sexta-feira, 27 de novembro de 2020

FORMAÇÃO PÓS-GRADUADA: EM QUE PONTO ESTAMOS?

A política de saúde nacional é da responsabilidade de quem nos governa, num sistema democrático legitimado por eleições. Concorde-se ou não se concorde com ela, temos de admitir que foi o que a maioria escolheu, pelo menos para algum tempo, e é com ela que teremos de viver nesse tempo. Mas nunca se poderá, por certo, entender que o que estava bem passe a estar mal, ou que o que parecia planeado e exequível ao longo dos anos se torne problemático e sem futuro perceptível. E falamos aqui de situações que devem ser independentes de quaisquer opções políticas vigentes, como a saúde, o bem-estar das pessoas, o direito à justiça e à educação. Aquilo que o Estado, enquanto tal, a nossa organização colectiva, para que todos nós contribuímos e que defendemos, até com a nossa vida se preciso for, nos deve providenciar a todos, da maneira mais igual possível em termos de necessidades mínimas. Deixando, para além disso, cada um fazer da sua vida o que conseguir, na sua iniciativa pessoal dentro das regras comuns.

Ao longo de mais de trinta e cinco anos, e passando por muitos governos mais ou menos socialistas democráticos e social-democratas, a Saúde foi um problema resolvido em Portugal. Preparação pré-graduada adequada, boa formação pós-graduada, acesso fácil e universal a cuidados de saúde de qualidade, quer especializados quer básicos, em hospitais centrais como em hospitais periféricos e centros de saúde. Não é um quadro cor de rosa agora pintado a posteriori, é o substrato real duma saúde classificada então entre as melhores do mundo, em 5º lugar na Europa comunitária, com o menor gasto per capita de toda ela. Por muito que custe agora a alguns, é este o termo de comparação – algo palpável, possível, que existiu, e há pouco tempo.

Há alguns anos um ministro da Saúde introduziu mudanças, administrativas e de gestão, que foram depois continuadas por outros, com o fim declarado de tornar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) sustentável no futuro. Que é agora. Nos últimos três anos o défice desse ministério duplicou, mas o que mais evidente se tornou foi a extinção, por inoperatividade e falta de objectivos, das carreiras médicas. E elas eram uma parte estruturante do SNS, garante duma autoavaliação dos profissionais, com progressão profissional e salarial e estímulo para fazer mais e melhor. E foi através delas que se conseguiram colocar em hospitais do interior, até aí praticamente abandonados a alguns autóctones desejosos de voltar à terra natal, muitos especialistas bem preparados e com vontade de praticar a sua boa medicina, em prol dos doentes dessas regiões.

Essa cobertura sanitária do país teve outra grande virtude: foi a extensão dos internatos médicos a todos os hospitais que entretanto ganharam, por via dela, idoneidade para os administrar. E os jovens internos lá colocados foram ficando depois de formados, estabelecendo-se desse modo um esquema sustentável e barato de manter  boa medicina na periferia do país, sem ter de se concentrar tudo nos grandes centros, com todos os inconvenientes que desde sempre se apontaram a esta prática.

Os internatos médicos assentam em Serviços considerados idóneos para os fornecer, mercê do preenchimento de vários itens, estabelecidos e avaliados pelas comissões de internato, nacional e regionais, estatais, e os colégios das várias especialidades, da Ordem dos Médicos. Implicam eles condições físicas e de trabalho, de organização, e de pessoal, englobando estas últimas número, formação, experiência e diferenciação dos profissionais que lá trabalham. Cada interno tem de ter um programa individual de preparação estabelecido pelo seu director de Serviço e responsável pela sua formação, acompanhada esta por um especialista que o irá orientar na aquisição dos conhecimentos e habilitações que o transformarão finalmente também num especialista.

Ora, neste momento, as carreiras perderam eficácia, não sendo sequer consideradas nas nomeações para lugares directivos feitas nos hospitais, e a maioria dos contratados, e os a contratar, estão fora delas. Coloca-se por isso um problema crucial: quem é responsável pela formação dos internos?

Como se avalia a qualidade de cada um para ensinar ou orientar outros? Por que dados objectivos se deve reger a escolha de um director de serviço responsável último pela formação de um ou de muitos internos? Teremos de deixar essa escolha ao “achismo” de alguém ocasionalmente colocado na posição de “achar”? E com os contratos precários de trabalho que se anunciam, sobretudo quando mão de obra fornecida por uma agência de “temp jobs” (em português, “trabalho temporário”), quem poderá ser orientador e formador dum interno? Quer dizer, que condições, em termos de recursos humanos, devem ser exigidas a um Serviço para ter idoneidade para ter internos? Ou melhor, haverá muitos Serviços que possam continuar a ter idoneidade para ter internos?

É esta a situação actual e a previsível a muito curto prazo. Foi todo um paradigma de estruturação profissional hospitalar que foi modificado, atingindo a formação contínua e pós-graduada, intencionalmente ou se calhar nem tanto, sendo apenas um efeito colateral até indesejado, apenas mais um dos maus resultados obtidos. A causa, administrativa, é conhecida, e bem anterior às dificuldades financeiras actuais. Mas foi uma opção claramente política, tomada e depois seguida pelos governos seguintes, até agora, e essa responsabilidade, como se disse, é de quem governa. Aos técnicos compete chamar a atenção para as consequências negativas das decisões políticas, para que os governantes possam ser confrontados com elas e tomar as atitudes que entenderem mais adequadas e que melhor sirvam o país, já que serão sempre os imputados responsáveis.

Para além disso, haverá, entretanto, que procurarmos todos colmatar as dificuldades encontradas e que se prevê que se agravem, nomeadamente neste campo da formação. Aqui os colégios da OM, nomeadamente o nosso, de Cirurgia Geral, deverão fazer um esforço muito grande de chamada de atenção e de exigência para que os requisitos para idoneidade sejam respeitados escrupulosamente, já que o não acontecer isso levará forçosamente a uma quebra no processo de treino dos nossos jovens especialistas. E esse esforço deverá também ir no sentido de ajudar à orientação dos internos, à sua preparação teórica e prática. Mais do que nunca essa intervenção será necessária, ao prever-se uma diminuição da qualidade de ensino de muitos Serviços. A colaboração de organizações científicas como a Sociedade Portuguesa de Cirurgia e os seus Capítulos, e outras Sociedades, deverá ser procurada e estimulada, com a realização de cursos teóricos e práticos, congressos, simpósios, onde os internos possam aprender, apresentar trabalhos, discuti-los, e discutir também a sua própria actividade profissional.

Vivemos um momento de grande preocupação e de indefinição a que teremos de responder pela positiva, fazendo o que está certo. Esperemos que os nossos políticos consigam fazer o mesmo.

In Revista Portuguesa de Cirurgia, Junho 2012

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