A MERCEARIZAÇÃO DA NOSSA SAÚDE
A política de saúde do
governo continua, inalterada. Os avisos foram feitos, repetidamente, mas ostensivamente
ignorados, dentro dum modo arrogante que começamos a perceber ser institucional.
Já não temos esperança de poder contribuir, com outros, para corrigir alguma
coisa, mas não nos iremos calar, para que o nosso silêncio não vá eventualmente
ajudar à cegueira de quem é responsável. Ou sirva para mais tarde a desculpar.
Com a convicção cada dia mais enraizada que dizer o que se pensa em Portugal,
agora, tem os seus perigos. Deixá-lo… Como dizia alguém de quem o governo
deveria estar muito perto, “há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que
diz não”.
A nova ordem estabelecida é
diminuir custos com os doentes. Não é aumentar a rentabilidade, o que implicaria
ter mais e melhor saúde pelo mesmo dinheiro. Não, há é que reduzir, fechar, não
gastar. Com os doentes e com os seus médicos, entenda-se. E para isso houve nos
novos hospitais-empresas que recrutar uma multidão – o termo não é exagerado,
acreditem – de administradores, com o fim de fazerem muitas contas e mostrar a
cada momento que não se pode gastar mais. Se calhar na convicção de que o
aumento de encargos com tanto funcionário directamente não produtivo possa ser
recompensado pela contenção no tratamento dos doentes pelos outros
funcionários, os produtivos.
O que parece contar nos
hospitais apenas é fazer muitas “cirurgias” a baixo custo. Para que isso possa
ser convenientemente expresso em muitos balanços e balancetes, gráficos,
relatórios de gestão e análises de produção, depois, evidentemente, da criação
de “linhas de montagem”, perdão, “linhas de produção” (sic, dum relatório de administração hospitalar). Não é tratar
doentes, ou a maneira como se tratam, ou as doenças que são tratadas, nem a
forma como os profissionais exercem a sua actividade e os meios que têm para a
desempenhar e para a aprender executando-a.
O objectivo de quem dirige
deixou de ser tratar os doentes da melhor maneira possível, conseguindo desse
modo fazê-lo da maneira mais económica – porque a boa medicina é que fica mais
barata, no fim das contas todas feitas. O objectivo passou, sim, a ser gastar o
menos possível com os doentes, tratando-os como e quando for possível. Chega-se
ao ponto de fechar consultas e limitar tratamentos mais dispendiosos, enviando
os doentes a outras instituições, e essas que gastem o dinheiro! Como numa
padaria em que, por se achar a farinha cara, se deixa de fabricar pão,
enviando-se os fregueses ao vizinho....
Administrativos a dirigir a
Saúde
É evidente que uma
instituição reflecte a personalidade e a formação de quem a dirige. Pondo-se
administrativos – ou actuando como tal - a dirigir a saúde, não seria de
esperar que a orientação das instituições de saúde fosse diferente da que está
a ser. Não é que o aspecto da gestão económico-financeira não seja importante, é
com certeza, mas ela terá de ser encarada como um instrumento para a gestão
clínica, e não é isso que tem sido feito, antes pelo contrário: é esta que se
tem subjugado duma maneira absoluta àquela. Pelo empolamento que se tem vindo a
dar à actuação dos administradores, são os recursos que sobram da gestão
administrativa que se aplicam na clínica. O balanço financeiro é positivo? Veremos,
se calhar até não, mas mesmo que o venha a ser será sempre à custa dos doentes
e do pessoal clínico e, em ultima análise, da própria saúde nacional.
Este aspecto é crucial, como
brevemente se tornará por demais evidente. Por um lado, a boa gestão clínica é
que poderá permitir uma medicina de boa qualidade e mais barata. As gestões
locais dos hospitais, entregue a “administrativos” apenas desejosos de mostrar serviço
– leia-se “operar muitos doentes e gastar pouco” – estão em muitos casos a
tomar medidas lucrativas para as “suas” “empresas” mas lesivas do Estado do
ponto de vista financeiro e, assim, realmente encarecedoras da medicina no
país. E não faz sentido o Governo procurar diminuir os encargos do Estado com a
saúde à custa do encarecimento desta, a suportar pelos cidadãos, sobretudo num
país em que o produto interno bruto teima em não crescer desde os anos mais recentes
e os ordenados mínimos se arrastam pelo último lugar da Europa comunitária. Por
outro lado, a desierarquização institucional, estabelecida com o intuito de eliminar
contestações internas e fazer cumprir sem recalcitrações as directivas das administrações
nomeadas, destruiu as carreiras médicas, e a forma que havia de implementar e ao
mesmo tempo controlar a formação contínua dos médicos. Que deveria ser uma
preocupação central do Ministério da Saúde.
Formação contínua
comprometida
À medida que a única
preocupação reinante for operar muitos doentes em pouco tempo e com pouca
despesa, organizando-se ou destruindo-se os serviços expressamente com esse
objectivo, a formação contínua ficará seriamente comprometida, bem como a
própria idoneidade para especialização. Sem falar já do trabalho científico, ou
de investigação, consumidor de tempo e dinheiro e portanto indesejável em
empresas viradas primaria e grosseiramente para a rentabilidade económica. Com as
direcções técnicas entregues a muitos que nunca deram provas de terem as
condições exigidas para esse desempenho – outra consequência directa e imediata
do assassínio das carreiras.
Isto não é uma visão catastrófica,
é uma apreciação do que se está verdadeiramente a passar nalgumas instituições,
senão em todas. E
é a isto que chamamos “mercearização” da saúde, quais pequenas mercearias na
preocupação imediata do deve e haver e do produto barato para venda no bairro
com um pequeno lucro que dê para ir sobrevivendo, sem grandes riscos. Produto mais
elaborado só nos supermercados, e nos armazéns... enquanto não forem também
reduzidos ao nível de mercearia de bairro. Depois... em Espanha, aqui tão
convenientemente perto, ou por aí fora... Até à India, donde poderão um dia vir
médicos especialistas se por cá não os houver em número e qualidade necessários
(sic) ... Se cada instituição for
gerida e sobreviver desta maneira, a saúde no nosso país é que não irá por
certo sobreviver, pelo menos com a qualidade a que nos habituou nos últimos 25 anos
do século XX. Mas então, mais uma vez, não se diga que ninguém avisou.
2007, in Farpas pela nossa Saúde, 2009
Sem comentários:
Enviar um comentário