MEDICINA E CIÊNCIA
É conhecido o aforismo segundo o qual um
médico tem de estudar toda a vida. E isso é inegável, pela parte científica da
profissão. O que ontem era verdade, hoje pode não ser, e amanhã ser de modo
totalmente diferente, com repercussões decisivas obrigatórias na nossa prática
médica, na maneira de estudar e tratar os nossos doentes. Há que manter o passo
com essa evolução da ciência, e para isso há que estar muito atentos a ela, e
estudar, e ler, e ver, muito, com método, como obrigação, com o desígnio profissional
de aperfeiçoamento, de aprender o mais possível para benefício dos doentes que
a nós recorrem.
E isto não é retórica, como alguns -
poucos, espero - parece pensarem, ao considerarem totalmente ultrapassado o
médico “dedicar a vida à medicina”, ainda por cima num mundo com tantos mais
atractivos à mão de semear e sem terem nada que ver com o nosso trabalho. E não
se trata de “a medicina ser um sacerdócio”, que é óbvio que não é, no sentido
de se cuidar dos doentes benemeritamente e por razões morais. Pelo contrário, a
Medicina é uma profissão, e em qualquer uma só se pode ser realmente bom se nos
dedicarmos a ela de alma e coração, ou de corpo e alma. Que outra coisa, afinal,
faziam os supercampeões olímpicos de natação Mark Spitz e Michael Phelps quando
treinavam sete horas por dia, ou fazem e faziam os grandes futebolistas como
Ronaldo, Eusébio, Pelé, e tantos outros dos melhores, sempre os primeiros a
chegar aos treinos e os últimos a sair? Em todas as profissões – porque é de
profissões que estamos a falar – há com certeza os que têm individualmente mais
jeito, ou mais capacidade, que outros, mas isso não impede que não tenham todos
de se esforçar e aprender. Ninguém nasce ensinado, embora alguns possam
aprender e evoluir mais depressa que os seus colegas, e haja sempre profissionais
mais capazes que outros; o que não pode haver é maus profissionais. E não em
Medicina por maioria de razão, já que lidamos com a vida dos nossos semelhantes.
Como dizia um conhecido
empresário de muito sucesso no nosso país, o êxito resulta de 10% de inspiração
e 90% de transpiração… Na profissão
médica não é diferente, nos seus dois componentes, arte e ciência. Aprende-se,
treina-se, pratica-se, desenvolve-se. Uns com mais facilidade, outros com menos, mas sempre
com um desejo constante de aperfeiçoamento, de melhores resultados, muitos
dedicando-lhe a sua vida profissional, e tirando dela muito prazer, de dever
cumprido, de realização pessoal, procurando ser os melhores possível. Mas há alguns
outros, no entanto, que se contentam com a mediania, ou nem isso, limitando-se
a não ser maus, porque nesta profissão a incompetência não pode ser permitida,
e tem de ser impedida, e mesmo penalizada. No dizer de Sir
William Osler, “It is astonishing with
how little reading a doctor can practice medicine, but it is not astonishing
how badly he may do it”.
Seja como
for, e enquanto profissão, portanto fonte de rendimento, quanto melhor se for
nela, mais se ganhará. Mesmo com as excepções que sempre confirmam a regra, não
há como pensar doutro modo: os melhores ganharão mais. Com um senão importante:
nesta profissão quem ganha mais também trabalha mais, ou tem essa
possibilidade, ao contrário dos menos procurados. Se não se quiser ganhar a
vida assim, há outras profissões…
No que
respeita ao contacto com os doentes, a mente humana, e a sua psicologia, têm-se
mantido inalteradas, o que faz com que observações nessa área feitas há
milhares de anos colham perfeitamente no momento actual. Já as sociedades,
evoluíram, modificaram-se, a noção do que nelas é normal foi-se alterando, e por
isso a realidade de cada época vai sendo diferente, o que tem de ser tomado em
conta pelo médico frente aos pacientes, sem dúvida. Tem de se manter o passo
também do ponto de vista sociológico, se quisermos estabelecer empatia com cada
doente.
Mas os
conhecimentos científicos é que mudam mais, e temos de lhes procurar activamente
as mudanças. Para isso é fundamental adquirir primeiro uma forte base de
conhecimentos médicos, que constituam uma boa cultura médica que enforme o
nosso saber profissional, e sobre ela irmos então desenvolvendo mais umas áreas
que outras, sem deixar de lado as ligações existentes, permitindo avançar mais
longe em cada uma delas e no todo. Porque conhecer muito bem uma área, mas
totalmente desenquadrada do resto do complexo, é limitativo e
condena a repetir-se o mesmo sem conseguir grande progresso, por falta de inputs e skills obtidos fora da área monótona e exaustivamente repetida.
Sendo certo, também, no entanto, que a repetição melhora o desempenho do acto
repetido.
O que caracteriza a ciência é a incerteza.
Não há verdades científicas imutáveis; há é verdades científicas que não
mudaram, ainda. E o progresso vai-se fazendo, com avanços e recuos, observação,
registo, investigação. Há que ter um conhecimento científico sólido, sobre o
qual se vão inscrevendo, de espírito aberto mas crítico, as mudanças. Se normas
são para cumprir, enquanto não houver outras, guidelines são apenas isso, linhas de orientação, e resoluções por
consenso estão longe de ser lei, significam apenas que num grupo específico ninguém
votou contra elas. Perigosos são os que não sabem o básico e embandeiram em
arco com “descobertas” desencantadas num artigo ocasional, ou afirmações
definitivas de grupos sem confirmação científica, e que querem de imediato
aplicar na prática, e mais, invectivam, como atrasados e ignorantes, os que,
cautelosamente e porque têm substrato no assunto, têm dúvidas em o fazer.
E terminemos com este último aspecto, o da
agressividade interpares na medicina e na ciência. É um fenómeno que parece
estar a aumentar, e que interessa reconhecer e tentar perceber para se poder
combater, por profundamente negativo. Do artigo apresentado no blog Surgical Thoughts – a blog about
surgery, em 28 de Março, tal
agressividade “…em alguns casos é uma forma de defesa pela ignorância quanto ao
caso em concreto, o não saber o que fazer, e por isso não se querer comprometer
a expressar uma opinião que ficará registada para todo o sempre.” E afirma-se:
“A rudeza e agressividade gratuitas entre colegas não são de modo algum
passíveis de justificação. A meu ver, são muitas vezes sintoma de
ignorância e incapacidade profissionais, sem no entanto esquecer que o cansaço,
excesso de trabalho e burnout têm uma
forte influência nesse comportamento, que em nada beneficia o doente e o
profissional.”
Um aspecto particular dessa agressividade
e má criação, e decorrente do desenvolvimento das redes sociais, é a discussão
nestas de situações médicas que não se encontram perfeitamente definidas do
ponto de vista científico ou social, e por isso sujeitas a opiniões pessoais. Ocasionalmente,
em vez de se fazer a discussão tranquila do assunto em causa, com apresentação
e discussão de argumentos do ponto de vista médico, cada um invocando os que
considere relevantes e procurando rebater os dos outros, formam-se uma espécie
de clubes de opinião, em que surgem colegas que perdem, mesmo que
momentaneamente, o tino, acusando e insultando do ponto de vista pessoal os que
se lhes opõem, atribuindo-lhes ignorância, falhas de carácter ou interesses
particulares maquiavélicos ou mesquinhos, isto porque se atreveram a não comungar
da sua opinião, assim transformada em verdadeira crença sobre um assunto que
devia ser apenas e só técnico. É uma situação que, por vezes, assume o carácter
de verdadeiro bullying contra quem unicamente
deseja expressar e trocar impressões de carácter médico com colegas, e que
tende a obstaculizar o uso dum meio que poderia ser muito útil para o efeito. E
que, fora dessas situações, é mesmo.
In Newsletter da Cirurgia C, 2018
In Newsletter da Cirurgia C, 2018
Muito bem Professor Costa Almeida, vejo que continua bem e no seu melhor.As coisas devem ser ditas como as sentimos, na hora,sem ofensa, pensando nós que estamos a contribuir para transmitir mais um ensinamento aos nossos colegas ainda que estejam ou não relacionadas com assuntos científicos, ou de mero respeito pelo colega mais velho e experiente. E ninguém deveria levar a mal por se expressar o nosso ponto de vista. Se não concordam, então devem rebatê-lo com argumentos científicos convincentes perante os seus pares.
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