domingo, 26 de janeiro de 2020

OS MÉDICOS E A INTOLERÂNCIA


Um bom médico é sobretudo um bom profissional. Claro que ser simpático, compassivo, humano, pronto a ajudar, tolerante, afectuoso com o seu semelhante, tudo aquilo que duma maneira geral contribui para se ser uma “boa pessoa”, também ajuda, mas a pedra de toque é sem dúvida o profissionalismo. O médico deve tratar os seus doentes da melhor maneira possível de cabeça fria, com objectividade, deixando a afectividade que lhe pode toldar o raciocínio e o comportamento de parte. Por isso se diz que não deve tratar pessoas que lhe sejam muito queridas, pais, filhos, etc., e que “um dos maiores riscos dum doente é ser amigo do médico”! Esta abstenção profissional de afectividade permite-lhe tratar igualmente bem pessoas de quem goste e pessoas por quem não tenha simpatia ou que deteste mesmo, o que é fundamental sendo a população de doentes extremamente heterogénea como é.
Objectividade e sangue frio é, portanto, o que se pretende de qualquer profissional. Mas não nos podemos esquecer que as máquinas com que lidamos, os doentes, têm sentimentos, têm afectividade, provavelmente especialmente exacerbada num momento de fraqueza, de preocupação e de sofrimento como é a doença. Teremos, pois, de, objectiva e friamente, profissionalmente, ter isso em linha de conta, não ignorar e saber lidar com o modo de ser de cada um, com os estados de alma, os medos, as hesitações e as dúvidas daqueles que de nós precisam para se tratar. Não por sermos boas pessoas mas para sermos bons profissionais. Porque é sabido que toda a actividade mental e afectiva tem repercussão física na reacção do corpo à doença e aos tratamentos instituídos, através de substâncias químicas, intermediários, endorfinas, de que agora pouco mais sabemos que seguramente existem e actuam do ponto de vista fisiológico ou fisiopatológico no organismo.
Tudo isto deve ter, obviamente, repercussões marcadas e determinantes no trato do médico com os seus doentes. Desde Hipócrates que a preocupação do médico é com a pessoa doente, mais do que com a doença ou as doenças consideradas no seu conjunto, como era, e é, apanágio da medicina chamada mágica, ou da religiosa. A relação médico-doente é fulcral, e durante muitos séculos baseou-se no dever de o médico fazer o melhor possível pelo “seu” doente, com o direito daí decorrente de escolher a que considerar a melhor opção para o conseguir, e o paciente simplesmente confiar nele. Foi a época do paternalismo médico, os médicos procurando fazer bem sem fazer mal e os doentes esperando exactamente isso e a eles se entregando. Mas, no início do século passado, gerou-se a ideia de que as pessoas doentes têm o direito de tomar parte nas decisões médicas que a elas digam respeito, devendo para isso ser devidamente informadas. Não mais a decisão e a responsabilidade continuaram a ser apenas do médico: elas passaram a resultar dum contrato deste com o doente, o qual consente nos exames ou tratamentos propostos por aquele. Ou não.
Hoje em dia, pois, ao planear-se ou decidir-se um tratamento há que dar a possibilidade ao doente de o discutir, fornecendo-lhe as informações necessárias para que ele se sinta esclarecido e possa livremente aceitá-lo. É o chamado consentimento eficaz, que se tem de obter para que o nosso contrato terapêutico com o doente possa ser posto em prática. Mas, desse modo, é possível que tal consentimento nos seja negado, e a discussão doutras possibilidades se tenha de fazer até ele ser dado. Desde que é um direito reconhecido ao doente, o médico tem de ter a tolerância necessária perante alguma dificuldade em chegarem a acordo. Se bem que a grande maioria dos doentes aceitem facilmente que o médico está a exercer o seu dever de os tratar da melhor maneira possível, alguns têm algumas dúvidas e objecções de natureza vária que tornam o entendimento difícil ou até impossível. Se isto acontecer, nalgumas situações o médico poderá recusar-se a tratar aquele doente, sem que essa recusa de médico seja ilícita ou não ética; mas, pelo contrário, noutras não o poderá fazer, tendo de ceder aos desejos expressos pelo paciente no seu tratamento.
Uma das situações clássicas de alguma dificuldade de entendimento entre médico e doente é no recurso a transfusões de sangue e derivados em quem as recusa por razões religiosas – as testemunhas de Jeová. Esses doentes querem ser tratados, mas não aceitam ser transfundidos. Actualmente estamos cientes dos perigos das transfusões homólogas e da necessidade e vantagem de utilizar o menos sangue possivel como medicamento, e a “cirurgia sem sangue” é um objectivo a atingir sempre que possível, inclusivamente fazendo valer uma maior maestria técnica e uma melhor execução das intervenções. Mas mesmo com este esforço, obrigatório, assente em razões científicas sólidas, para não recorrer ao sangue, há situações clínicas em que, do ponto de vista médico, é inequivocamente considerada a transfusão como fundamental. E é só nestas que o problema se deve colocar.
Num contrato a distância, para uma cirurgia de rotina, o cirurgião pode recusar-se a operar o doente se este lhe vedar a possibilidade de utilizar sangue. E há profissionais que o fazem por princípio, inclusive em intervenções que se podem realizar, e se devem mesmo realizar, dentro do princípio da “bloodless surgery”, sem o recurso a sangue. Nestas condições, a recusa do médico, ética e legal embora, reveste um carácter de intolerância perante as convicções religiosas do seu paciente. Mesmo de cirurgiões mais apetrechados tecnicamente e com melhores condições de trabalho e que facilmente poderiam realizar a cirurgia sem uso de sangue, que se negam a fazê-lo pelo princípio de não tolerarem a opção de carácter religioso do doente.
Se o médico aceitar tratar o paciente sem sangue, é isso mesmo que terá de fazer. Seria inaceitável, do ponto de vista ético e legal, quebrar esse contrato, inclusivamente nas tais condições em que o seu uso é inquestionável do ponto de vista clínico. Se o doente, esclarecido, assim o exigiu, assim terá de ser feito, competindo ao médico tentar de todas as formas suprir essa falta, mesmo que com mau resultado.
Nas situações de urgência, se o doente, esclarecido, consciente e competente, declarar a sua recusa, assim terá de ser tratado pelo médico, ainda que intolerante para com ele. Tratá-lo-á sem sangue, aparte isso da melhor maneira que souber, e quando muito poderá, assim que possível, entregar o seu tratamento a outro colega que aceite fazê-lo. Mas se, nas mesmas circunstâncias, o doente chegar inconsciente, sendo a sua recusa de transfusão apenas comunicada por familiares, amigos ou acompanhantes, caberá ao médico a decisão de administrar ou não sangue, de acordo com as reais necessidades e o princípio de o usar o menos possível. Esse é o seu privilégio legal e a sua obrigação ética, sendo posteriormente altura para o doente salvo pela sua intervenção se mostrar tolerante para com o esforço que foi feito para seu bem, apesar de eventualmente contra o seu credo religioso.  
2017, in Newsletter da Cirurgia C, 2018

sábado, 18 de janeiro de 2020

“I WOULD BE DEAD NOW”, ou o SNS, e Coimbra, em 2012

JS, sexo masculino, raça caucasiana, de 66 anos de idade, cidadão britânico a viver em Portugal há cinco anos, nascido e anteriormente residente em Inglaterra, teve um acidente vascular cerebral. Foi atendido no local e transportado de imediato pelo INEM para o Serviço de Urgência do Hospital dos Covões, em Coimbra (agora do CHUC), hospital central de referência da sua área de residência. Deu entrada seguindo a Via Verde dos AVCs, foi observado, tratado, internado, evoluiu bem, teve alta. No estudo da circulação carótido-vertebral feito por ecodoppler foi detectada uma estenose significativa da carótida esquerda, que a angioTAC confirmou com indicação para intervenção, na sequência dum acidente vascular a que se atribuiu natureza isquémica. Por isso foi enviado à minha consulta.
Veio com a esposa, ambos simpáticos, cultos, educados, britanicamente contidos, falando em inglês entremeado ocasionalmente com algumas palavras, muito poucas, em português com um sotaque típico. Disse-lhe que precisava de ser operado, e perguntei-lhe se para isso não preferiria ir a Inglaterra. Respondeu-me, naturalmente em inglês: "Doutor, eu tive um AVC e ao fim de meia hora estava a ser tratado - tratado, veja bem - neste hospital. No meu país isso não seria possível! Por isso é aqui que quero continuar a ser tratado. É neste hospital que eu quero ser operado."
E foi. Fez-se-lhe endarterectomia carotídea esquerda, sem intercorrências ou complicações, esteve internado quatro dias. Voltou passado um mês, em consulta de controlo pós-operatório. Sempre acompanhado pela esposa, sem sequelas evidentes de AVC, bem dispostos os dois. Exibe a cicatriz cervical, "You did a great job here" - afirma. Prescrevo o clopidogrel, conversamos, conversa rápida de consultório, o tempo (claro, ou não fosse ele inglês!), a política europeia, a crise, o euro. Levantamo-nos, depois de me despedir da esposa estendo-lhe a mão. Aperta-ma com a sua e diz, com alguma tremura no porte fleumaticamente britânico: "You know, if I lived in my country I would be dead now. Portugal saved my life. Obrigado."
Podem crer que no momento fiquei emocionado. Disfarcei o melhor que pude, acompanhei-os à porta do gabinete. É destes momentos - pessoais, como este, ou apenas conhecidos através de outros - que se constrói o enorme prazer de ter a nossa profissão. Basta o sentimento íntimo de ter feito um bom trabalho, e que acabou bem, frequentemente reconhecido por colegas e, às vezes, se calhar não muitas, pelos doentes. Mas este caso teve um sabor muito especial, porque foi a opinião de um paciente estrangeiro esclarecido, que não fala por ouvir dizer, com possibilidade de estabelecer comparações e de escolher, e que deu fortemente preferência ao nosso Serviço Nacional de Saúde e aos nossos hospitais.
Um SNS sob ataque de há vários anos para cá, em processo de descaracterização, de restruturação que parece uma desestruturação, de redução, e eliminação. Um SNS que trabalhava bem. Aquele doente inglês, ao pôr frontalmente em causa o National Health Service, fala obviamente do NHS de agora, depois da governação da Mrs. Thatcher. Depois das reestruturações, descaracterizações, fusões e eliminações que sofreu, muito na senda do que tem vindo a ser feito por cá. Não do NHS que serviu de exemplo ao Mundo, e até deu o nome ao nosso. É claro que o nome manteve-se, o serviço também, mas não são nada do que eram, e os doentes sabem disso. Continua a haver grandes médicos e óptimas instituições médicas na Grã-Bretanha, mas já não são o NHS que costumava ser. E todo o esquema de assistência se ressentiu disso, agora que nos Serviços médicos dos hospitais públicos por lá há pessoal administrativo que toma parte em decisões que deveriam ser puramente clínicas. A minha emoção ao ouvir o desabafo do paciente inglês tratado em Portugal, deveu-se também à pena de termos entre nós algo de bom durante tanto tempo e os nossos doentes tantas vezes não o apreciarem devidamente, e estarmos se calhar a resvalar no sentido de o perder.
Mudar por mudar, não. Em equipa que ganha não se mexe, diz o povo e o bom senso. Em momentos de crise há frequentemente a fraqueza, por parte dos dirigentes menos esclarecidos, de mudar para ver o que é que dá, sem o discernimento de atender ao que está bem e assim o manter. É claro que mais tarde ou mais cedo virá a exigência de responsabilidades, e a exposição pública do mal que foi feito e de quem o fez, mas em geral tarde demais para o corrigir. E Portugal não pode dar-se ao luxo de deixar destruir o pouco que dentro de si funciona bem. A Saúde é um exemplo disso, e um exemplo para o estrangeiro, e matéria em que não se deve querer copiar o que vem de fora.
In Revista Portuguesa de Cirurgia, 2012

domingo, 12 de janeiro de 2020

A MERCEARIZAÇÃO DA NOSSA SAÚDE

A política de saúde do governo continua, inalterada. Os avisos foram feitos, repetidamente, mas ostensivamente ignorados, dentro dum modo arrogante que começamos a perceber ser institucional. Já não temos esperança de poder contribuir, com outros, para corrigir alguma coisa, mas não nos iremos calar, para que o nosso silêncio não vá eventualmente ajudar à cegueira de quem é responsável. Ou sirva para mais tarde a desculpar. Com a convicção cada dia mais enraizada que dizer o que se pensa em Portugal, agora, tem os seus perigos. Deixá-lo… Como dizia alguém de quem o governo deveria estar muito perto, “há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não”.
A nova ordem estabelecida é diminuir custos com os doentes. Não é aumentar a rentabilidade, o que implicaria ter mais e melhor saúde pelo mesmo dinheiro. Não, há é que reduzir, fechar, não gastar. Com os doentes e com os seus médicos, entenda-se. E para isso houve nos novos hospitais-empresas que recrutar uma multidão – o termo não é exagerado, acreditem – de administradores, com o fim de fazerem muitas contas e mostrar a cada momento que não se pode gastar mais. Se calhar na convicção de que o aumento de encargos com tanto funcionário directamente não produtivo possa ser recompensado pela contenção no tratamento dos doentes pelos outros funcionários, os produtivos.
O que parece contar nos hospitais apenas é fazer muitas “cirurgias” a baixo custo. Para que isso possa ser convenientemente expresso em muitos balanços e balancetes, gráficos, relatórios de gestão e análises de produção, depois, evidentemente, da criação de “linhas de montagem”, perdão, “linhas de produção” (sic, dum relatório de administração hospitalar). Não é tratar doentes, ou a maneira como se tratam, ou as doenças que são tratadas, nem a forma como os profissionais exercem a sua actividade e os meios que têm para a desempenhar e para a aprender executando-a.
O objectivo de quem dirige deixou de ser tratar os doentes da melhor maneira possível, conseguindo desse modo fazê-lo da maneira mais económica – porque a boa medicina é que fica mais barata, no fim das contas todas feitas. O objectivo passou, sim, a ser gastar o menos possível com os doentes, tratando-os como e quando for possível. Chega-se ao ponto de fechar consultas e limitar tratamentos mais dispendiosos, enviando os doentes a outras instituições, e essas que gastem o dinheiro! Como numa padaria em que, por se achar a farinha cara, se deixa de fabricar pão, enviando-se os fregueses ao vizinho....
Administrativos a dirigir a Saúde
É evidente que uma instituição reflecte a personalidade e a formação de quem a dirige. Pondo-se administrativos – ou actuando como tal - a dirigir a saúde, não seria de esperar que a orientação das instituições de saúde fosse diferente da que está a ser. Não é que o aspecto da gestão económico-financeira não seja importante, é com certeza, mas ela terá de ser encarada como um instrumento para a gestão clínica, e não é isso que tem sido feito, antes pelo contrário: é esta que se tem subjugado duma maneira absoluta àquela. Pelo empolamento que se tem vindo a dar à actuação dos administradores, são os recursos que sobram da gestão administrativa que se aplicam na clínica. O balanço financeiro é positivo? Veremos, se calhar até não, mas mesmo que o venha a ser será sempre à custa dos doentes e do pessoal clínico e, em ultima análise, da própria saúde nacional.
Este aspecto é crucial, como brevemente se tornará por demais evidente. Por um lado, a boa gestão clínica é que poderá permitir uma medicina de boa qualidade e mais barata. As gestões locais dos hospitais, entregue a “administrativos” apenas desejosos de mostrar serviço – leia-se “operar muitos doentes e gastar pouco” – estão em muitos casos a tomar medidas lucrativas para as “suas” “empresas” mas lesivas do Estado do ponto de vista financeiro e, assim, realmente encarecedoras da medicina no país. E não faz sentido o Governo procurar diminuir os encargos do Estado com a saúde à custa do encarecimento desta, a suportar pelos cidadãos, sobretudo num país em que o produto interno bruto teima em não crescer desde os anos mais recentes e os ordenados mínimos se arrastam pelo último lugar da Europa comunitária. Por outro lado, a desierarquização institucional, estabelecida com o intuito de eliminar contestações internas e fazer cumprir sem recalcitrações as directivas das administrações nomeadas, destruiu as carreiras médicas, e a forma que havia de implementar e ao mesmo tempo controlar a formação contínua dos médicos. Que deveria ser uma preocupação central do Ministério da Saúde.
Formação contínua comprometida
À medida que a única preocupação reinante for operar muitos doentes em pouco tempo e com pouca despesa, organizando-se ou destruindo-se os serviços expressamente com esse objectivo, a formação contínua ficará seriamente comprometida, bem como a própria idoneidade para especialização. Sem falar já do trabalho científico, ou de investigação, consumidor de tempo e dinheiro e portanto indesejável em empresas viradas primaria e grosseiramente para a rentabilidade económica. Com as direcções técnicas entregues a muitos que nunca deram provas de terem as condições exigidas para esse desempenho – outra consequência directa e imediata do assassínio das carreiras.
Isto não é uma visão catastrófica, é uma apreciação do que se está verdadeiramente a passar nalgumas instituições, senão em todas. E é a isto que chamamos “mercearização” da saúde, quais pequenas mercearias na preocupação imediata do deve e haver e do produto barato para venda no bairro com um pequeno lucro que dê para ir sobrevivendo, sem grandes riscos. Produto mais elaborado só nos supermercados, e nos armazéns... enquanto não forem também reduzidos ao nível de mercearia de bairro. Depois... em Espanha, aqui tão convenientemente perto, ou por aí fora... Até à India, donde poderão um dia vir médicos especialistas se por cá não os houver em número e qualidade necessários (sic) ... Se cada instituição for gerida e sobreviver desta maneira, a saúde no nosso país é que não irá por certo sobreviver, pelo menos com a qualidade a que nos habituou nos últimos 25 anos do século XX. Mas então, mais uma vez, não se diga que ninguém avisou.
2007, in Farpas pela nossa Saúde, 2009

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

TROCANDO O PÚBLICO PELO PRIVADO

A obsessão economicista do ministério da saúde tem sido dominante em todas as medidas tomadas, que pareceram no entanto desgarradas, sem dar a ideia de uma nova ordem em estruturação, antes deixando entrever uma imagem de destruição do sector público. Destruição sobretudo porque se querem diminuir despesas com os doentes a todo o custo, levando a alijarem-se responsabilidades clínicas para o sector privado. Este aproveitou muito bem a abertura, e a grande possibilidade de negócio - negada em larga medida durante 25 anos por um Serviço Nacional de Saúde com resultados dos melhores do mundo - e os hospitais privados, de grande envergadura e boa qualidade, multiplicam-se.
Cresceram assim exponencialmente em número e em qualidade as ofertas de trabalho para os médicos, e estes finalmente começam a estar em condições de escolher entre o público e o privado: e o privado parece estar a levar a melhor.
A profissão médica tem particularidades únicas que é preciso conhecer para se poder lidar capazmente com estes profissionais, o que não parece acontecer com quem tem ultimamente gerido o ministério da saúde a vários níveis. Os médicos gostam de ganhar dinheiro, como toda a gente, mas gostam acima de tudo de tratar doentes, porque a sua profissão não é nunca uma profissão de recurso, é uma sua paixão, e, portanto, ganham dinheiro exercendo-a com entusiasmo. Quer isto dizer que os movem largamente mais as condições de trabalho, as possibilidades técnicas oferecidas, as oportunidades de realização profissional, do que somente o dinheiro ganho ao fim do mês. Claro que há também doutros, por exemplo dos que passaram ao lado duma carreira administrativa de funcionário tipo manga de alpaca, mas esses são apenas a excepção que confirma a regra.
Por isso durante anos e anos os médicos se mantiveram a trabalhar como funcionários públicos com salários muito baixos – inferiores ao de um bom mecânico especializado – melhorados com o que ganhavam por trabalhar fora de horas e para além do seu horário, isto é, com o trabalho extraordinário. Mas era nos hospitais públicos que tinham melhores condições de trabalho, mais tecnologia, mais possibilidades de evoluírem tecnicamente, de fazerem investigação, em suma, de viverem plenamente a sua profissão. De obterem mais e melhor formação, continuamente, de prestarem provas da sua evolução técnico-científica dentro duma carreira, de se diferenciarem, em conhecimentos, em obras e em funções, hierarquizando-se nos serviços, nos hospitais e no país. E, sendo-o, nunca lhes foi feito realmente sentir a asserção limitativa que muitas vezes se confere ao termo funcionário público.
Mas eis senão quando uma onda de neoliberalismo economicista inundou o sector público da saúde. Por um lado a monoideia de poupar dinheiro, por outro uma nova forma de gestão das instituições públicas de saúde que começou logo por inviabilizar as carreiras médicas. As preocupações primeiras passaram a ser os custos e a rentabilidade, não a qualidade, a formação e o progresso, que pelo contrário custam dinheiro. Os médicos dos hospitais públicos passaram a ter de se defrontar permanentemente com um esforço do sector administrativo para que se gaste menos com os doentes, com cortes constantes nessa área, ao mesmo tempo que assistem a gastos sumptuários na área da gestão, com programas informáticos vários e agora milhões de euros aplicados no relógio de ponto por impressão digital, como se este fosse solução para o que quer que seja.
No “administrativismo” reinante, reduzem-se as despesas com os médicos e os doentes, mas contratam-se cada vez mais administradores, e nalguns hospitais – eu falo por experiência própria - ocupam-se os gabinetes médicos com administradores e deixam-se os médicos ao colo uns dos outros, juntamente com os doentes.
Os hospitais privados procuram declaradamente captar os melhores, oferecendo-lhes sobretudo boas condições de trabalho e destaque profissional. Nalguns hospitais EPE – também o digo por conhecimento pessoal -  o conselho de administração empossado nomeia quem acha que deve ser nomeado e desnomeia quem quer, substituindo muitos colegas altamente diferenciados, com créditos firmados, formação reconhecida, provas dadas e obras feitas, por outros sem nada que os recomende a não ser serem amigos de quem manda e estarem em consonância espiritual e de perfil com quem tem autoridade pontual para os nomear. Alguns destes factos foram relatados aos sindicatos, à Ordem dos Médicos, ao próprio ministério, sem resultado até agora. É o “achismo” que triunfa, a desierarquização instalada, da qual não se podem com certeza esperar bons resultados, em termos de qualidade e produtividade.
Não nos espanta, pois, que face a esta situação os médicos hospitalares mais proeminentes vão progressivamente cedendo ao chamamento dos privados. O que é de admirar, apesar de tudo, é que tenha sido a criação dos hospitais públicos como empresas (entidades públicas empresariais) que tenha levado às condições de afastamento dos médicos desse sector público para o sector privado. Alguma coisa correu mal, não é verdade? A não ser que tenha sido intencional, mas isso é outra história.
As carreiras médicas e os hospitais públicos produziram no nosso país especialistas bem preparados, agora ainda na sua força produtiva, uns mantendo-se por enquanto no Estado, outros já nas instituições hospitalares privadas, alguns ainda trabalhando nos dois lados. Mas a formação de novos especialistas, nas actuais condições de trabalho dos hospitais públicos empresarializados, adivinha-se problemática a curto prazo, como é muito difícil de ser feita nos hospitais-clínicas. É realmente um problema sério a resolver na área da saúde. Como é o de saber se um país pobre como o nosso – apesar de conviver com ricos – se pode dar ao luxo de abandonar a função social do Estado.
Seja como for, os médicos terão sempre trabalho, e nenhum sistema de saúde pode vingar sem eles, e muito menos contra eles. O que as instituições privadas de saúde emergentes no nosso país desde logo perceberam, ao contrário das empresas públicas recém-constituídas (EPE), na realidade suas concorrentes mas que parece não se terem apercebido ainda disso. Talvez porque se falirem passam outra vez a SPA, se calhar com o mesmo conselho de administração, ou outro com o mesmo perfil. 
2007, in Farpas pela nossa Saúde, 2009, MinervaCoimbra

sábado, 4 de janeiro de 2020

CARREIRAS –
- UM BEM INESTIMÁVEL OU UM INCÓMODO PARA O GOVERNO?!

É indesmentível e reconhecido por todos os médicos que as Carreiras Médicas, de há mais de 30 anos para cá, estiveram na base da criação e desenvolvimento do nosso Serviço Nacional de Saúde. E que foram elas que permitiram a organização dos Internatos Médicos no nosso país, citados internacionalmente como modelo. O êxito da Saúde em Portugal nos últimos 25 anos do século XX - em 2000 ascendemos ao 12º lugar mundial nessa área, com o custo mais baixo entre os países europeus da CEE - assentou nesses três pilares fundamentais, os dois últimos estruturalmente baseados no primeiro: carreiras técnico-científicas, com progressão por concurso e provas dadas.
Mas a verdade também - cada vez mais evidente - é que a forma de gestão hospitalar recentemente instaurada veio tornar as Carreiras Médicas realmente inviáveis. O liberalismo absoluto na gestão dos hospitais públicos EPE, com as administrações empossadas livres de fazerem os contratos individuais de trabalho que quiserem e com quem quiserem, independentemente de qualquer grau de diferenciação técnica que os profissionais possuam ou não, tornou inútil e obsoleto todo o esforço para obter maior diferenciação tecnico-profissional e assim subir na carreira. As nomeações para cargos médicos de chefia também não têm de todo que ver com isso e são feitas por critérios exclusivamente pessoais. É o “amiguismo” e o compadrio mais descarados como critério tornado legal. As carreiras médicas deixaram de ter aqui qualquer lugar.
Poder-se-ia pensar que esta situação foi criada acidentalmente, por inépcia, sem ter sido tomada previamente em conta, e que a hierarquização técnica, conducente por si mesma à formação e aperfeiçoamento profissional contínuos, fundamentais na profissão médica, com provas públicas obrigatoriamente prestadas, ponto fulcral no nosso Serviço Nacional de Saúde e razão central do seu êxito, foi pura e simplesmente esquecida por um ministério da saúde mal informado.
Mas depois começamos a olhar à nossa volta e percebemos os ataques constantes e concertados, feitos duma maneira ou doutra, às outras carreiras profissionais, e perguntamo-nos se terá sido realmente sem querer. E vemos que nos hospitais, mesmo sem terem ainda acabado oficialmente as carreiras médicas, para os lugares de director de serviço e de departamento já são nomeados quem o conselho de administração acha, sem se ter de maneira nenhuma em conta os graus de carreira, nem o trabalho feito e o prestigio pessoal e profissional de cada um. É uma desierarquização total em marcha acelerada, com destruição real das carreiras. Com todas as repercussões negativas que facilmente se adivinham e só um cego não vê.
Mas a quem interessa esta desierarquização?
A destruição do poder intermédio, o afastamento dos lugares técnicos de chefia de profissionais com opinião audível dentro das instituições, torna seguramente mais fácil a gestão quando se quer implementar algo que não é consensual, e é dificilmente aceitável, e ainda mais quando for mesmo considerado tecnicamente errado pela maioria. Não só se tenta impedir que opiniões contrárias sejam transmitidas oficialmente - principalmente se forem cheias de razão e por isso difíceis de rebater - como todos ficam avisados que quem quiser subir na hierarquia local não há como estar calado ou dizer sempre que sim aos chefes empossados pelo poder político.
Por outro lado, o fim duma carreira técnico-profissional permite que a cada momento possa ser contratado e introduzido no meio profissional alguém sem a devida preparação e que não tenha percorrido o caminho necessário para ser um profissional reconhecidamente competente. São os que aterram de paraquedas no cimo da colina. Em vez das provas e dos concursos próprios da ascensão numa carreira, ficamos com o “achismo” triunfante entre nós: qualquer um pode achar que um qualquer é bom para um lugar, por mais requisitos técnicos que não possua. São as carreiras profissionais substituídas pelo carreirismo político. 
Há com certeza gente interessada em criar esse “status quo”, mas não é por certo o que mais interessa a um país que se quer desenvolver e crescer, num mundo de tão grande competitividade. E que só se pode conquistar realmente pela competência. Está nas mãos de nós todos zelarmos para que o nosso país siga pelo caminho da competência, e abandone o do oportunismo e do facilitismo.

2007, In Farpas pela nossa Saúde, 2009