domingo, 29 de março de 2020

MEDICINA E CIÊNCIA

É conhecido o aforismo segundo o qual um médico tem de estudar toda a vida. E isso é inegável, pela parte científica da profissão. O que ontem era verdade, hoje pode não ser, e amanhã ser de modo totalmente diferente, com repercussões decisivas obrigatórias na nossa prática médica, na maneira de estudar e tratar os nossos doentes. Há que manter o passo com essa evolução da ciência, e para isso há que estar muito atentos a ela, e estudar, e ler, e ver, muito, com método, como obrigação, com o desígnio profissional de aperfeiçoamento, de aprender o mais possível para benefício dos doentes que a nós recorrem.
E isto não é retórica, como alguns - poucos, espero - parece pensarem, ao considerarem totalmente ultrapassado o médico “dedicar a vida à medicina”, ainda por cima num mundo com tantos mais atractivos à mão de semear e sem terem nada que ver com o nosso trabalho. E não se trata de “a medicina ser um sacerdócio”, que é óbvio que não é, no sentido de se cuidar dos doentes benemeritamente e por razões morais. Pelo contrário, a Medicina é uma profissão, e em qualquer uma só se pode ser realmente bom se nos dedicarmos a ela de alma e coração, ou de corpo e alma. Que outra coisa, afinal, faziam os supercampeões olímpicos de natação Mark Spitz e Michael Phelps quando treinavam sete horas por dia, ou fazem e faziam os grandes futebolistas como Ronaldo, Eusébio, Pelé, e tantos outros dos melhores, sempre os primeiros a chegar aos treinos e os últimos a sair? Em todas as profissões – porque é de profissões que estamos a falar – há com certeza os que têm individualmente mais jeito, ou mais capacidade, que outros, mas isso não impede que não tenham todos de se esforçar e aprender. Ninguém nasce ensinado, embora alguns possam aprender e evoluir mais depressa que os seus colegas, e haja sempre profissionais mais capazes que outros; o que não pode haver é maus profissionais. E não em Medicina por maioria de razão, já que lidamos com a vida dos nossos semelhantes.
Como dizia um conhecido empresário de muito sucesso no nosso país, o êxito resulta de 10% de inspiração e 90% de transpiração…  Na profissão médica não é diferente, nos seus dois componentes, arte e ciência. Aprende-se, treina-se, pratica-se, desenvolve-se. Uns com mais facilidade, outros com menos, mas sempre com um desejo constante de aperfeiçoamento, de melhores resultados, muitos dedicando-lhe a sua vida profissional, e tirando dela muito prazer, de dever cumprido, de realização pessoal, procurando ser os melhores possível. Mas há alguns outros, no entanto, que se contentam com a mediania, ou nem isso, limitando-se a não ser maus, porque nesta profissão a incompetência não pode ser permitida, e tem de ser impedida, e mesmo penalizada. No dizer de Sir William Osler, “It is astonishing with how little reading a doctor can practice medicine, but it is not astonishing how badly he may do it”.
Seja como for, e enquanto profissão, portanto fonte de rendimento, quanto melhor se for nela, mais se ganhará. Mesmo com as excepções que sempre confirmam a regra, não há como pensar doutro modo: os melhores ganharão mais. Com um senão importante: nesta profissão quem ganha mais também trabalha mais, ou tem essa possibilidade, ao contrário dos menos procurados. Se não se quiser ganhar a vida assim, há outras profissões…
No que respeita ao contacto com os doentes, a mente humana, e a sua psicologia, têm-se mantido inalteradas, o que faz com que observações nessa área feitas há milhares de anos colham perfeitamente no momento actual. Já as sociedades, evoluíram, modificaram-se, a noção do que nelas é normal foi-se alterando, e por isso a realidade de cada época vai sendo diferente, o que tem de ser tomado em conta pelo médico frente aos pacientes, sem dúvida. Tem de se manter o passo também do ponto de vista sociológico, se quisermos estabelecer empatia com cada doente.
Mas os conhecimentos científicos é que mudam mais, e temos de lhes procurar activamente as mudanças. Para isso é fundamental adquirir primeiro uma forte base de conhecimentos médicos, que constituam uma boa cultura médica que enforme o nosso saber profissional, e sobre ela irmos então desenvolvendo mais umas áreas que outras, sem deixar de lado as ligações existentes, permitindo avançar mais longe em cada uma delas e no todo. Porque conhecer muito bem uma área, mas totalmente desenquadrada do resto do complexo, é limitativo e condena a repetir-se o mesmo sem conseguir grande progresso, por falta de inputs e skills obtidos fora da área monótona e exaustivamente repetida. Sendo certo, também, no entanto, que a repetição melhora o desempenho do acto repetido.
O que caracteriza a ciência é a incerteza. Não há verdades científicas imutáveis; há é verdades científicas que não mudaram, ainda. E o progresso vai-se fazendo, com avanços e recuos, observação, registo, investigação. Há que ter um conhecimento científico sólido, sobre o qual se vão inscrevendo, de espírito aberto mas crítico, as mudanças. Se normas são para cumprir, enquanto não houver outras, guidelines são apenas isso, linhas de orientação, e resoluções por consenso estão longe de ser lei, significam apenas que num grupo específico ninguém votou contra elas. Perigosos são os que não sabem o básico e embandeiram em arco com “descobertas” desencantadas num artigo ocasional, ou afirmações definitivas de grupos sem confirmação científica, e que querem de imediato aplicar na prática, e mais, invectivam, como atrasados e ignorantes, os que, cautelosamente e porque têm substrato no assunto, têm dúvidas em o fazer.
E terminemos com este último aspecto, o da agressividade interpares na medicina e na ciência. É um fenómeno que parece estar a aumentar, e que interessa reconhecer e tentar perceber para se poder combater, por profundamente negativo. Do artigo apresentado no blog Surgical Thoughts – a blog about surgery, em 28 de Março, tal agressividade “…em alguns casos é uma forma de defesa pela ignorância quanto ao caso em concreto, o não saber o que fazer, e por isso não se querer comprometer a expressar uma opinião que ficará registada para todo o sempre.” E afirma-se: “A rudeza e agressividade gratuitas entre colegas não são de modo algum passíveis de justificação. A meu ver, são muitas vezes sintoma de ignorância e incapacidade profissionais, sem no entanto esquecer que o cansaço, excesso de trabalho e burnout têm uma forte influência nesse comportamento, que em nada beneficia o doente e o profissional.”
Um aspecto particular dessa agressividade e má criação, e decorrente do desenvolvimento das redes sociais, é a discussão nestas de situações médicas que não se encontram perfeitamente definidas do ponto de vista científico ou social, e por isso sujeitas a opiniões pessoais. Ocasionalmente, em vez de se fazer a discussão tranquila do assunto em causa, com apresentação e discussão de argumentos do ponto de vista médico, cada um invocando os que considere relevantes e procurando rebater os dos outros, formam-se uma espécie de clubes de opinião, em que surgem colegas que perdem, mesmo que momentaneamente, o tino, acusando e insultando do ponto de vista pessoal os que se lhes opõem, atribuindo-lhes ignorância, falhas de carácter ou interesses particulares maquiavélicos ou mesquinhos, isto porque se atreveram a não comungar da sua opinião, assim transformada em verdadeira crença sobre um assunto que devia ser apenas e só técnico. É uma situação que, por vezes, assume o carácter de verdadeiro bullying contra quem unicamente deseja expressar e trocar impressões de carácter médico com colegas, e que tende a obstaculizar o uso dum meio que poderia ser muito útil para o efeito. E que, fora dessas situações, é mesmo.

In Newsletter da Cirurgia C, 2018

quarta-feira, 25 de março de 2020

O QUE O CORONAVIRUS VEIO MOSTRAR A COIMBRA

O mundo está a viver uma epidemia de covid-19, a doença provocada pelo novo coronavírus. Tal como outras doenças virusais, incluindo a gripe, a covid-19 não tem tratamento especifico eficaz.  É uma doença autolimitada, quer dizer, que desaparece por si, mas que evolui de modo diferente consoante os doentes, desde ser assintomática até ser letal, e o que há a fazer é manter o doente vivo até a doença se desvanecer e o doente se curar, ficando imunizado. A maior incidência patológica do novo coronavírus é na árvore respiratória, com estabelecimento de pneumonia, mas tem também eventuais repercussões noutros órgãos e sistemas, como os rins, podendo acabar numa falência orgânica múltipla que causa a morte. Por isso os casos mais graves têm absoluta necessidade de unidades de cuidados intensivos e suporte ventilatório, além do contributo de várias especialidades médicas. A taxa de mortalidade no nosso país anda à volta de 1%, mas a esmagadora maioria de doentes podem ser tratados em casa. Que é onde devem ser confinados todos os infectados que não necessitam de internamento, bem como os suspeitos de infecção e, numa tentativa máxima de atrasar a disseminação da doença, todos os que lá se puderem manter.
O maior problema que se coloca é a da eventual falta de meios para tratar os que disso necessitem em ambiente hospitalar, pela complexidade de meios a que isso obriga e pelo rápido crescimento do número de infectados doentes. Há, pois, que acautelar a disponibilidade desses meios, na quantidade do que for necessário. Com esse objectivo, no mundo inteiro se procurou aumentar o número de camas para esse tratamento: ou se construíram hospitais de raiz para isso, ou se instalaram hospitais de campanha, ou tendas, ou se reservaram clinicas particulares ou até hotéis, para ter camas suficientes para eventualmente albergarem doentes desta doença.
Em Coimbra foi decidido reservar o Hospital dos Covões para o tratamento hospitalar da covid-19. Assim, este Hospital foi considerado um Hospital de referência para o tratamento desta pandemia. Pois ainda bem que ele existe, e que Coimbra continua a ter dois Hospitais Gerais Centrais. Porque só assim o tratamento desta doença pode ser concentrado num deles. Num Hospital que tem todas as condições técnicas e tecnológicas que permitem esse tratamento, complexo que é. Num Hospital de que alguém em Coimbra ainda há bem pouco tempo dizia que necessitaria de milhões de euros de investimento para poder dar apoio a uma Maternidade como Hospital Geral… E agora, sem se gastar um cêntimo, de um mês para o outro, é um Hospital de Referência numa epidemia mundial! Com todos os meios que são necessários para tal…
Mas ainda bem que assim é. Porque se o Hospital dos Covões não existisse mais como Hospital Geral Central, e tivesse sido transformado numa outra coisa qualquer, para onde iriam agora estes doentes? Encher ainda mais o HUC? Ou talvez para uma tenda de campanha à entrada da sua Urgência, como aconteceu noutros hospitais?... Bom, e poderia ser assim porque entretanto não construíram a nova Maternidade nesse espaço, já que nesse caso nem lugar haveria para essa tenda!
É claro que é importante não espalhar estes doentes por vários hospitais, e por várias enfermarias. E se tem procurado mantê-los nos hospitais de referência, tanto quanto possível.  aumentando, nestes, as camas disponíveis. Mas o que foi feito em Coimbra é que se esvaziou um Hospital inteiro, com 96 % das camas utilizadas ocupadas, retirando de lá todos os doentes que tinha, mandados para casa ou transferidos de hospital, para ter camas vagas para os doentes de covid-19. E a Urgência fica apenas para esses doentes, sendo que os que foram entretanto tratados no Hospital e são lá seguidos, terão de se dirigir a procurar ajuda, inclusivamente urgente, noutro local, ainda por cima com as restrições agora exigidas. Não houve a decisão de abrir as muitas camas (mais de cem) que continuam fechadas no Hospital dos Covões. Nem nesta emergência! Elas mantêm-se encerradas, inúteis, e nem a necessidade óbvia de, tal como em todo o mundo se fez, aumentar recursos para uma doença nova que se apresentou de repente em números galopantes, as levou a ser de novo abertas. E, daí, a acumulação ainda maior de doentes no HUC vai ter as suas consequências nefastas. Se é verdade que a procura pelos doentes agora é menor, pelo confinamento em casa e pela redução de acidentes rodoviários pelo muito menor volume de trânsito, é verdade também que todas as outras doenças não desapareceram, muitas delas muito mais mortais que a covid-19, e cujo diagnóstico e tratamento tardios serão o factor determinante do êxito letal dos doentes. Sem repercussão nos noticiários, admite-se…
Em conclusão, o Hospital dos Covões mostra-se, mais uma vez, como uma absoluta necessidade para Coimbra enquanto Hospital Geral Central. Mas mesmo tendo de se reconhecer isso, mantem-se limitado, truncado, querendo-se que funcione sempre e apenas como uma ajuda, absolutamente indispensável, vital, ao que se insiste em que seja o único Hospital Geral Central de Coimbra, o HUC, assoberbado e esgotado de trabalho que este esteja.
Foi isto que o novo coronavirus veio mostrar a Coimbra. Espera-se que Coimbra veja. E se lembre de que já foi Capital da Saúde, quando tinha dois Hospitais Gerais Centrais. E que ainda os tem…
Será que a população de Coimbra e da zona centro não merece que as instalações e capacidade do Hospital dos Covões sejam todas aproveitadas?! Sempre?...

In Campeão das Províncias, Coimbra, Março de 2020