A EPIDEMIA E A SOLUÇÃO FINAL
O Artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa diz assim: “1. Todos
têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover. … 3. Para assegurar o direito à protecção da saúde,
incumbe prioritariamente ao Estado: a) Garantir o
acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição
económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação.”
É a nossa
Constituição, e tem de ser cumprida. Excepto quando, em momentos de aperto e de
salve-se quem puder, o “todos” passe a significar “todos os que puderem e os
deixarem”?... Um Estado decente pode deixar para trás alguns dos seus
cidadãos?...
O sistema de saúde em
qualquer país tem de ser capaz de resolver os problemas de saúde habituais do
país, em tempo útil, e ter a folga de capacidade necessária para reagir
eficazmente a momentos inesperados de maior procura, como sejam epidemias ou
catástrofes naturais ou provocadas. Essa capacidade a mais não utilizada tem de
existir sempre, embora, admitamos, nalgumas situações, seguramente raras, possa
não ser o suficiente. O que não é aceitável é a capacidade para o dia a dia ser
reduzida abaixo do necessário, com listas de espera para exames e tratamento de
milhares de doentes que, na verdade, não são estudados e tratados quando devem
ser, mas quando é possível. Nessas condições, quando surge um aumento brusco de
doentes agudos que não podem ir para uma lista de espera, o sistema arrisca-se
a entrar em colapso.
Uma epidemia tem
sempre um impacto que no seu início é desconhecido, mas que se vai delineando
no seu decorrer. Tem muito a ver com a contagiosidade e a gravidade da doença,
traduzida pela taxa de letalidade e pelo que é necessário fazer para tratar os
doentes. Como exemplos máximos, podemos lembrar a peste, antes dos antibióticos,
com uma letalidade de 99 %, ou a doença por vírus Ébola, com 70 %. A infecção pandémica por covid-19 afecta em
média menos de 0,2 % da população (no total, contando com os que estiveram
infectados e já se curaram, e de acordo com os países onde se têm feito mais
testes de diagnóstico), nos países ocidentais onde se tem manifestado mais, sendo
que 80% dos infectados doentes podem ser tratados em casa, e dos 20% que são
internados só cerca de 7% necessitam de cuidados intensivos. A taxa de
letalidade, nos países que têm conseguido dar uma melhor reposta à epidemia
(entre eles Portugal), é menos de 3 %.
Dada a muito maior
mortalidade nas pessoas mais velhas e mais frágeis, a primeira preocupação nalguns
países foi resguardá-las do contágio, mantendo-as em casa afastadas de
possíveis infectados. A solução inicial, dada
a baixa mortalidade nos mais jovens, foi essa, por exemplo no Reino
Unido, que no princípio da pandemia só preconizava o distanciamento social
preventivo dos mais velhos, não se importando que os mais novos contraíssem a
infecção, apostando no estabelecimento duma imunidade de grupo que depois
permitisse aos velhos poderem sair à rua sem estarem imunizados pela infecção.
O problema foi que o número de doentes a precisarem de internamento e de
cuidados intensivos foi aumentando, embora dentro daquelas percentagens, e o
sistema de saúde começou a falhar. Começou a não haver camas, nem ventiladores,
nem pessoal (muito dele também entretanto infectado) disponíveis para todos os
doentes, e anunciou-se uma possível outra solução: escolher quem era tratado
com ventilação assistida e quem não era.
Todos percebemos que
há doentes velhos, ou não, com uma doença terminal, ou acamados, anquilosados,
demenciados, ou com comorbilidades graves, para quem a covid-19, ou uma gripe,
são apenas um episódio terminal, não se sabendo mesmo se a causa de morte lhes
deve ser assacada ou a uma doença de base. O não ventilar esses pacientes é uma
decisão médica, o contrário seria distanásia, procurando apenas protelar uma
morte anunciada, inexorável e iminente, eventualmente prolongando-lhes o
sofrimento. Outra coisa é não ventilar um doente velho mas com possibilidade de
sobreviver à doença, apenas por ser velho e haver poucas camas de cuidados
intensivos. Isto é, estabelecer um limite de idade acima do qual não se
ventilam os doentes. Uma coisa é elencar princípios médicos para não se
praticar o que se considera tratamento excessivo, outra coisa é estabelecer
regras que permitam não se tratarem doentes só porque não há ventiladores que
cheguem. Ter de escolher pontualmente entre doentes, porque chegaram vários ao
mesmo tempo e não há ventilador para todos, nem possibilidade de alguns serem
transferidos para outras unidades, pode acontecer. Mas já aí configura uma falha
grave do sistema de saúde, que permite que cidadãos morram por falta de
assistência, por o Estado não “assegurar o direito à protecção da saúde… e garantir o acesso
de todos os cidadãos… aos cuidados da
medicina preventiva, curativa e de reabilitação”. Todos, independentemente
da sua condição económica, e da sua idade. E,
por maioria de razão, se essa acção estiver estipulada como solução final na
luta contra uma epidemia!
Quando se procura
aumentar a longevidade dos cidadãos, se criam serviços de Geriatria, há uma
preocupação expressa com o “ageing”, com o envelhecimento activo, e se procura
resguardar os idosos no início duma pandemia, tudo isso soa a cinismo quando,
num aperto em que o sistema de saúde do país falha, se decide deixar morrer os
mais velhos que uma determinada idade (70 anos?). Se discrimina na saúde pela
idade. Soa a falso qualquer consideração por quem viveu, trabalhou, ensinou,
criou, pagou, por quem foi pai e avô.
Como se depois de reformados não tivessem já direito à vida, e tudo o
que viveram antes não contasse para nada. Como se a sua vida “já não valesse a
pena ser vivida”, a não ser que não incomode muito, e não tire o lugar nos
ventiladores que o Estado deveria acautelar para todos. Quando, numa situação
destas, há Estados, como a Holanda, que lhes recusam o direito de pedir para
viver, ao mesmo tempo que lhes reconhecem o direito de pedir para morrer.
Eu por mim fico
satisfeito por ver uma velhota de 103 anos, a falar ao telemóvel, feliz e
contente, depois de ter sobrevivido à covid-19. E não é por terem morrido
outros muito mais novos do que ela…
In Campeão das Províncias, Coimbra, Abril 2020
In Campeão das Províncias, Coimbra, Abril 2020
Caro Costa Almeida gosto imenso dos teus comentários justos, oportunos e sem"panos quentes". Este vírus veio mesmo a calhar....são menos umas tantas reformas que se vão deixar de pagar, menos uns medicamentos "habituais" e.... menos uns conselhos de quem já viveu muita coisa e viu muita coisa. A transmissão de gerações é ,de facto, muito incómoda. Abraço Helena
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