FORMAÇÃO
PÓS-GRADUADA: EM QUE PONTO ESTAMOS?
A política de saúde nacional é da responsabilidade de
quem nos governa, num sistema democrático legitimado por eleições. Concorde-se
ou não se concorde com ela, temos de admitir que foi o que a maioria escolheu,
pelo menos para algum tempo, e é com ela que teremos de viver nesse tempo. Mas
nunca se poderá, por certo, entender que o que estava bem passe a estar mal, ou
que o que parecia planeado e exequível ao longo dos anos se torne problemático
e sem futuro perceptível. E falamos aqui de situações que devem ser
independentes de quaisquer opções políticas vigentes, como a saúde, o bem-estar
das pessoas, o direito à justiça e à educação. Aquilo que o Estado, enquanto
tal, a nossa organização colectiva, para que todos nós contribuímos e que
defendemos, até com a nossa vida se preciso for, nos deve providenciar a todos,
da maneira mais igual possível em termos de necessidades mínimas. Deixando,
para além disso, cada um fazer da sua vida o que conseguir, na sua iniciativa
pessoal dentro das regras comuns.
Ao longo de mais de trinta e cinco anos, e passando
por muitos governos mais ou menos socialistas democráticos e social-democratas,
a Saúde foi um problema resolvido
Há alguns anos um ministro da Saúde introduziu
mudanças, administrativas e de gestão, que foram depois continuadas por outros,
com o fim declarado de tornar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) sustentável no
futuro. Que é agora. Nos últimos três anos o défice desse ministério duplicou,
mas o que mais evidente se tornou foi a extinção, por inoperatividade e falta
de objectivos, das carreiras médicas. E elas eram uma parte estruturante do
SNS, garante duma autoavaliação dos profissionais, com progressão profissional
e salarial e estímulo para fazer mais e melhor. E foi através delas que se
conseguiram colocar em hospitais do interior, até aí praticamente abandonados a
alguns autóctones desejosos de voltar à terra natal, muitos especialistas bem
preparados e com vontade de praticar a sua boa medicina, em prol dos doentes dessas
regiões.
Essa cobertura sanitária do país teve outra grande
virtude: foi a extensão dos internatos médicos a todos os hospitais que entretanto
ganharam, por via dela, idoneidade para os administrar. E os jovens internos lá
colocados foram ficando depois de formados, estabelecendo-se desse modo um
esquema sustentável e barato de manter
boa medicina na periferia do país, sem ter de se concentrar tudo nos
grandes centros, com todos os inconvenientes que desde sempre se apontaram a
esta prática.
Os internatos médicos assentam em Serviços considerados
idóneos para os fornecer, mercê do preenchimento de vários itens, estabelecidos
e avaliados pelas comissões de internato, nacional e regionais, estatais, e os
colégios das várias especialidades, da Ordem dos Médicos. Implicam eles
condições físicas e de trabalho, de organização, e de pessoal, englobando estas
últimas número, formação, experiência e diferenciação dos profissionais que lá
trabalham. Cada interno tem de ter um programa individual de preparação
estabelecido pelo seu director de Serviço e responsável pela sua formação,
acompanhada esta por um especialista que o irá orientar na aquisição dos
conhecimentos e habilitações que o transformarão finalmente também num
especialista.
Ora, neste momento, as carreiras perderam eficácia,
não sendo sequer consideradas nas nomeações para lugares directivos feitas nos
hospitais, e a maioria dos contratados, e os a contratar, estão fora delas.
Coloca-se por isso um problema crucial: quem é responsável pela formação dos
internos?
Como se avalia a qualidade de cada um para ensinar ou
orientar outros? Por que dados objectivos se deve reger a escolha de um
director de serviço responsável último pela formação de um ou de muitos
internos? Teremos de deixar essa escolha ao “achismo” de alguém ocasionalmente
colocado na posição de “achar”? E com os contratos precários de trabalho que se
anunciam, sobretudo quando mão de obra fornecida por uma agência de “temp jobs” (em português, “trabalho
temporário”), quem poderá ser orientador e formador dum interno? Quer dizer,
que condições, em termos de recursos humanos, devem ser exigidas a um Serviço
para ter idoneidade para ter internos? Ou melhor, haverá muitos Serviços que
possam continuar a ter idoneidade para ter internos?
É esta a situação actual e a previsível a muito curto
prazo. Foi todo um paradigma de estruturação profissional hospitalar que foi
modificado, atingindo a formação contínua e pós-graduada, intencionalmente ou
se calhar nem tanto, sendo apenas um efeito colateral até indesejado, apenas
mais um dos maus resultados obtidos. A causa, administrativa, é conhecida, e
bem anterior às dificuldades financeiras actuais. Mas foi uma opção claramente
política, tomada e depois seguida pelos governos seguintes, até agora, e essa
responsabilidade, como se disse, é de quem governa. Aos técnicos compete chamar
a atenção para as consequências negativas das decisões políticas, para que os governantes
possam ser confrontados com elas e tomar as atitudes que entenderem mais
adequadas e que melhor sirvam o país, já que serão sempre os imputados
responsáveis.
Para além disso, haverá, entretanto, que procurarmos
todos colmatar as dificuldades encontradas e que se prevê que se agravem,
nomeadamente neste campo da formação. Aqui os colégios da OM, nomeadamente o nosso,
de Cirurgia Geral, deverão fazer um esforço muito grande de chamada de atenção
e de exigência para que os requisitos para idoneidade sejam respeitados
escrupulosamente, já que o não acontecer isso levará forçosamente a uma quebra
no processo de treino dos nossos jovens especialistas. E esse esforço deverá
também ir no sentido de ajudar à orientação dos internos, à sua preparação
teórica e prática. Mais do que nunca essa intervenção será necessária, ao
prever-se uma diminuição da qualidade de ensino de muitos Serviços. A
colaboração de organizações científicas como a Sociedade Portuguesa de Cirurgia
e os seus Capítulos, e outras Sociedades, deverá ser procurada e estimulada,
com a realização de cursos teóricos e práticos, congressos, simpósios, onde os
internos possam aprender, apresentar trabalhos, discuti-los, e discutir também
a sua própria actividade profissional.
Vivemos um momento de grande preocupação e de
indefinição a que teremos de responder pela positiva, fazendo o que está certo.
Esperemos que os nossos políticos consigam fazer o mesmo.
In Revista Portuguesa de Cirurgia, Junho 2012
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