ORIENTADORES DE FORMAÇÃO - UMA APOSTA GANHA
1992. Criação pelo Ministério
da Saúde da figura do "orientador de formação", por proposta do Conselho Nacional
dos Internatos Médicos (CNIM) ao Departamento de Recursos Humanos da Saúde. A
par da expectativa interessada e construtiva dos internos e da maioria dos
especialistas, muitos deles responsáveis pela formação pós-graduação, houve
nalguns círculos de médicos uma atitude de descrença acompanhada da tentativa
de destruir essa figura logo à nascença. Aparentemente não conseguiram tais
colegas antever as funções desse orientador de formação criado por lei, e a sua
importância na preparação dos internos, ou então, por razões várias que não é altura
para tentar descortinar, não as quiseram ver. Não há realmente pior cego do que
o que não quer ver.
Para os que a priori
rejeitavam o orientador de formação proposto pelo CNIM, o ridículo seria o
grande óbice para a sua existência, a par da sua completa inutilidade e até do
perigo que poderia representar. Diziam eles que se queria comparar os internos
de especialidade a crianças de jardim-escola, acompanhadas de perto pelos educadores,
e que os especialistas teriam de suportar a presença constante dos seus orientandos.
Mais: os internos do complementar eram perfeitamente capazes de aprender
sozinhos, o que era preciso era que o Serviço onde estagiavam tivesse uma boa
casuística; e o facto de serem postos a trabalhar exclusivamente com um
especialista dar-lhes-ia uma visão muito restrita e truncada da matéria da sua
especialidade.
Esta era a parte negativa apontada,
vejamos o que era pretendido e o que aconteceu.
A regulamentação dos
internatos médicos levada a cabo em Portugal forneceu aos internos portugueses
um conjunto de direitos e deveres nessa fase da sua vida profissional. Esses
direitos e deveres estão directa e intimamente relacionados com o programa de
formação estabelecido para a sua especialidade, programa em que se definem os
objectivos didácticos a atingir, quer do ponto de vista dos actos
médico-cirúrgicos a praticar quer das atitudes e dos conhecimentos profissionais
a adquirir. Os internos devem procurar atingir esses objectivos no decurso do
seu período de formação, e têm o direito de exigir que na Instituição onde
foram colocados lhes sejam criadas condições para que isso aconteça.
O programa de formação não é,
obviamente, exaustivo, e deve servir antes como linha orientadora, indicando o
que os internos devem minimamente ter feito e saber antes de poderem iniciar a
sua actividade como especialistas. Por isso é também chamado currículo mínimo,
contribuindo como tal para a definição quantitativa e qualitativa da idoneidade
dos Serviços para ministrarem internatos de especialidade. Mas entre esse
mínimo que é exigido e a melhor preparação pós-graduação possível vai uma
distância que compete ao interno procurar percorrer, com a ajuda da Instituição
e dos que, mais diferenciados, com ele nela trabalham.
No internato geral pretende-se
que os jovens médicos adquiram as atitudes e o comportamento próprios dum
profissional médico, no internato complementar quer-se que se formem como
especialistas, entrando aqui a ajuda dos seus orientadores de formação. Mas
note-se que estes não são os equivalentes modernos dos mestres da antiga Grécia
na medicina hipocrática, em que os candidatos a médico aprendiam acompanhando
os médicos, vendo como procediam, fazendo como eles faziam, ouvindo as suas
explicações e o relato dos casos que tinham tido. Esse papel é, nos nossos
dias, desempenhado por nós todos, quando médicos mais velhos e mais
diferenciados com quem cada interno lida diariamente e a quem insensivelmente
imita na sua actividade profissional, pelo menos até adquirir ele próprio uma
capacidade crítica independente. Todos nos devemos, pois, lembrar
permanentemente disto, e estar conscientes que o nosso comportamento e o nosso
desempenho estão a servir de modelo para alguém menos diferenciado.
Mas para que servem então os
orientadores de formação? A resposta é simples: para orientar a formação.
Orientar significa encaminhar,
nortear. A formação médica pós-graduada é seguramente agora muito mais difícil
e complicada do que em tempos idos, embora os meios para a sua obtenção sejam
cada vez mais sofisticados e poderosos. O orientador de formação foi antes de
mais delineado como um profissional com especialização na área de formação do
interno, e capaz por isso de lhe transmitir algumas das suas experiências,
aconselhá-lo quanto ao modo de melhor utilizar os recursos ao seu dispor,
programar com ele e com o Director do Serviço os estágios a efectuar e a
respectiva cronologia, animá-lo e ensiná-lo nos seus momentos de maior desânimo
e de maior dificuldade. Momentos por que eventualmente já passou e que
compreende perfeitamente. Um outro aspecto é a colaboração na produção de
trabalhos científicos, de investigação, de revisão de casos clínicos ou de
bibliografia, a apresentar nas reuniões do Serviço ou externamente, colaboração
que servirá ao fim e ao cabo como um estímulo para os dois, orientador e
orientando. A indicação de livros e de revistas técnico-científicos mais
aconselhados é algo que se espera de quem orienta a formação profissional de
alguém, bem como a escolha dos melhores locais para os estágios parcelares
extra-Serviço, podendo eventualmente, de acordo com o Director de Serviço,
estabelecer os contactos pessoais necessários.
Uma preocupação constante do
orientador de formação deve ser a avaliação dos progressos e das dificuldades
revelados pelo interno, avaliação feita pessoalmente ou por troca de impressões
com os especialistas com quem ele tenha trabalhado directamente. Esta avaliação
contínua é fundamental para o aproveitamento do internato, isto é, para
corrigir atempadamente erros ou insuficiências na formação. Periodicamente há
avaliações formais, de conhecimentos e do currículo entretanto conseguido, em
que o orientador também participa, tal como na avaliação final, contribuindo assim
para um melhor conhecimento do interno e, portanto, para uma classificação o
mais correcta possível.
É este o papel previsto para o
orientador de formação, e há que admitir que duma maneira geral ele tem sido
adequadamente desempenhado pelos colegas a quem foi distribuído. Como em todas
as áreas da actividade humana, haverá com certeza uns melhores do que outros,
uns com mais jeito, ou mais capacidade, ou mais vontade para desempenhar as
suas funções. Mas isso não põe seguramente em causa as próprias funções, e a
sua importância. E a verdade é que a figura do orientador de formação se
instalou e faz parte do dia a dia dos nossos internatos. Para além do seu
efeito benéfico na própria formação, ele veio contribuir para um maior
entrosamento na equipa médica de cada Serviço, contribuindo imperceptivelmente
para desenvolver um maior espírito de entreajuda e de colaboração, dentro e
fora do Serviço. E ousarei dizer que muitos trabalhos científicos, alguns
eventualmente de grande qualidade, tiveram na sua base uma orientação de
formação empenhada, responsável, e até entusiasta. Geradora também de grandes
amizades para toda a vida.
Em conclusão, a aposta do CNIM
nos orientadores de formação foi manifestamente ganha, pesem embora alguns
desinteresses ou incapacidades individuais pontuais. As dúvidas que sobre eles
foram de início lançadas, procurando sobretudo ridicularizá-los, não colheram,
e a prática se encarregou de as dissipar. Há é que os estimular, dignificar e
recompensar, até mesmo, por que não, monetariamente.
Para terminar, gostaria de
citar a Comissão Consultiva para a Formação Médica, órgão consultivo máximo da
União Europeia nesta matéria, e que recomenda expressamente a existência de
orientadores de formação nos internatos médicos. Será que essa Comissão tem
razão?! Em Portugal já os temos há 8 anos e eu acho que sim, acho que tem
razão.
In Revista do CHC
(Centro Hospitalar de Coimbra), 2000
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