O TRAUMA, A RAÇA E O SNS
No início deste mês de Maio⁎
recebi da Biblioteca do nosso Hospital, como é habitual periodicamente, uma
lista de trabalhos publicados nas revistas médicas que continuam a ser
assinadas e que nos possam interessar, segundo a nossa área de trabalho. É
seguramente uma iniciativa muito meritória e importante de quem lá trabalha, a Lúcia
Paiva, e que cumpre realçar, com vénia.
Uma das sugestões
era Universal Insurance and an Equal
Access Healthcare System Eliminate Disparities for Black Patients after
Traumatic Injury, de Muhammad Ali Chaudhary et al., do Center for Surgery and Public Health, do Brigham and
Women's Hospital, um dos hospitais da Harvard Medical School, em Boston,
Estados Unidos da América, publicado em Abril de 2018 na revista americana Surgery. O título chamou-me a atenção,
ao introduzir no tratamento do trauma dois factores não médicos, o tipo de
seguro e o acesso ao sistema de saúde, e um terceiro, a raça, em princípio sem
relação fisiopatológica conhecida com lesões traumáticas. Os autores,
reconhecendo diferenças e desigualdades no tratamento do trauma no seu país,
com pior tratamento e piores resultados em pacientes pertencendo a minorias
étnicas, quiseram verificar se essas desigualdades e diferenças eram amenizadas
caso os traumatizados dessas minorias tivessem acesso a um seguro de saúde
igual aos da maioria.
Assim, consideraram dois grupos de doentes, uns
brancos, outros negros, vítimas de traumatismo, num total de 87.112, tratados
num espaço de tempo de oito anos, e todos beneficiários do mesmo seguro, com as
mesmas regalias. Os doentes incluídos no estudo foram avaliados segundo o
mecanismo e intensidade do trauma, as lesões sofridas, as comorbilidades
presentes, o tipo de cuidados no local e à entrada, e vários factores
demográficos. A raça foi considerada
como a grande variável preditora dos resultados, aos 30 e 90 dias após alta,
fazendo-se, portanto, nesse aspecto, a comparação entre brancos e negros.
Não foram encontradas diferenças significativas entre os dois grupos no que
respeita a mortalidade, morbilidade pós-traumática, reinternamentos e
reabilitação. Concluíram os autores que um seguro de saúde igual podia
diminuir ou mesmo fazer desaparecer as desigualdades historicamente verificadas
naquele país, e afectando negativamente a minoria negra quando traumatizada.
Apesar do resultado positivo do estudo, no sentido de
não haver repercussão da etnia nos resultados do tratamento, o artigo chocou-me
por essa hipótese ter sido posta. Por isso fui ler mais sobre o assunto.
Em 2007, Shahid Shafi et al., da Universidade do Texas, em
Dallas, escreveram Ethnic Disparities
Exist in Trauma Care, focando os doentes que sofreram traumatismo
cranioencefálico (TCE) e tiveram reabilitação depois, para evitar ou minimizar
as sequelas. Segundo os autores, é conhecida nos EUA a diferença de acesso aos
cuidados de saúde consoante a etnia ou raça em diversas patologias, e eles
quiseram estudar o que se passava naquela situação. Consideraram
retrospectivamente, segundo a sua etnia, três grupos de pacientes (brancos não
hispânicos, hispânicos e afromericanos) que sofreram traumatismo
cranioencefálico grave com necessidade de reabilitação. Na análise dos grupos
foram tomadas em consideração várias variáveis (idade, género, índice de
gravidade geral do trauma e índice de gravidade do TCE, lesões associadas, tipo
de seguro de saúde), e nesses aspectos os três grupos foram considerados
equivalentes. Assim, a única diferença que justificou os hispânicos e os negros
serem postos significativamente menos em programa de reabilitação foi a sua
etnia.
Sobre
o mesmo tópico, e também em 2007, Wehman et
al., do Departamento de Medicina Física e Reabilitação da Virginia
Commonwealth University, em Richmond, em Helping
Persons With Traumatic Brain Injury of Minority Origin: Improve Career and Employment
Outcomes, descobriram que no seu país pessoas das minorias étnicas
apresentam mais sequelas pós-trauma cranioencefálico, o que lhes condiciona as
carreiras profissionais e o acesso ao emprego. E à mesma conclusão chegaram
Anthony Asemota et al., da Johns
Hopkins School of Medicine, de Baltimore, em 2013, em Race and Insurance Disparities in Discharge to Rehabilitation for
Patients with Traumatic Brain Injury, juntando à raça o seguro de saúde
como factores negativos no acesso à reabilitação necessária após traumatismo
cranioencefálico e, portanto, levando à existência de mais sequelas. E do mesmo
modo McQuistion et al, da Division
of Trauma and Acute Care Surgery, University of Wisconsin School of Medicine,
em 2016, constataram em Insurance status and
race affect treatment and outcome of traumatic brain injury, com base em
dados do National Trauma Data Bank americano, que a raça ou etnia e o seguro de
saúde influenciam o tempo de internamento, os tratamentos feitos, a mortalidade
e o seguimento pós-alta.
Já
Ashley Meagher et al., no Estado de
North Carolina, em Racial and ethnic
disparities in discharge to rehabilitation following traumatic brain injury,
em 2015, reconhecendo a desigualdade das minorias hispânica e afroamericana no
acesso ao serviço de reabilitação em internamento após TCE, por comparação com
a maioria caucasiana, identificaram, para além disso, uma dificuldade maior
dessas minorias no acesso a cuidados mais elevados de reabilitação após alta,
mas não relacionada com o tipo de seguro de saúde. Para aqueles autores, o
factor decisivo é apenas pertencer àquelas minorias ou à maioria étnica.
Em
Racial Differences in Employment Outcome
After Traumatic Brain Injury at 1, 2, and 5 Years Postinjury, em 2009,
Kelli Gary et al., também da Virginia
Commonwealth University, afirmam que os doentes que sofreram TCE grave
apresentam com frequência, pelas consequências físicas, cognitivas e emocionais
desse trauma, dificuldades na sua reintegração na sociedade e na manutenção ou
obtenção de emprego. Neste último aspecto, para além da reabilitação, também
contarão algumas condições pré-trauma, como o nível de instrução e o tipo de
emprego, mas, mais uma vez, o pertencer a uma raça minoritária naquele país
(neste estudo, ser negro) revelou-se como um factor importante para os doentes
não obterem um emprego estável após o traumatismo e o seu tratamento.
Em
resumo, a etnia ou raça parecem ser na verdade um factor determinante no acesso
aos cuidados de saúde e nos resultados do tratamento do trauma nos EUA, com
repercussão negativa nas minorias, nomeadamente nos hispânicos e negros, por
comparação com a maioria caucasiana. Apresenta-se como uma realidade, sejam
quais forem os aspectos particulares que a expliquem, com menção específica do
tipo de seguro de saúde de que uns e outros podem dispor. E leva-nos de imediato a pensar na nossa
realidade nacional, em que os doentes são tratados no Serviço Nacional de Saúde
(SNS) todos da mesma maneira, sem importar a raça, a origem, as posses
económicas, a profissão, o nível social. Com um acesso universal, e com todos
os meios disponíveis à disposição de todos por igual. Seguramente um avanço
enorme em termos sociais, até diria em termos civilizacionais. E compreendemos
mais facilmente por que razão ele, como sistema de saúde, está tão bem cotado a
nível internacional, apesar das dificuldades actuais – e crescentes, deve
dizer-se - em termos de recursos humanos, tecnológicos e de investimento, os
últimos justificando largamente os outros.
De
realçar, também, nos artigos citados, a preocupação dos seus autores, oriundos
de hospitais de referência nos EUA, em avaliar o tratamento dos doentes
traumatizados e as suas consequências, identificando factores que os podem
influenciar negativamente. Todos terminam os seus trabalhos, aliás, dizendo que
é necessário corrigir o que está mal. Um desses factores, que alguns relacionam
com a raça ou etnia dos pacientes, é o seguro de saúde, ou a falta dele, e
aquilo que ele oferece a cada indivíduo segurado. Num momento em que em
Portugal os seguros de saúde aumentam rapidamente, compensando, e
presumivelmente aliviando, o SNS, seria importante avaliar em que extensão é
que cada um dos existentes pode contribuir para o tratamento dos traumatizados
e a sua reabilitação, poupando o SNS a esse trabalho. Ou se, pelo contrário,
alguns deles levam os doentes a ter de recorrer ao sistema público, por falta
da cobertura necessária ou porque alguns, ou muitos, cidadãos – eventualmente
com preferência por alguma raça ou etnia - não têm possibilidades de a eles
recorrer. É uma avaliação que deverá ser feita, como os americanos fizeram, com
intuito de melhoria, se quisermos manter o nosso sistema de saúde, enquanto
tal, à frente, e bem à frente, do deles.
⁎2018In Newsletter da Cirurgia C, Hospital Geral (Covões), Maio 2018
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