima.
Mas
houve quem respondesse apenas ao medo, não à doença. Como perderam o medo, a
doença e as insuficiências sanitárias e de assistência médica, tornadas claras
por ela, deixaram de contar.
Assim,
alguns deixaram de tomar as medidas de segurança necessárias, e adoptaram
comportamentos de risco para transmissão da infecção como se ela tivesse
deixado de existir.
Outros,
aliviados do medo de não se conseguir tratar os doentes na primeira leva da
pandemia, começaram logo a desmantelar o que estava preparado para lhe
resistir; e mais, como as camas para covid-19 foram ficando vazias, e sem
perceberem que as outras doenças que antes as enchiam não desapareceram, apenas
os doentes não vão aos hospitais como não vão aos restaurantes, às lojas, aos
cinemas e aos cafés, logo pensaram que afinal nem faziam falta, e eram uma
despesa a abater nas suas contas de gestão hospitalar.
Dizer
que estas duas atitudes revelam apenas estupidez e falta de visão é capaz de
ser demasiado. E daí talvez não.
O
medo é um sentimento natural, positivo quando leva a uma reacção em busca da
solução para uma agressão, sendo inteligente criar as condições que tornem mais
eficaz e eficiente uma futura resposta a uma situação semelhante. Ou que evitem
que a situação se repita. Mas o medo
pode ser apenas uma reacção primária, cujo único fito é a sobrevivência
imediata, sem capacidade de analisar o presente e sobre ele projectar o futuro,
aprendendo com o que causou o medo e o modo como foi ultrapassado. Não há medo,
há medos, sentidos por pessoas diferentes.
Esta
pandemia mostrou o que o SNS tem de bom, mas também tornou evidentes
debilidades que tem, e que urge corrigir. Tornou óbvio que vai ser preciso
investir e que, pelo contrário, o desinvestimento é um péssimo caminho. Para
além dos doentes deixados necessariamente para trás, houve cidades onde nesta
epidemia foi preciso erguer tendas de campanha e colocar contentores à porta
dos hospitais, ou encher de macas pavilhões desportivos. Pois em Coimbra isso
não foi necessário.
Porque
tem dois hospitais gerais centrais, e um deles pôde ser dedicado
temporariamente à pandemia. Foi um exemplo do que se pretenderia noutros
locais, e do que deve ser considerado como desejável.
Mas
será que a lição de Coimbra não foi aprendida por quem gere a saúde no país?
Inclusivamente em Coimbra? E as tendas de campanha e os contentores é que se
querem como futuro do SNS?... Pois agora é que se vai ver o que queremos como
Serviço Nacional de Saúde, e o que nos querem dar. Estejamos atentos ao que se
vai passar. A prova da pandemia de covid-19 não nos vai enganar nesta matéria…
In Dário As Beiras, 24 de Junho de 2020
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