sábado, 4 de janeiro de 2020

CARREIRAS –
- UM BEM INESTIMÁVEL OU UM INCÓMODO PARA O GOVERNO?!

É indesmentível e reconhecido por todos os médicos que as Carreiras Médicas, de há mais de 30 anos para cá, estiveram na base da criação e desenvolvimento do nosso Serviço Nacional de Saúde. E que foram elas que permitiram a organização dos Internatos Médicos no nosso país, citados internacionalmente como modelo. O êxito da Saúde em Portugal nos últimos 25 anos do século XX - em 2000 ascendemos ao 12º lugar mundial nessa área, com o custo mais baixo entre os países europeus da CEE - assentou nesses três pilares fundamentais, os dois últimos estruturalmente baseados no primeiro: carreiras técnico-científicas, com progressão por concurso e provas dadas.
Mas a verdade também - cada vez mais evidente - é que a forma de gestão hospitalar recentemente instaurada veio tornar as Carreiras Médicas realmente inviáveis. O liberalismo absoluto na gestão dos hospitais públicos EPE, com as administrações empossadas livres de fazerem os contratos individuais de trabalho que quiserem e com quem quiserem, independentemente de qualquer grau de diferenciação técnica que os profissionais possuam ou não, tornou inútil e obsoleto todo o esforço para obter maior diferenciação tecnico-profissional e assim subir na carreira. As nomeações para cargos médicos de chefia também não têm de todo que ver com isso e são feitas por critérios exclusivamente pessoais. É o “amiguismo” e o compadrio mais descarados como critério tornado legal. As carreiras médicas deixaram de ter aqui qualquer lugar.
Poder-se-ia pensar que esta situação foi criada acidentalmente, por inépcia, sem ter sido tomada previamente em conta, e que a hierarquização técnica, conducente por si mesma à formação e aperfeiçoamento profissional contínuos, fundamentais na profissão médica, com provas públicas obrigatoriamente prestadas, ponto fulcral no nosso Serviço Nacional de Saúde e razão central do seu êxito, foi pura e simplesmente esquecida por um ministério da saúde mal informado.
Mas depois começamos a olhar à nossa volta e percebemos os ataques constantes e concertados, feitos duma maneira ou doutra, às outras carreiras profissionais, e perguntamo-nos se terá sido realmente sem querer. E vemos que nos hospitais, mesmo sem terem ainda acabado oficialmente as carreiras médicas, para os lugares de director de serviço e de departamento já são nomeados quem o conselho de administração acha, sem se ter de maneira nenhuma em conta os graus de carreira, nem o trabalho feito e o prestigio pessoal e profissional de cada um. É uma desierarquização total em marcha acelerada, com destruição real das carreiras. Com todas as repercussões negativas que facilmente se adivinham e só um cego não vê.
Mas a quem interessa esta desierarquização?
A destruição do poder intermédio, o afastamento dos lugares técnicos de chefia de profissionais com opinião audível dentro das instituições, torna seguramente mais fácil a gestão quando se quer implementar algo que não é consensual, e é dificilmente aceitável, e ainda mais quando for mesmo considerado tecnicamente errado pela maioria. Não só se tenta impedir que opiniões contrárias sejam transmitidas oficialmente - principalmente se forem cheias de razão e por isso difíceis de rebater - como todos ficam avisados que quem quiser subir na hierarquia local não há como estar calado ou dizer sempre que sim aos chefes empossados pelo poder político.
Por outro lado, o fim duma carreira técnico-profissional permite que a cada momento possa ser contratado e introduzido no meio profissional alguém sem a devida preparação e que não tenha percorrido o caminho necessário para ser um profissional reconhecidamente competente. São os que aterram de paraquedas no cimo da colina. Em vez das provas e dos concursos próprios da ascensão numa carreira, ficamos com o “achismo” triunfante entre nós: qualquer um pode achar que um qualquer é bom para um lugar, por mais requisitos técnicos que não possua. São as carreiras profissionais substituídas pelo carreirismo político. 
Há com certeza gente interessada em criar esse “status quo”, mas não é por certo o que mais interessa a um país que se quer desenvolver e crescer, num mundo de tão grande competitividade. E que só se pode conquistar realmente pela competência. Está nas mãos de nós todos zelarmos para que o nosso país siga pelo caminho da competência, e abandone o do oportunismo e do facilitismo.

2007, In Farpas pela nossa Saúde, 2009

Sem comentários:

Enviar um comentário