TROCANDO O PÚBLICO PELO PRIVADO
A obsessão economicista do ministério da saúde tem
sido dominante em todas as medidas tomadas, que pareceram no entanto
desgarradas, sem dar a ideia de uma nova ordem em estruturação, antes deixando
entrever uma imagem de destruição do sector público. Destruição sobretudo
porque se querem diminuir despesas com os doentes a todo o custo, levando a
alijarem-se responsabilidades clínicas para o sector privado. Este aproveitou
muito bem a abertura, e a grande possibilidade de negócio - negada em larga
medida durante 25 anos por um Serviço Nacional de Saúde com resultados dos
melhores do mundo - e os hospitais privados, de grande envergadura e boa
qualidade, multiplicam-se.
Cresceram assim exponencialmente em número e em
qualidade as ofertas de trabalho para os médicos, e estes finalmente começam a
estar em condições de escolher entre o público e o privado: e o privado parece
estar a levar a melhor.
A profissão médica tem particularidades únicas que é
preciso conhecer para se poder lidar capazmente com estes profissionais, o que
não parece acontecer com quem tem ultimamente gerido o ministério da saúde a
vários níveis. Os médicos gostam de ganhar dinheiro, como toda a gente, mas
gostam acima de tudo de tratar doentes, porque a sua profissão não é nunca uma
profissão de recurso, é uma sua paixão, e, portanto, ganham dinheiro
exercendo-a com entusiasmo. Quer isto dizer que os movem largamente mais as
condições de trabalho, as possibilidades técnicas oferecidas, as oportunidades
de realização profissional, do que somente o dinheiro ganho ao fim do mês.
Claro que há também doutros, por exemplo dos que passaram ao lado duma carreira
administrativa de funcionário tipo manga de alpaca, mas esses são apenas a
excepção que confirma a regra.
Por isso durante anos e anos os médicos se mantiveram
a trabalhar como funcionários públicos com salários muito baixos – inferiores
ao de um bom mecânico especializado – melhorados com o que ganhavam por
trabalhar fora de horas e para além do seu horário, isto é, com o trabalho
extraordinário. Mas era nos hospitais públicos que tinham melhores condições de
trabalho, mais tecnologia, mais possibilidades de evoluírem tecnicamente, de
fazerem investigação, em suma, de viverem plenamente a sua profissão. De
obterem mais e melhor formação, continuamente, de prestarem provas da sua
evolução técnico-científica dentro duma carreira, de se diferenciarem, em
conhecimentos, em obras e em funções, hierarquizando-se nos serviços, nos
hospitais e no país. E, sendo-o, nunca lhes foi feito realmente sentir a
asserção limitativa que muitas vezes se confere ao termo funcionário público.
Mas eis senão quando uma onda de neoliberalismo
economicista inundou o sector público da saúde. Por um lado a monoideia de
poupar dinheiro, por outro uma nova forma de gestão das instituições públicas
de saúde que começou logo por inviabilizar as carreiras médicas. As
preocupações primeiras passaram a ser os custos e a rentabilidade, não a
qualidade, a formação e o progresso, que pelo contrário custam dinheiro. Os
médicos dos hospitais públicos passaram a ter de se defrontar permanentemente
com um esforço do sector administrativo para que se gaste menos com os doentes,
com cortes constantes nessa área, ao mesmo tempo que assistem a gastos
sumptuários na área da gestão, com programas informáticos vários e agora
milhões de euros aplicados no relógio de ponto por impressão digital, como se
este fosse solução para o que quer que seja.
No “administrativismo” reinante, reduzem-se as
despesas com os médicos e os doentes, mas contratam-se cada vez mais
administradores, e nalguns hospitais – eu falo por experiência própria -
ocupam-se os gabinetes médicos com administradores e deixam-se os médicos ao
colo uns dos outros, juntamente com os doentes.
Os hospitais privados procuram declaradamente captar
os melhores, oferecendo-lhes sobretudo boas condições de trabalho e destaque
profissional. Nalguns hospitais EPE – também o digo por conhecimento pessoal
- o conselho de administração empossado
nomeia quem acha que deve ser nomeado e desnomeia quem quer, substituindo
muitos colegas altamente diferenciados, com créditos firmados, formação
reconhecida, provas dadas e obras feitas, por outros sem nada que os recomende
a não ser serem amigos de quem manda e estarem em consonância espiritual e de
perfil com quem tem autoridade pontual para os nomear. Alguns destes factos
foram relatados aos sindicatos, à Ordem dos Médicos, ao próprio ministério, sem
resultado até agora. É o “achismo” que triunfa, a desierarquização instalada,
da qual não se podem com certeza esperar bons resultados, em termos de qualidade
e produtividade.
Não nos espanta, pois, que face a esta situação os
médicos hospitalares mais proeminentes vão progressivamente cedendo ao
chamamento dos privados. O que é de admirar, apesar de tudo, é que tenha sido a
criação dos hospitais públicos como empresas (entidades públicas empresariais)
que tenha levado às condições de afastamento dos médicos desse sector público
para o sector privado. Alguma coisa correu mal, não é verdade? A não ser que
tenha sido intencional, mas isso é outra história.
As carreiras médicas e os hospitais públicos
produziram no nosso país especialistas bem preparados, agora ainda na sua força
produtiva, uns mantendo-se por enquanto no Estado, outros já nas instituições
hospitalares privadas, alguns ainda trabalhando nos dois lados. Mas a formação
de novos especialistas, nas actuais condições de trabalho dos hospitais
públicos empresarializados, adivinha-se problemática a curto prazo, como é
muito difícil de ser feita nos hospitais-clínicas. É realmente um problema
sério a resolver na área da saúde. Como é o de saber se um país pobre como o
nosso – apesar de conviver com ricos – se pode dar ao luxo de abandonar a
função social do Estado.
Seja como for, os médicos terão sempre trabalho, e
nenhum sistema de saúde pode vingar sem eles, e muito menos contra eles. O que
as instituições privadas de saúde emergentes no nosso país desde logo
perceberam, ao contrário das empresas públicas recém-constituídas (EPE), na
realidade suas concorrentes mas que parece não se terem apercebido ainda disso.
Talvez porque se falirem passam outra vez a SPA, se calhar com o mesmo conselho
de administração, ou outro com o mesmo perfil.
2007, in Farpas pela nossa Saúde, 2009, MinervaCoimbra
A realidade nua e crua...
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