sexta-feira, 21 de agosto de 2020

EM COIMBRA, DOS DOIS LADOS DO MONDEGO

As cidades crescem pela periferia, não pelo centro. E quem não sai do centro arrisca-se a perder a real perspectiva da cidade, deixando de a conhecer. E quem não conhece uma cidade não pode fazer nada por ela.
À medida que as cidades crescem, o seu centro, dia a dia mais velho e que outrora acumulava tudo, torna-se cada vez de mais difícil acesso, quer de dentro quer de fora. Há, por isso, que descongestionar a cidade, retirando-lhe toda a pressão na sua parte central, de modo a que ela possa continuar a ser habitada com qualidade, sem poluição ambiental, quer dos gases emanados pelos motores quer do ruído, e com possibilidade de nela se circular com facilidade, a pé ou de carro.
Coimbra não é excepção. A partir do burgo inicial, no lado direito do Mondego, foi-se espraiando, alargando, passou para a outra margem, englobando e ultrapassando largamente os conventos outrora na sua periferia do lado de lá do rio. A própria Universidade, ao crescer fê-lo para fora de muros do burgo, com a construção dos colégios no que foi depois chamado Rua da Sofia. Não fôra a cedência que o rei lhe fez do paço real, teria provavelmente crescido por essa periferia, sem o fazer no centro da cidade, com a destruição da alta coimbrã. E se não tivesse ficado acantonada nessa alta destruída e ocupada, sem possibilidade de crescer, poderíamos ter hoje, para além do paço das Escolas, um verdadeiro campus universitário (do lado direito ou esquerdo do Mondego…), e não vários polos e edifícios espalhados pela cidade.
Na Saúde, Coimbra teve a sorte de ter tido há 60 anos um homem de iniciativa e visão chamado Bissaya Barreto, que conseguiu que a assistência médica hospitalar na cidade também se espraiasse para fora do único hospital então existente, o Hospital da Universidade, no centro urbano, e para a periferia da cidade, para a outra margem, numa localização de fácil acesso, quer de dentro quer de fora da cidade, e onde tivesse espaço para crescer, sem ter de destruir nada e sem provocar um caos urbanístico e rodoviário. Foi o segundo Hospital de Coimbra, que ele chamou Hospital da Cidade. Integrado no Centro Hospitalar de Coimbra, juntamente com uma Maternidade (Bissaya Barreto) e o Hospital Pediátrico. Coimbra passou a ter, portanto, dois Hospitais Gerais Centrais.
Na hierarquização de recursos humanos e tecnológicos, os Hospitais Centrais são o topo, referência final e fim de linha para os outros, ao mesmo tempo que acolhem todos os doentes que a eles se queiram dirigir directamente. Está calculado que cada milhão de utentes necessita de ter acesso a um hospital desses. A Região Centro tem dois milhões e trezentos mil habitantes, deverá ter pelo menos dois Hospitais Gerais Centrais. E durante um período de 40 anos teve-os, em Coimbra, um de cada lado do rio, trabalhando paralelamente, fornecendo serviços de muita qualidade, complementarmente, com Serviços únicos em patologias ou situações mais raras, ou como possibilidade de segunda opinião na grande maioria, numa base de emulação e competitividade que levou a um desenvolvimento nunca visto na Saúde da cidade e da Região.
Coimbra, maior cidade da Região Centro, sede da segunda maior Universidade do país, com uma Faculdade de Medicina grande, múltiplas Escolas e Institutos de Investigação e, por isso, cheia de profissionais, professores, alunos, formadores, formandos, internos, doutorandos, investigadores, na área da Saúde, bem como, naturalmente, muitos doentes. Com todas as condições para dar o mais eficaz e mais completo uso a tudo isso, quer em termos de assistência médica, quer no ensino e na investigação. Com dois hospitais centrais na Região Centro centralizados nela, como no Norte o estão no Porto e no Sul em Lisboa.  Foi um período em que foi capital da Saúde, e em que tudo correu bem nesse campo.
Em 2010 a Comissão Europeia sugeriu a redução do número de hospitais em Portugal, por razões economicistas: o que gasta dinheiro na saúde é tratar doentes, e menos serão tratados se tiverem dificuldade de acesso aos cuidados de saúde, por eles existirem em pequena quantidade ou longe. Nessa conformidade, uns foram fechados e outros fundidos. Em 2011, sem qualquer estudo prévio ou necessidade sentida, foram fundidos o Centro Hospitalar de Coimbra e o Hospital da Universidade de Coimbra, no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.
Sem plano definido para o futuro, porque formado ad hoc e não porque houvesse alguma vantagem avaliada como tal, o caminho tomado na sua gestão foi a progressiva concentração de todos os serviços e valências no HUC, a pouco e pouco se eliminando “o outro“ Hospital Geral Central, o Hospital dos Covões. Este foi sendo esvaziado de recursos humanos e de especialidades, mais os respectivos doentes, tudo acumulado no HUC, deixando praticamente de poder funcionar como hospital e perturbando severamente o funcionamento do outro. Felizmente, a tecnologia lá instalada foi deixada ainda ficar, o que permitiu que na pandemia de covid-19 pudesse ser o hospital de referência em Coimbra para o seu tratamento, e por isso sem haver necessidade de tendas, hospitais de campanha ou camas em pavilhões desportivos, como aconteceu noutras cidades do nosso país.
Durante muitos anos os dois Hospitais Gerais Centrais de Coimbra conviveram entre si e com quatro clínicas privadas, sem sobressalto. Mas, mal foi iniciado o caminho de desactivação progressiva do Hospital dos Covões, surgiram mais duas clínicas, dois hospitais privados, e o crescimento de actividade destes tem acompanhado o decréscimo na do Hospital. Parece assistir-se a uma verdadeira transferência dum hospital público para dois hospitais privados, que só foi interrompida pela covid-19, tratada nos Covões e de que os privados se protegeram, praticamente encerrando portas, “para furtarem os doentes a esse contágio”.
Resumindo, ao fim de nove anos de fusão, para a qual não havia nenhuma indicação técnica, não foi encontrada qualquer vantagem, nem económica nem de ganhos em saúde, na sua execução. Pelo contrário, a acumulação de profissionais e de doentes num dos dois hospitais públicos, com progressivo encerramento do outro, teve mau resultado para ambos! Com horas de espera por atendimento na Urgência, salas de espera sem condições, com doentes em pé, ao frio ou ao sol, ou metidos em contentores nos parques de estacionamento sem lugar para estacionar, superlotação de doentes, taxas de infecção hospitalar que levaram já ao encerramento de Serviços, listas de espera imensas e cada vez maiores, para consultas, exames e tratamentos, até de doentes oncológicos, entregues para resolução e pagos aos hospitais privados que, na verdade, vivem disso, este é o quadro dum Hospital encravado na cidade no meio do trânsito e com filas enormes de acesso rodoviário. E que não foi sempre assim.
A actividade clínica privada é muito respeitável, e é útil que exista, mas num país que preza tanto uma das suas maiores conquistas, o Serviço Nacional de Saúde, não se pode substituir a esse serviço público! Todos os cidadãos têm direito à saúde no SNS, em tempo útil, e não obrigatoriamente postos esquecidamente em listas de espera enviadas para fora dos hospitais públicos a que se tiram meios para tratar os doentes! O acesso à medicina privada tem de ser voluntário e não obrigatório por cuidados de saúde públicos inexistentes ou de má qualidade, ou com tempos de espera inaceitáveis! A medicina privada tem de ser complementar da pública, não no sentido de se fecharem hospitais públicos para se abrirem privados, e não para uns tratarem umas doenças mais simples ou mais baratas e outros as mais complicadas e que fiquem mais caro, mas complementar no sentido de possibilidade de segunda opinião, ou de escolha de médicos diferentes, ou de outra qualidade de assistência. Complementar como deve ser entre hospitais públicos. Porque o monopólio é sempre gerador de maus resultados, mais tarde ou mais cedo. A pluralidade é o motor do progresso, é o que leva a poder-se seleccionar, estimular e aproveitar os melhores.
Quer dizer, um hospital público não pode ser substituído por privados. Até pela formação profissional, quer pré-graduada quer pós-graduada, que é feita no público. Eliminar um hospital público em Coimbra leva a menos lugares para formação especializada na cidade e, portanto, no país. E menos lugares para especialistas se fixarem em Coimbra. E menos lugares para aulas práticas e estágios de alunos de medicina, que entram na Faculdade de Medicina às quatro e cinco centenas por ano, e vão entrar ainda mais no ano que vem. O convénio já feito entre a direcção da Faculdade e um dos dois hospitais privados da cidade poderá substituir as aulas e estágios naquele hospital, onde se realizavam até agora?!...
Em conclusão, o problema que se criou em Coimbra na sua assistência médica hospitalar, com necessária repercussão na Região Centro, e que trouxe o povo às ruas, já por três vezes, tem a sua causa bem identificada: a fusão de hospitais feita há nove anos.  A fusão que, na realidade, fechou um dos dois Hospitais Gerais Centrais. A fusão que nunca se demonstrou ser necessária e que mostrou ser prejudicial. E que, por isso, tem de ser revertida. Por quem seja responsável pela política de saúde hospitalar neste país. E por quem seja responsável pela Saúde em Coimbra.
In Revista Saúde, Campeão das Provincias, Agosto, 2020

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