terça-feira, 7 de janeiro de 2020

TROCANDO O PÚBLICO PELO PRIVADO

A obsessão economicista do ministério da saúde tem sido dominante em todas as medidas tomadas, que pareceram no entanto desgarradas, sem dar a ideia de uma nova ordem em estruturação, antes deixando entrever uma imagem de destruição do sector público. Destruição sobretudo porque se querem diminuir despesas com os doentes a todo o custo, levando a alijarem-se responsabilidades clínicas para o sector privado. Este aproveitou muito bem a abertura, e a grande possibilidade de negócio - negada em larga medida durante 25 anos por um Serviço Nacional de Saúde com resultados dos melhores do mundo - e os hospitais privados, de grande envergadura e boa qualidade, multiplicam-se.
Cresceram assim exponencialmente em número e em qualidade as ofertas de trabalho para os médicos, e estes finalmente começam a estar em condições de escolher entre o público e o privado: e o privado parece estar a levar a melhor.
A profissão médica tem particularidades únicas que é preciso conhecer para se poder lidar capazmente com estes profissionais, o que não parece acontecer com quem tem ultimamente gerido o ministério da saúde a vários níveis. Os médicos gostam de ganhar dinheiro, como toda a gente, mas gostam acima de tudo de tratar doentes, porque a sua profissão não é nunca uma profissão de recurso, é uma sua paixão, e, portanto, ganham dinheiro exercendo-a com entusiasmo. Quer isto dizer que os movem largamente mais as condições de trabalho, as possibilidades técnicas oferecidas, as oportunidades de realização profissional, do que somente o dinheiro ganho ao fim do mês. Claro que há também doutros, por exemplo dos que passaram ao lado duma carreira administrativa de funcionário tipo manga de alpaca, mas esses são apenas a excepção que confirma a regra.
Por isso durante anos e anos os médicos se mantiveram a trabalhar como funcionários públicos com salários muito baixos – inferiores ao de um bom mecânico especializado – melhorados com o que ganhavam por trabalhar fora de horas e para além do seu horário, isto é, com o trabalho extraordinário. Mas era nos hospitais públicos que tinham melhores condições de trabalho, mais tecnologia, mais possibilidades de evoluírem tecnicamente, de fazerem investigação, em suma, de viverem plenamente a sua profissão. De obterem mais e melhor formação, continuamente, de prestarem provas da sua evolução técnico-científica dentro duma carreira, de se diferenciarem, em conhecimentos, em obras e em funções, hierarquizando-se nos serviços, nos hospitais e no país. E, sendo-o, nunca lhes foi feito realmente sentir a asserção limitativa que muitas vezes se confere ao termo funcionário público.
Mas eis senão quando uma onda de neoliberalismo economicista inundou o sector público da saúde. Por um lado a monoideia de poupar dinheiro, por outro uma nova forma de gestão das instituições públicas de saúde que começou logo por inviabilizar as carreiras médicas. As preocupações primeiras passaram a ser os custos e a rentabilidade, não a qualidade, a formação e o progresso, que pelo contrário custam dinheiro. Os médicos dos hospitais públicos passaram a ter de se defrontar permanentemente com um esforço do sector administrativo para que se gaste menos com os doentes, com cortes constantes nessa área, ao mesmo tempo que assistem a gastos sumptuários na área da gestão, com programas informáticos vários e agora milhões de euros aplicados no relógio de ponto por impressão digital, como se este fosse solução para o que quer que seja.
No “administrativismo” reinante, reduzem-se as despesas com os médicos e os doentes, mas contratam-se cada vez mais administradores, e nalguns hospitais – eu falo por experiência própria - ocupam-se os gabinetes médicos com administradores e deixam-se os médicos ao colo uns dos outros, juntamente com os doentes.
Os hospitais privados procuram declaradamente captar os melhores, oferecendo-lhes sobretudo boas condições de trabalho e destaque profissional. Nalguns hospitais EPE – também o digo por conhecimento pessoal -  o conselho de administração empossado nomeia quem acha que deve ser nomeado e desnomeia quem quer, substituindo muitos colegas altamente diferenciados, com créditos firmados, formação reconhecida, provas dadas e obras feitas, por outros sem nada que os recomende a não ser serem amigos de quem manda e estarem em consonância espiritual e de perfil com quem tem autoridade pontual para os nomear. Alguns destes factos foram relatados aos sindicatos, à Ordem dos Médicos, ao próprio ministério, sem resultado até agora. É o “achismo” que triunfa, a desierarquização instalada, da qual não se podem com certeza esperar bons resultados, em termos de qualidade e produtividade.
Não nos espanta, pois, que face a esta situação os médicos hospitalares mais proeminentes vão progressivamente cedendo ao chamamento dos privados. O que é de admirar, apesar de tudo, é que tenha sido a criação dos hospitais públicos como empresas (entidades públicas empresariais) que tenha levado às condições de afastamento dos médicos desse sector público para o sector privado. Alguma coisa correu mal, não é verdade? A não ser que tenha sido intencional, mas isso é outra história.
As carreiras médicas e os hospitais públicos produziram no nosso país especialistas bem preparados, agora ainda na sua força produtiva, uns mantendo-se por enquanto no Estado, outros já nas instituições hospitalares privadas, alguns ainda trabalhando nos dois lados. Mas a formação de novos especialistas, nas actuais condições de trabalho dos hospitais públicos empresarializados, adivinha-se problemática a curto prazo, como é muito difícil de ser feita nos hospitais-clínicas. É realmente um problema sério a resolver na área da saúde. Como é o de saber se um país pobre como o nosso – apesar de conviver com ricos – se pode dar ao luxo de abandonar a função social do Estado.
Seja como for, os médicos terão sempre trabalho, e nenhum sistema de saúde pode vingar sem eles, e muito menos contra eles. O que as instituições privadas de saúde emergentes no nosso país desde logo perceberam, ao contrário das empresas públicas recém-constituídas (EPE), na realidade suas concorrentes mas que parece não se terem apercebido ainda disso. Talvez porque se falirem passam outra vez a SPA, se calhar com o mesmo conselho de administração, ou outro com o mesmo perfil. 
2007, in Farpas pela nossa Saúde, 2009, MinervaCoimbra

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