OS MÉDICOS E A INTOLERÂNCIA
Um bom médico é
sobretudo um bom profissional. Claro que ser simpático, compassivo, humano,
pronto a ajudar, tolerante, afectuoso com o seu semelhante, tudo aquilo que
duma maneira geral contribui para se ser uma “boa pessoa”, também ajuda, mas a
pedra de toque é sem dúvida o profissionalismo. O médico deve tratar os seus
doentes da melhor maneira possível de cabeça fria, com objectividade, deixando
a afectividade que lhe pode toldar o raciocínio e o comportamento de parte. Por
isso se diz que não deve tratar pessoas que lhe sejam muito queridas, pais,
filhos, etc., e que “um dos maiores riscos dum doente é ser amigo do médico”! Esta
abstenção profissional de afectividade permite-lhe tratar igualmente bem
pessoas de quem goste e pessoas por quem não tenha simpatia ou que deteste
mesmo, o que é fundamental sendo a população de doentes extremamente
heterogénea como é.
Objectividade e sangue
frio é, portanto, o que se pretende de qualquer profissional. Mas não nos
podemos esquecer que as máquinas com que lidamos, os doentes, têm sentimentos,
têm afectividade, provavelmente especialmente exacerbada num momento de
fraqueza, de preocupação e de sofrimento como é a doença. Teremos, pois, de,
objectiva e friamente, profissionalmente, ter isso em linha de conta, não
ignorar e saber lidar com o modo de ser de cada um, com os estados de alma, os medos,
as hesitações e as dúvidas daqueles que de nós precisam para se tratar. Não por
sermos boas pessoas mas para sermos bons profissionais. Porque é sabido que
toda a actividade mental e afectiva tem repercussão física na reacção do corpo
à doença e aos tratamentos instituídos, através de substâncias químicas,
intermediários, endorfinas, de que agora pouco mais sabemos que seguramente
existem e actuam do ponto de vista fisiológico ou fisiopatológico no organismo.
Tudo isto deve ter,
obviamente, repercussões marcadas e determinantes no trato do médico com os
seus doentes. Desde Hipócrates que a preocupação do médico é com a pessoa
doente, mais do que com a doença ou as doenças consideradas no seu conjunto,
como era, e é, apanágio da medicina chamada mágica, ou da religiosa. A relação
médico-doente é fulcral, e durante muitos séculos baseou-se no dever de o
médico fazer o melhor possível pelo “seu” doente, com o direito daí decorrente
de escolher a que considerar a melhor opção para o conseguir, e o paciente
simplesmente confiar nele. Foi a época do paternalismo
médico, os médicos procurando fazer bem sem fazer mal e os doentes
esperando exactamente isso e a eles se entregando. Mas, no início do século
passado, gerou-se a ideia de que as pessoas doentes têm o direito de tomar
parte nas decisões médicas que a elas digam respeito, devendo para isso ser
devidamente informadas. Não mais a decisão e a responsabilidade continuaram a
ser apenas do médico: elas passaram a resultar dum contrato deste com o doente,
o qual consente nos exames ou tratamentos propostos por aquele. Ou não.
Hoje em dia, pois,
ao planear-se ou decidir-se um tratamento há que dar a possibilidade ao doente
de o discutir, fornecendo-lhe as informações necessárias para que ele se sinta
esclarecido e possa livremente aceitá-lo. É o chamado consentimento eficaz, que
se tem de obter para que o nosso contrato terapêutico com o doente possa ser
posto em prática. Mas, desse modo, é possível que tal consentimento nos seja
negado, e a discussão doutras possibilidades se tenha de fazer até ele ser dado.
Desde que é um direito reconhecido ao doente, o médico tem de ter a tolerância
necessária perante alguma dificuldade em chegarem a acordo. Se bem que a grande
maioria dos doentes aceitem facilmente que o médico está a exercer o seu dever
de os tratar da melhor maneira possível, alguns têm algumas dúvidas e objecções
de natureza vária que tornam o entendimento difícil ou até impossível. Se isto
acontecer, nalgumas situações o médico poderá recusar-se a tratar aquele
doente, sem que essa recusa de médico
seja ilícita ou não ética; mas, pelo contrário, noutras não o poderá fazer,
tendo de ceder aos desejos expressos pelo paciente no seu tratamento.
Uma das situações
clássicas de alguma dificuldade de entendimento entre médico e doente é no
recurso a transfusões de sangue e derivados em quem as recusa por razões
religiosas – as testemunhas de Jeová. Esses doentes querem ser tratados, mas
não aceitam ser transfundidos. Actualmente estamos cientes dos perigos das
transfusões homólogas e da necessidade e vantagem de utilizar o menos sangue
possivel como medicamento, e a “cirurgia sem sangue” é um objectivo a atingir
sempre que possível, inclusivamente fazendo valer uma maior maestria técnica e
uma melhor execução das intervenções. Mas mesmo com este esforço, obrigatório,
assente em razões científicas sólidas, para não recorrer ao sangue, há
situações clínicas em que, do ponto de vista médico, é inequivocamente considerada
a transfusão como fundamental. E é só nestas que o problema se deve colocar.
Num contrato a
distância, para uma cirurgia de rotina, o cirurgião pode recusar-se a operar o
doente se este lhe vedar a possibilidade de utilizar sangue. E há profissionais
que o fazem por princípio, inclusive em intervenções que se podem realizar, e
se devem mesmo realizar, dentro do princípio da “bloodless surgery”, sem o
recurso a sangue. Nestas condições, a recusa do médico, ética e legal embora,
reveste um carácter de intolerância perante as convicções religiosas do seu paciente.
Mesmo de cirurgiões mais apetrechados tecnicamente e com melhores condições de trabalho
e que facilmente poderiam realizar a cirurgia sem uso de sangue, que se negam a
fazê-lo pelo princípio de não tolerarem a opção de carácter religioso do doente.
Se o médico aceitar
tratar o paciente sem sangue, é isso mesmo que terá de fazer. Seria
inaceitável, do ponto de vista ético e legal, quebrar esse contrato, inclusivamente
nas tais condições em que o seu uso é inquestionável do ponto de vista clínico.
Se o doente, esclarecido, assim o exigiu, assim terá de ser feito, competindo
ao médico tentar de todas as formas suprir essa falta, mesmo que com mau
resultado.
Nas situações de
urgência, se o doente, esclarecido, consciente e competente, declarar a sua
recusa, assim terá de ser tratado pelo médico, ainda que intolerante para com
ele. Tratá-lo-á sem sangue, aparte isso da melhor maneira que souber, e quando
muito poderá, assim que possível, entregar o seu tratamento a outro colega que aceite
fazê-lo. Mas se, nas mesmas circunstâncias, o doente chegar inconsciente, sendo
a sua recusa de transfusão apenas comunicada por familiares, amigos ou acompanhantes,
caberá ao médico a decisão de administrar ou não sangue, de acordo com as reais
necessidades e o princípio de o usar o menos possível. Esse é o seu privilégio
legal e a sua obrigação ética, sendo posteriormente altura para o doente salvo
pela sua intervenção se mostrar tolerante para com o esforço que foi feito para
seu bem, apesar de eventualmente contra o seu credo religioso.
2017, in Newsletter da Cirurgia C, 2018
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