terça-feira, 21 de abril de 2020

O TRAUMA, A RAÇA E O SNS

No início deste mês de Maio recebi da Biblioteca do nosso Hospital, como é habitual periodicamente, uma lista de trabalhos publicados nas revistas médicas que continuam a ser assinadas e que nos possam interessar, segundo a nossa área de trabalho. É seguramente uma iniciativa muito meritória e importante de quem lá trabalha, a Lúcia Paiva, e que cumpre realçar, com vénia.
Uma das sugestões era Universal Insurance and an Equal Access Healthcare System Eliminate Disparities for Black Patients after Traumatic Injury, de Muhammad Ali Chaudhary et al., do Center for Surgery and Public Health, do Brigham and Women's Hospital, um dos hospitais da Harvard Medical School, em Boston, Estados Unidos da América, publicado em Abril de 2018 na revista americana Surgery. O título chamou-me a atenção, ao introduzir no tratamento do trauma dois factores não médicos, o tipo de seguro e o acesso ao sistema de saúde, e um terceiro, a raça, em princípio sem relação fisiopatológica conhecida com lesões traumáticas. Os autores, reconhecendo diferenças e desigualdades no tratamento do trauma no seu país, com pior tratamento e piores resultados em pacientes pertencendo a minorias étnicas, quiseram verificar se essas desigualdades e diferenças eram amenizadas caso os traumatizados dessas minorias tivessem acesso a um seguro de saúde igual aos da maioria.
Assim, consideraram dois grupos de doentes, uns brancos, outros negros, vítimas de traumatismo, num total de 87.112, tratados num espaço de tempo de oito anos, e todos beneficiários do mesmo seguro, com as mesmas regalias. Os doentes incluídos no estudo foram avaliados segundo o mecanismo e intensidade do trauma, as lesões sofridas, as comorbilidades presentes, o tipo de cuidados no local e à entrada, e vários factores demográficos.  A raça foi considerada como a grande variável preditora dos resultados, aos 30 e 90 dias após alta, fazendo-se, portanto, nesse aspecto, a comparação entre brancos e negros. Não foram encontradas diferenças significativas entre os dois grupos no que respeita a mortalidade, morbilidade pós-traumática, reinternamentos e reabilitação. Concluíram os autores que um seguro de saúde igual podia diminuir ou mesmo fazer desaparecer as desigualdades historicamente verificadas naquele país, e afectando negativamente a minoria negra quando traumatizada.
Apesar do resultado positivo do estudo, no sentido de não haver repercussão da etnia nos resultados do tratamento, o artigo chocou-me por essa hipótese ter sido posta. Por isso fui ler mais sobre o assunto.
Em 2007, Shahid Shafi et al., da Universidade do Texas, em Dallas, escreveram Ethnic Disparities Exist in Trauma Care, focando os doentes que sofreram traumatismo cranioencefálico (TCE) e tiveram reabilitação depois, para evitar ou minimizar as sequelas. Segundo os autores, é conhecida nos EUA a diferença de acesso aos cuidados de saúde consoante a etnia ou raça em diversas patologias, e eles quiseram estudar o que se passava naquela situação. Consideraram retrospectivamente, segundo a sua etnia, três grupos de pacientes (brancos não hispânicos, hispânicos e afromericanos) que sofreram traumatismo cranioencefálico grave com necessidade de reabilitação. Na análise dos grupos foram tomadas em consideração várias variáveis (idade, género, índice de gravidade geral do trauma e índice de gravidade do TCE, lesões associadas, tipo de seguro de saúde), e nesses aspectos os três grupos foram considerados equivalentes. Assim, a única diferença que justificou os hispânicos e os negros serem postos significativamente menos em programa de reabilitação foi a sua etnia.
Sobre o mesmo tópico, e também em 2007, Wehman et al., do Departamento de Medicina Física e Reabilitação da Virginia Commonwealth University, em Richmond, em Helping Persons With Traumatic Brain Injury of Minority Origin: Improve Career and Employment Outcomes, descobriram que no seu país pessoas das minorias étnicas apresentam mais sequelas pós-trauma cranioencefálico, o que lhes condiciona as carreiras profissionais e o acesso ao emprego. E à mesma conclusão chegaram Anthony Asemota et al., da Johns Hopkins School of Medicine, de Baltimore, em 2013, em Race and Insurance Disparities in Discharge to Rehabilitation for Patients with Traumatic Brain Injury, juntando à raça o seguro de saúde como factores negativos no acesso à reabilitação necessária após traumatismo cranioencefálico e, portanto, levando à existência de mais sequelas. E do mesmo modo McQuistion et al, da Division of Trauma and Acute Care Surgery, University of Wisconsin School of Medicine, em 2016, constataram em Insurance status and race affect treatment and outcome of traumatic brain injury, com base em dados do National Trauma Data Bank americano, que a raça ou etnia e o seguro de saúde influenciam o tempo de internamento, os tratamentos feitos, a mortalidade e o seguimento pós-alta.
Já Ashley Meagher et al., no Estado de North Carolina, em Racial and ethnic disparities in discharge to rehabilitation following traumatic brain injury, em 2015, reconhecendo a desigualdade das minorias hispânica e afroamericana no acesso ao serviço de reabilitação em internamento após TCE, por comparação com a maioria caucasiana, identificaram, para além disso, uma dificuldade maior dessas minorias no acesso a cuidados mais elevados de reabilitação após alta, mas não relacionada com o tipo de seguro de saúde. Para aqueles autores, o factor decisivo é apenas pertencer àquelas minorias ou à maioria étnica.
Em Racial Differences in Employment Outcome After Traumatic Brain Injury at 1, 2, and 5 Years Postinjury, em 2009, Kelli Gary et al., também da Virginia Commonwealth University, afirmam que os doentes que sofreram TCE grave apresentam com frequência, pelas consequências físicas, cognitivas e emocionais desse trauma, dificuldades na sua reintegração na sociedade e na manutenção ou obtenção de emprego. Neste último aspecto, para além da reabilitação, também contarão algumas condições pré-trauma, como o nível de instrução e o tipo de emprego, mas, mais uma vez, o pertencer a uma raça minoritária naquele país (neste estudo, ser negro) revelou-se como um factor importante para os doentes não obterem um emprego estável após o traumatismo e o seu tratamento.
Em resumo, a etnia ou raça parecem ser na verdade um factor determinante no acesso aos cuidados de saúde e nos resultados do tratamento do trauma nos EUA, com repercussão negativa nas minorias, nomeadamente nos hispânicos e negros, por comparação com a maioria caucasiana. Apresenta-se como uma realidade, sejam quais forem os aspectos particulares que a expliquem, com menção específica do tipo de seguro de saúde de que uns e outros podem dispor.  E leva-nos de imediato a pensar na nossa realidade nacional, em que os doentes são tratados no Serviço Nacional de Saúde (SNS) todos da mesma maneira, sem importar a raça, a origem, as posses económicas, a profissão, o nível social. Com um acesso universal, e com todos os meios disponíveis à disposição de todos por igual. Seguramente um avanço enorme em termos sociais, até diria em termos civilizacionais. E compreendemos mais facilmente por que razão ele, como sistema de saúde, está tão bem cotado a nível internacional, apesar das dificuldades actuais – e crescentes, deve dizer-se - em termos de recursos humanos, tecnológicos e de investimento, os últimos justificando largamente os outros.
De realçar, também, nos artigos citados, a preocupação dos seus autores, oriundos de hospitais de referência nos EUA, em avaliar o tratamento dos doentes traumatizados e as suas consequências, identificando factores que os podem influenciar negativamente. Todos terminam os seus trabalhos, aliás, dizendo que é necessário corrigir o que está mal. Um desses factores, que alguns relacionam com a raça ou etnia dos pacientes, é o seguro de saúde, ou a falta dele, e aquilo que ele oferece a cada indivíduo segurado. Num momento em que em Portugal os seguros de saúde aumentam rapidamente, compensando, e presumivelmente aliviando, o SNS, seria importante avaliar em que extensão é que cada um dos existentes pode contribuir para o tratamento dos traumatizados e a sua reabilitação, poupando o SNS a esse trabalho. Ou se, pelo contrário, alguns deles levam os doentes a ter de recorrer ao sistema público, por falta da cobertura necessária ou porque alguns, ou muitos, cidadãos – eventualmente com preferência por alguma raça ou etnia - não têm possibilidades de a eles recorrer. É uma avaliação que deverá ser feita, como os americanos fizeram, com intuito de melhoria, se quisermos manter o nosso sistema de saúde, enquanto tal, à frente, e bem à frente, do deles.
2018
In Newsletter da Cirurgia C, Hospital Geral (Covões), Maio 2018

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