“I WOULD BE DEAD NOW”, ou o SNS, e Coimbra, em 2012
JS, sexo masculino, raça caucasiana, de 66 anos de
idade, cidadão britânico a viver em Portugal há cinco anos, nascido e
anteriormente residente em Inglaterra, teve um acidente vascular cerebral. Foi
atendido no local e transportado de imediato pelo INEM para o Serviço de
Urgência do Hospital dos Covões, em Coimbra (agora do CHUC), hospital central
de referência da sua área de residência. Deu entrada seguindo a Via Verde dos
AVCs, foi observado, tratado, internado, evoluiu bem, teve alta. No estudo da
circulação carótido-vertebral feito por ecodoppler foi detectada uma estenose
significativa da carótida esquerda, que a angioTAC confirmou com indicação para
intervenção, na sequência dum acidente vascular a que se atribuiu natureza
isquémica. Por isso foi enviado à minha consulta.
Veio com a esposa, ambos simpáticos, cultos, educados,
britanicamente contidos, falando em inglês entremeado ocasionalmente com
algumas palavras, muito poucas, em português com um sotaque típico. Disse-lhe
que precisava de ser operado, e perguntei-lhe se para isso não preferiria ir a
Inglaterra. Respondeu-me, naturalmente em inglês: "Doutor, eu tive um AVC
e ao fim de meia hora estava a ser tratado - tratado, veja bem - neste
hospital. No meu país isso não seria possível! Por isso é aqui que quero
continuar a ser tratado. É neste hospital que eu quero ser operado."
E foi. Fez-se-lhe endarterectomia carotídea esquerda,
sem intercorrências ou complicações, esteve internado quatro dias. Voltou
passado um mês, em consulta de controlo pós-operatório. Sempre acompanhado pela
esposa, sem sequelas evidentes de AVC, bem dispostos os dois. Exibe a cicatriz cervical, "You did a great job here" - afirma. Prescrevo o clopidogrel,
conversamos, conversa rápida de consultório, o tempo (claro, ou não fosse ele
inglês!), a política europeia, a crise, o euro. Levantamo-nos, depois de me
despedir da esposa estendo-lhe a mão. Aperta-ma com a sua e diz, com alguma
tremura no porte fleumaticamente britânico: "You know, if I lived in my
country I would be dead now. Portugal saved my life.
Obrigado."
Podem crer que no momento fiquei emocionado. Disfarcei
o melhor que pude, acompanhei-os à porta do gabinete. É destes momentos -
pessoais, como este, ou apenas conhecidos através de outros - que se constrói o
enorme prazer de ter a nossa profissão. Basta o sentimento íntimo de ter feito
um bom trabalho, e que acabou bem, frequentemente reconhecido por colegas e, às
vezes, se calhar não muitas, pelos doentes. Mas este caso teve um sabor muito
especial, porque foi a opinião de um paciente estrangeiro esclarecido, que não
fala por ouvir dizer, com possibilidade de estabelecer comparações e de
escolher, e que deu fortemente preferência ao nosso Serviço Nacional de Saúde e
aos nossos hospitais.
Um SNS sob ataque de há vários anos para cá, em
processo de descaracterização, de restruturação que parece uma desestruturação,
de redução, e eliminação. Um SNS que trabalhava bem. Aquele doente inglês, ao
pôr frontalmente em causa o National Health Service, fala obviamente do NHS de
agora, depois da governação da Mrs. Thatcher. Depois das reestruturações,
descaracterizações, fusões e eliminações que sofreu, muito na senda do que tem
vindo a ser feito por cá. Não do NHS que serviu de exemplo ao Mundo, e até deu
o nome ao nosso. É claro que o nome manteve-se, o serviço também, mas não são
nada do que eram, e os doentes sabem disso. Continua a haver grandes médicos e
óptimas instituições médicas na Grã-Bretanha, mas já não são o NHS que
costumava ser. E todo o esquema de assistência se ressentiu disso, agora que
nos Serviços médicos dos hospitais públicos por lá há pessoal administrativo
que toma parte em decisões que deveriam ser puramente clínicas. A minha emoção
ao ouvir o desabafo do paciente inglês tratado em Portugal, deveu-se também à
pena de termos entre nós algo de bom durante tanto tempo e os nossos doentes
tantas vezes não o apreciarem devidamente, e estarmos se calhar a resvalar no
sentido de o perder.
Mudar por mudar, não. Em equipa que ganha não se mexe,
diz o povo e o bom senso. Em momentos de crise há frequentemente a fraqueza,
por parte dos dirigentes menos esclarecidos, de mudar para ver o que é que dá,
sem o discernimento de atender ao que está bem e assim o manter. É claro que
mais tarde ou mais cedo virá a exigência de responsabilidades, e a exposição
pública do mal que foi feito e de quem o fez, mas em geral tarde demais para o
corrigir. E Portugal não pode dar-se ao luxo de deixar destruir o pouco que
dentro de si funciona bem. A Saúde é um exemplo disso, e um exemplo para o
estrangeiro, e matéria em que não se deve querer copiar o que vem de fora.
In Revista Portuguesa de Cirurgia, 2012
Sendo este artigo, mais do que uma opinião, um relato factual, pelo próprio como médico interveniente, deverá ser publicado em jornal de divulgaçao Nacional, traduzindo para português a parte do diálogo em Inglês. Isto para que mais portugueses compreendam melhor o que se passou, não só e sobretudo pelo happy end" mas tambéms pelo reconhecimento por dois cidadãos da "pátria" do SNS que nos inspirou para o que criámos,mas que Portugal ultrapassou, apesar da carência de recursos de toda a ordem.
ResponderEliminarFoi como que, numa prova de alta competição em ciclismo, ter-se ganho correndo com uma "pasteleira"
J.Dias Pereira
O artigo foi publicado na altura na Revista Portuguesa de Cirurgia. Toda a razão nos comentários e sugestão, mas seria muito difícil a sua publicação num jornal fora da Medicina não sendo o seu autor "político"...
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