quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

OS CUSTOS DA SAÚDE


Sou português e médico, e agora representante de médicos que resolveram dedicar a sua vida profissional a trabalhar nos hospitais, em exclusividade ou não. Os médicos têm uma mística, bem consubstanciada no chamado juramento de Hipócrates, que os leva a pretenderem sempre, com naturalidade, o melhor para os seus doentes. Esta mística, que muito mais prosaicamente se poderá chamar simplesmente “consciência profissional”, não é de todo compreendida por muitos, incluindo alguns que trabalham na área da saúde mas não lidam com os doentes.  
É na verdade uma verdadeira “deformação profissional”, que nos faz procurar em todos os momentos os melhores remédios, os exames auxiliares de diagnóstico mais adequados, as melhores condições para os doentes. Essa preocupação ultrapassa todas as questões políticas, a importância social ou financeira dos doentes, a rentabilidade económica do hospital. Se não pudermos tratar adequadamente um doente, isso dói, marca, corrói. Uma vida não se pode simplesmente traduzir em euros. Muitos não entendem isto, a não ser que um dia lhes toque à porta, como doentes. A nós toca-nos todos os dias.
Mas é claro que como profissionais, e também como cidadãos, não nos apartamos dos gastos com a nossa profissão. Num jornal há tempos dizia-se que o Estado Português despende 20 milhões de euros por dia com a saúde. Não vou pôr esse número em questão, apesar de não conhecer exactamente a sua origem. Mas é um número absoluto, e eu pergunto: é muito ou pouco? Para aquilo que nos proporciona, quero dizer.
A ser correcto, corresponderá ao quadro do que é reconhecido internacionalmente que a saúde no nosso país custa: 9,6% do PIB (dados da Organização Mundial de Saúde). E isso é muito? Não é? Para se ter uma ideia, veja-se que os Estados Unidos da América gastam 15,2 %. Do PIB deles, sempre a crescer e que nos últimos 30 anos aumentou 10 vezes. Não como o nosso, que cresce tão pouco que mais parece ter sempre o mesmo valor. Na Europa comunitária, os gastos com a saúde, por exemplo, em França são de 10,1 % do PIB local, na Alemanha 11,1 %, na Grécia 9,9 %. Também há a Espanha com 7,7 %, a Irlanda com 7,3 % e o Reino Unido com 8 %. Portugal está, pois, na média, mas se calcularmos o que cada país gasta realmente ”per capita” com a saúde, então o nosso país é de longe aquele em que a saúde fica mais barata: contra os nossos 1700 dólares temos os 2389 do Reino Unido, os 2500 da Irlanda e os 1850 da Espanha, para além dos 2000 da Grécia, dos 3000 da Alemanha e dos 2900 da França, para não referir já os 5700 dos Estados Unidos. Para melhor comparação se podem referir ainda outros países da Europa Ocidental, como a Suécia, com 9,4 % e 2700 dólares por cabeça, e a Finlândia, com 7,4 % do PIB mas 2100 dólares gastos por cada finlandês. Quer dizer, anunciar que o nosso país é um gastador desastroso com a saúde é uma falácia, já que na realidade é o que gasta menos.
Mas quando se gasta dinheiro, há que avaliar a sua rentabilidade. Perguntemo-nos portanto: o que se tem obtido entre nós com esses 1700 dólares por cabeça? Um Serviço Nacional de Saúde aberto a todos, podendo cada português recorrer aos Centros de Saúde ou aos Hospitais e ser atendido de acordo com as suas queixas clínicas sem ter de provar que tem dinheiro para pagar; medicamentos comparticipados, alguns a 100 %; e hospitais bem equipados, com médicos com boa preparação de base, em boas Escolas Médicas, com formação pós-graduada contínua adequada e avaliada periodicamente, escalonados nos locais de trabalho pela sua diferenciação profissional e provas dadas. Um Serviço com alguns problemas de funcionamento, mas nada impossível de ser corrigido.
No último relatório da OMS sobre sistemas de saúde dos vários países do mundo, o Serviço Nacional de Saúde português surge classificado em 12º lugar no desempenho global. É o 5º da Europa comunitária, e bem à frente dos EUA, país que ocupa apenas o 37º lugar. Em que outra actividade é Portugal melhor do que 12º no mundo, a contar da frente? No futebol, no hóquei, e…
Portanto os gastos com a saúde têm valido a pena. Mas é evidente que o aumento do custo da saúde nos deve preocupar a todos. Em grande parte ele é devido a um avanço científico e tecnológico nunca antes observado, e que nos deverá fazer sentir felizes a todos – enquanto possíveis doentes – por se dar na nossa época. E também agrada aos médicos, claro, que assim se realizam mais profundamente do ponto de vista profissional, deitando-se mais vezes felizes por terem ajudado nesse dia um doente que estaria há uns anos sem qualquer solução.
Esses gastos são, por esse lado, bem-vindos. Com certeza que devem ser racionalizados, mas um país socialmente evoluído não poderá invocar falta de dinheiro para deixar de ter uma medicina de boa qualidade, não poderá pretender ser avançado e ao mesmo tempo deixar-se atrasar do ponto de vista sanitário. É lícito procurar conter as despesas com a saúde, mas é preciso manter a qualidade do atendimento aos doentes. E para isso é crucial manter a qualidade profissional dos médicos, e dos outros profissionais que ajudam a tratar os doentes, o que é directamente dependente da organização médico-hospitalar nacional. Diminuir os gastos diminuindo a qualidade não é habilidade nenhuma.
Nos Estados Unidos da América existe também a preocupação de conter o custo da saúde. Cortar a qualidade médica do atendimento não lhes parece ser a solução, embora algumas medidas entretanto tomadas tenham tido esse efeito, logo severamente criticado. Como foi a de diminuir drasticamente nalguns hospitais o número de enfermeiros, substituindo-os por pessoal menos qualificado, e por isso mais barato.
Analisando o problema, especialistas norteamericanos chegaram à conclusão que cerca de 40% do orçamento para a saúde vai para a área administrativa, não contemplando portanto o binómio médico-doente. Pelo contrário, grande parte do trabalho dos administrativos e administradores é simplesmente procurarem reduzir o que os médicos gastam com os doentes. E calcularam que cortando para metade esses custos administrativos, sem relação directa com o atendimento aos doentes, poderiam pagar o acesso médico a todos os que naquele país não o têm neste momento estabelecido por falta de meios financeiros. Interessante, não é? E por cá?... Mas uma decisão dessas tem-se mostrado difícil, porque lá, como noutros países, quem a deveria tomar move-se precisamente naquela área.
Outro modo de reduzir os custos, dizem os americanos, seria diminuir o número de hospitais e outros centros de atendimento a doentes. Na verdade, não são os salários do pessoal de saúde que justificam os custos crescentes, mas sim, para além do preço duma máquina burocrática e informática sempre a aumentar, o consumo pelos doentes de medidas diagnósticas e terapêuticas cada vez mais eficazes mas também mais caras. Se não houver acesso fácil e rápido dos pacientes aos cuidados de saúde, pode calcular-se que muitos acabarão por desistir, porque ficaram entretanto sem queixas, ou porque recorreram a outras medidas quaisquer, não comparticipadas pelo sistema. É claro que haverá também aqueles para quem o atraso na ida ao médico correu mal…
No economicismo da saúde o preço da saúde é limitativo, e há que fazer contas. Mas para o médico, um doente seu que morre tem um valor absoluto. Muito oportunamente, na conjuntura actual, o nosso Bastonário alertou já para o facto de ser uma falta grave do ponto de vista da ética profissional deixar de se tratar um único doente que seja, rico ou pobre, citadino ou rural, duma cidade grande ou duma aldeia pequena, para poupar dinheiro.
Se se quiser manter o acesso fácil e universal de todos os portugueses à saúde, como é preceituado constitucionalmente – já que o tendencialmente gratuito parece ter ficado definitivamente esquecido – não é fechando hospitais e centros de saúde que se conseguirá
Em resumo, há que ter preocupação com os custos da saúde, mas há formas apropriadas de os conter, visando sempre manter a qualidade dos cuidados de saúde prestados. Que em Portugal não desmerecem, até ao momento, da sua qualidade de país europeu evoluído. Com gastos reduzidos quando comparados com o resto da Europa. Mas o nosso Governo quer poupar dinheiro com a saúde, e nesse sentido tem vindo a tomar medidas que afectam sobretudo o atendimento aos doentes. Sem que tenha com isso conseguido travar o crescimento das despesas, eventualmente pela sobrecarga administrativa e burocrática que essas mesmas medidas acarretaram. Em termos clínicos não parece possível poupar mais sem reduzir a qualidade para baixo dos níveis admissíveis.
Aguardemos o que o Ministério da Saúde vai fazer. Seja o que for, o que conta é o resultado, e haverá sempre que o comparar com o que temos actualmente. Sobretudo em termos de atendimento aos doentes, o qual é directamente resultante das condições de trabalho e da formação contínua dos médicos deste país. Que há que preservar, a bem do que é inestimável em qualquer povo: a Saúde. Se o Ministério tiver como desiderato final e único reduzir os gastos com a saúde, deverá ter como objectivo a Libéria, com gastos na Saúde de 4,7 % do PIB e 17 dólares por cabeça. Saúde mais barata não há. Será que a vamos atingir?...  
2006, in Farpas pela nossa Saúde, 2009

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