OS CUSTOS DA SAÚDE
Sou português e médico, e agora representante de médicos que resolveram
dedicar a sua vida profissional a trabalhar nos hospitais, em exclusividade ou
não. Os médicos têm uma mística, bem consubstanciada no chamado juramento de
Hipócrates, que os leva a pretenderem sempre, com naturalidade, o melhor para
os seus doentes. Esta mística, que muito mais prosaicamente se poderá chamar
simplesmente “consciência profissional”, não é de todo compreendida por muitos,
incluindo alguns que trabalham na área da saúde mas não lidam com os
doentes.
É na verdade uma verdadeira “deformação profissional”, que nos faz procurar
em todos os momentos os melhores remédios, os exames auxiliares de diagnóstico
mais adequados, as melhores condições para os doentes. Essa preocupação
ultrapassa todas as questões políticas, a importância social ou financeira dos
doentes, a rentabilidade económica do hospital. Se não pudermos tratar
adequadamente um doente, isso dói, marca, corrói. Uma vida não se pode
simplesmente traduzir em
euros. Muitos não entendem isto, a não ser que um dia lhes
toque à porta, como doentes. A nós toca-nos todos os dias.
Mas é claro que como profissionais, e também como cidadãos, não nos
apartamos dos gastos com a nossa profissão. Num jornal há tempos dizia-se que o
Estado Português despende 20 milhões de euros por dia com a saúde. Não vou pôr
esse número em questão, apesar de não conhecer exactamente a sua origem. Mas é
um número absoluto, e eu pergunto: é muito ou pouco? Para aquilo que nos
proporciona, quero dizer.
A ser correcto, corresponderá ao quadro do que é reconhecido
internacionalmente que a saúde no nosso país custa: 9,6% do PIB (dados da
Organização Mundial de Saúde). E isso é muito? Não é? Para se ter uma ideia,
veja-se que os Estados Unidos da América gastam 15,2 %. Do PIB deles, sempre a
crescer e que nos últimos 30 anos aumentou 10 vezes. Não como o nosso, que
cresce tão pouco que mais parece ter sempre o mesmo valor. Na Europa
comunitária, os gastos com a saúde, por exemplo, em França são de 10,1 % do PIB
local, na Alemanha 11,1 %, na Grécia 9,9 %. Também há a Espanha com 7,7 %, a
Irlanda com 7,3 % e o Reino Unido com 8 %. Portugal está, pois, na média, mas
se calcularmos o que cada país gasta realmente ”per capita” com a saúde, então
o nosso país é de longe aquele em que a saúde fica mais barata: contra os
nossos 1700 dólares temos os 2389 do Reino Unido, os 2500 da Irlanda e os 1850
da Espanha, para além dos 2000 da Grécia, dos 3000 da Alemanha e dos 2900 da
França, para não referir já os 5700 dos Estados Unidos. Para melhor comparação
se podem referir ainda outros países da Europa Ocidental, como a Suécia, com
9,4 % e 2700 dólares por cabeça, e a Finlândia, com 7,4 % do PIB mas 2100
dólares gastos por cada finlandês. Quer dizer, anunciar que o nosso país é um
gastador desastroso com a saúde é uma falácia, já que na realidade é o que
gasta menos.
Mas quando se gasta dinheiro, há que avaliar a sua rentabilidade.
Perguntemo-nos portanto: o que se tem obtido entre nós com esses 1700 dólares
por cabeça? Um Serviço Nacional de Saúde aberto a todos, podendo cada português
recorrer aos Centros de Saúde ou aos Hospitais e ser atendido de acordo com as
suas queixas clínicas sem ter de provar que tem dinheiro para pagar;
medicamentos comparticipados, alguns a 100 %; e hospitais bem equipados, com
médicos com boa preparação de base, em boas Escolas Médicas ,
com formação pós-graduada contínua adequada e avaliada periodicamente,
escalonados nos locais de trabalho pela sua diferenciação profissional e provas
dadas. Um Serviço com alguns problemas de funcionamento, mas nada impossível de
ser corrigido.
No último relatório da OMS sobre sistemas de saúde dos vários países do
mundo, o Serviço Nacional de Saúde português surge classificado em 12º lugar no
desempenho global. É o 5º da Europa comunitária, e bem à frente dos EUA, país
que ocupa apenas o 37º lugar. Em que outra actividade é Portugal melhor do que
12º no mundo, a contar da frente? No futebol, no hóquei, e…
Portanto os gastos com a saúde têm valido a pena. Mas é evidente que o
aumento do custo da saúde nos deve preocupar a todos. Em grande parte ele é
devido a um avanço científico e tecnológico nunca antes observado, e que nos
deverá fazer sentir felizes a todos – enquanto possíveis doentes – por se dar
na nossa época. E também agrada aos médicos, claro, que assim se realizam mais
profundamente do ponto de vista profissional, deitando-se mais vezes felizes
por terem ajudado nesse dia um doente que estaria há uns anos sem qualquer
solução.
Esses gastos são, por esse lado, bem-vindos. Com certeza que devem ser
racionalizados, mas um país socialmente evoluído não poderá invocar falta de
dinheiro para deixar de ter uma medicina de boa qualidade, não poderá pretender
ser avançado e ao mesmo tempo deixar-se atrasar do ponto de vista sanitário. É
lícito procurar conter as despesas com a saúde, mas é preciso manter a
qualidade do atendimento aos doentes. E para isso é crucial manter a qualidade
profissional dos médicos, e dos outros profissionais que ajudam a tratar os
doentes, o que é directamente dependente da organização médico-hospitalar
nacional. Diminuir os gastos diminuindo a qualidade não é habilidade nenhuma.
Nos Estados Unidos da América existe também a preocupação de conter o custo
da saúde. Cortar a qualidade médica do atendimento não lhes parece ser a
solução, embora algumas medidas entretanto tomadas tenham tido esse efeito,
logo severamente criticado. Como foi a de diminuir drasticamente nalguns
hospitais o número de enfermeiros, substituindo-os por pessoal menos
qualificado, e por isso mais barato.
Analisando o problema, especialistas norteamericanos chegaram à conclusão
que cerca de 40% do orçamento para a saúde vai para a área administrativa, não
contemplando portanto o binómio médico-doente. Pelo contrário, grande parte do
trabalho dos administrativos e administradores é simplesmente procurarem
reduzir o que os médicos gastam com os doentes. E calcularam que cortando para
metade esses custos administrativos, sem relação directa com o atendimento aos
doentes, poderiam pagar o acesso médico a todos os que naquele país não o têm
neste momento estabelecido por falta de meios financeiros. Interessante, não é?
E por cá?... Mas uma decisão dessas tem-se mostrado difícil, porque lá, como
noutros países, quem a deveria tomar move-se precisamente naquela área.
Outro modo de reduzir os custos, dizem os americanos, seria diminuir o
número de hospitais e outros centros de atendimento a doentes. Na verdade, não
são os salários do pessoal de saúde que justificam os custos crescentes, mas
sim, para além do preço duma máquina burocrática e informática sempre a
aumentar, o consumo pelos doentes de medidas diagnósticas e terapêuticas cada
vez mais eficazes mas também mais caras. Se não houver acesso fácil e rápido
dos pacientes aos cuidados de saúde, pode calcular-se que muitos acabarão por
desistir, porque ficaram entretanto sem queixas, ou porque recorreram a outras
medidas quaisquer, não comparticipadas pelo sistema. É claro que haverá também
aqueles para quem o atraso na ida ao médico correu mal…
No economicismo da saúde o preço da saúde é limitativo, e há que fazer
contas. Mas para o médico, um doente seu que morre tem um valor absoluto. Muito
oportunamente, na conjuntura actual, o nosso Bastonário alertou já para o facto
de ser uma falta grave do ponto de vista da ética profissional deixar de se
tratar um único doente que seja, rico ou pobre, citadino ou rural, duma cidade
grande ou duma aldeia pequena, para poupar dinheiro.
Em resumo, há que ter preocupação com os custos da saúde, mas há formas
apropriadas de os conter, visando sempre manter a qualidade dos cuidados de
saúde prestados. Que em Portugal não desmerecem, até ao momento, da sua
qualidade de país europeu evoluído. Com gastos reduzidos quando comparados com
o resto da Europa. Mas o nosso Governo quer poupar dinheiro com a saúde, e
nesse sentido tem vindo a tomar medidas que afectam sobretudo o atendimento aos
doentes. Sem que tenha com isso conseguido travar o crescimento das despesas,
eventualmente pela sobrecarga administrativa e burocrática que essas mesmas
medidas acarretaram. Em termos clínicos não parece possível poupar mais sem
reduzir a qualidade para baixo dos níveis admissíveis.
Aguardemos
o que o Ministério da Saúde vai fazer. Seja o que for, o que conta é o
resultado, e haverá sempre que o comparar com o que temos actualmente.
Sobretudo em termos de atendimento aos doentes, o qual é directamente
resultante das condições de trabalho e da formação contínua dos médicos deste
país. Que há que preservar, a bem do que é inestimável em qualquer povo: a
Saúde. Se o Ministério tiver como desiderato final e único reduzir os gastos
com a saúde, deverá ter como objectivo a Libéria, com gastos na Saúde de 4,7 %
do PIB e 17 dólares por cabeça. Saúde mais barata não há. Será que a vamos
atingir?...
2006,
in Farpas pela nossa Saúde, 2009
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