REFLEXÕES DE UM CIRURGIÃO PASSADOS MAIS DE 30 ANOS
Parte II
Sempre quis ser cirurgião, e realizei esse
desejo. A cirurgia geral que aprendi e tenho praticado tem sofrido, ao longo
destes anos, progressos e outras alterações que talvez o não sejam, e por isso merecem com certeza a reflexão de
nós todos, cirurgiões gerais.
A maior alteração foi, sem dúvida, a
introdução da via endoscópica, seja laparoscópica, toracoscópica, retroperitoneoscópica
ou outra, e a sua relação de dependência com toda a tecnologia a ela
ligada. As intervenções cirúrgicas
realizadas por essa via são exactamente as mesmas que as anteriormente
executadas por via aberta, permitindo, no entanto, reduzir muito o grau do
traumatismo cirúrgico, conseguindo-se uma alta muito mais precoce e um menor
número de complicações, ao mesmo tempo que, nalguns casos, se tem uma visão
significativamente mais precisa do campo operatório. Trabalhando num espaço
fechado criado pela insuflação de gás, ou ajudados pela visão de perto
fornecida pela câmara de videoscopia, vemos o que doutro modo não seria
possível. E, utilizando instrumentos cirúrgicos cada vez mais elaborados, realizamos
por uma abordagem mínima intervenções que, às vezes, através duma incisão extensa
seriam muito mais difíceis e trabalhosas.
Há intervenções na cirurgia geral que são
notavelmente mais fáceis pela via laparoscópica (como, por exemplo, a
colecistectomia, a fundoplicatura gástrica, a apendicectomia), ou
retroperitoneoscópica (como a ressecção suprarrenal), outras executadas com a
mesma facilidade e outras ainda um pouco mais custosas mas lucrando o doente
com o acesso mínimo. Nessas condições, é evidente que é a abordagem endoscópica
que deve ser preferida, sempre que não houver contraindicações gerais ou locais
que a devam afastar.
Pelo menor traumatismo e maior simplicidade de
execução, depois de adquirido o know-how,
a videoscopia veio mesmo permitir reabilitar algumas intervenções a caminho de
serem pouco praticadas ou até abandonadas. É o caso da laqueação de perfurantes
venosas insuficientes nas pernas, em doentes com insuficiência venosa crónica
dos membros inferiores, tratamento com indicações indiscutíveis mas, pela
dificuldade na localização exacta dessas veias, a ser substituído pela sua
ablação transcutânea ecoguiada (por radiofrequência ou escleroterapia), também
ela nada fácil, diga-se em abono da verdade, e que a abordagem cirúrgica
endoscópica subapnevrótica torna muito fácil para o cirurgião, para além de
estar naturalmente integrada na mesma intervenção que lhe vai permitir tratar
as outras veias varicosas. E a simpaticectomia toracocervical, e a lombar. Esta
continua a ser uma última hipótese em doentes com lesões ateroscleróticas isquémicas
não revascularizáveis dos membros inferiores, com possibilidade de 60% de
induzir melhoria clínica significativa sem ser, no entanto, possível prever o
resultado em cada caso; por via endoscópica não é traumática, não é dolorosa,
praticamente não tem complicações, permite a alta poucas horas depois, pode ser
realizada em ambulatório e, feita no internamento do doente isquémico, não
prolonga esse internamento. Passou, por isso, a valer a pena nos casos em que
está indicada.
Curiosamente, a abordagem endoscópica levou
por vezes a alterar os passos nas intervenções, por maior facilidade, e isso
veio demonstrar que algumas regras classicamente mantidas para a sua realização
afinal não deviam existir porque não se justificavam. Duas conclusões a
extrair: é possível praticar a mesma boa cirurgião de modos diversos, que devem
ser escolhidos de acordo com a regra da maior facilidade de execução em cada
caso, e essa escolha é possível para os que detêm a experiência e os recursos técnicos
cirúrgicos necessários.
É, portanto, uma via de acesso que devemos ter
disponível e que deve ser utilizada quando indicada. Quando da sua divulgação
entre nós, no início dos anos 90, apenas alguns centros tinham essa tecnologia,
e só alguns cirurgiões a podiam, portanto, utilizar. Eram cirurgiões
experientes, mas formados na abordagem aberta, pelo que tiveram de adquirir a
postura técnica para vídeoscopia. Muitos conseguiram-no (pela prática e através
de cursos de aprendizagem, primeiro mais básicos, depois mais elaborados,
obtidos no estrangeiro ou dentro de portas, e que se foram disseminando pelo
país), alguns não, tendo sido isso, até, causa declarada ou inconsciente de
algumas reformas antecipadas. Hoje em dia é prática corrente, em muitas
situações muito mais frequente que a via aberta, e o seu ensino já pode ser
feito como anteriormente, pelo trabalho normal: ajudando, fazendo ajudado,
fazendo, depois ensinando. O problema da aprendizagem põe-se hoje na cirurgia
aberta, já que ela é muito menos vezes praticada e, portanto, as possibilidades
de a aprender dessa forma se reduziram.
A evolução da tecnologia também veio permitir
criar um conjunto de possibilidades de ensino da cirurgia, para além do seu
exercício e da velha cirurgia experimental em animais. Há modelos para treino
em cirurgia vídeoassistida e em suturas mecânicas, e há todo um conjunto de
meios audiovisuais que nos podem fazem aprender a operar duma forma semelhante à
dos pilotos de avião a pilotar antes de chegarem ao avião real. É claro que
actualmente é muito mais fácil aprender cirurgia que há umas décadas atrás, com
a variedade ampla de meios de aprendizagem de que dispomos. Sendo certo que a
execução nos doentes tem de fazer parte integrante também dessa aprendizagem,
esta não está tão dependente dela como estava antigamente. O conhecimento da
anatomia, ter noção do conjunto da intervenção a praticar e de cada passo dela
de per si, saber o que se pretende conseguir, as complicações a evitar, o que
fazer para as corrigir, tudo isso se deve aprender antes de operar um doente. Mas
sendo tudo isso muito importante, fundamental e inultrapassável é a clínica,
são as indicações, a escolha e o momento da intervenção, o seguimento do seu
resultado. Devemos continuar sempre a lembrar, e cada vez mais com a explosão
da tecnologia que nos avassala, o aforismo que diz: “Bom cirurgião é o que sabe
operar; melhor o que sabe quando operar; e melhor ainda o que sabe quando não
operar”.
A tecnologia em vídeo aproveitada na vídeocirurgia
teve múltiplas outras aplicações. Vivemos na época dos videojogos, cada vez
mais realistas e sofisticados, e os nosso jovens cirurgiões pertencem à sua
geração. Ao longo da sua juventude adquiriram com entusiasmo e persistência as
habilidades e a visão ligadas à videoscopia, que, naturalmente, aplicam a esse
tipo de abordagem cirúrgica. É mais um exemplo de aplicação translacional de
habilidades e capacidades. O seu exercício pode ser excitante, e nalguns
cirurgiões poderá levar à postura de querer fazer o maior número de pontos numa
operação endoscópica... mesmo que o doente perca o jogo. Há que saber quando desistir,
parar e converter para cirurgia aberta.
Outro aspecto crucial na evolução tecnológica
foi a informatização de todo o processo clínico, e a possibilidade de ele
acompanhar virtualmente o doente para onde ele vá. Muitas instituições em todo
o país já foram capazes de a instalar de modo a, praticamente, fazer
desaparecer o papel, facilitando o estudo, tratamento e seguimento dos doentes.
Mas também aqui é preciso alertar para o perigo de nos focarmos exclusivamente
nas virtudes da comunicação electrónica e nos esquecermos do doente real, da
sua observação, de discutirmos, à sua cabeceira (na enfermaria, na sala de
endoscopia ou de imagiologia), entre nós e com colegas doutras especialidades,
multidisciplinarmente, sinais e sintomas, exames e estratégias, pensando
colectivamente em soluções. Há que reverter a prática de certos hospitais em
que os vários médicos envolvidos no tratamento dos doentes apenas comunicam por
escrito, ainda nos velhos processos em papel ou já nos registos informatizados,
aqui de modo ainda mais fácil por poder ser feita à distância (sem mesmo nunca
verem o doente!).
Em relação com a aprendizagem, hoje em dia
alguns têm a ideia de que “só faz bem quem faz muito”, e que, portanto, para se
fazer bem uma determinada intervenção há que fazê-la o maior número de vezes
possível por unidade de tempo. Ora se é verdade que “a prática contribui para a
perfeição”, alcançá-la não depende só do número de vezes que se repetem os
mesmos gestos, como parece pensarem os que reduzem tudo a números. A rapidez
com que se aprende cirurgia é individual, e está dependente, nomeadamente, para
além das capacidades de cada um, da sua cultura médica e cirúrgica e da sua
experiência prévia e também da concomitante. Naturalmente, um cirurgião que
faça só uma intervenção cirúrgica, para manter a mão terá de a realizar muito
mais vezes do que alguém para quem essa intervenção esteja incluída numa
actividade cirúrgica intensa e variada. O que vai contra a orientação de se
querer que os cirurgiões gerais desde o início da sua carreira se restrinjam a
um determinado tipo de cirurgia, com abandono de todos os outros. Isso será
amputá-los da possibilidade inestimável de adquirirem habilidades e recursos
técnicos provenientes duma prática variada, e que os irão enriquecer
indiscutivelmente como cirurgiões. Será condená-los a ser subespecialistas, e
em cirurgia, também, “quem sabe só duma coisa nem disso sabe”. Para além de que
o aspecto multifacetado dum profissional é sempre uma mais-valia e maior
garantia de emprego. Outra coisa será, e desejável, o cirurgião experiente
tornar-se superespecializado numa determinada matéria.
Se um motorista tirar a carta de pesados e for
colocado de imediato em exclusividade numa carreira de autocarros com dez
quilómetros de extensão, e passar dez anos a percorrê-la, ida e volta, vinte
vezes ao dia, não haverá por certo quem conheça melhor esse percurso, e eu iria
muito satisfeito com ele. Mas não o quereria a conduzir uma camioneta de
excursão de Coimbra à Lousã ou, menos ainda, numa viagem a Paris.
Da cirurgia geral saíram várias especialidades
cirúrgicas, mas isso aconteceu sempre por razões de maior especificidade na
evolução da clínica médica relacionada com determinadas patologias, e em
procedimentos diagnósticos ou terapêuticos específicos que foram surgindo em relação
com essas patologias. Nunca nasceu nenhuma baseada apenas num determinado tipo
de cirurgia, e com a justificação do número de intervenções realizadas por
unidade de tempo. É natural que, num Serviço, determinadas intervenções menos
frequentes sejam realizadas sobretudo por um ou dois cirurgiões, mas não de
forma monopolista, excluindo todos os outros, e sempre enquadrados no conjunto
do Serviço. Doutro modo a massa crítica para esse tipo de cirurgia reduzir-se-á
a um ou dois... E, igualmente mau, o desinteresse forçado de todos os outros
levará a que capacidades individuais possam ficar desaproveitadas, em proveito
de alguns já estabelecidos mas eventualmente com menos capacidade. E o
monopólio, com desaparecimento de competitividade ou emulação, é um factor de
perda de qualidade.
Durante séculos a cirurgia foi de ressecção,
excisando do corpo as partes doentes. Era uma atitude pouco elaborada, pode-se
dizer, apesar de nalguns casos exigir grande maestria e conhecimentos
anatómicos, e por isso os cirurgiões não recebiam da sociedade o mesmo respeito
que os médicos. Era uma cirurgia mutiladora, anatómica, por oposição a uma mais
recente, a que podemos chamar fisiológica: na qual se introduzem alterações na
anatomia com o fim de recuperar uma função fisiológica desaparecida ou
diminuída, ou de conseguir uma modificação no funcionamento do organismo.
Tonou-se possível pelo conhecimento profundo dos mecanismos fisiológicos em
causa, permitindo aos cirurgiões manipular as estruturas anatómicas de modo a
reproduzi-los ou alterá-los. Exemplo disto é o tratamento cirúrgico do refluxo
gastroesofágico e, mais recentemente, a cirurgia da obesidade. A avaliação
pormenorizada e sistemática dos resultados das intervenções bariátricas
permitiu perceber a sua influência directa no equilíbrio da diabetes mellitus
(que não apenas pela redução ponderal), e vai, muito provavelmente, conduzir a
mais conhecimentos na fisiopatologia daquela doença, bem como do nosso sistema
endócrino e de outras perturbações do nosso metabolismo, para além da
fisiologia do controlo do peso corporal. É de prever que num futuro próximo
doenças como a diabetes e outras perturbações endócrinas afectando o
metabolismo possam ser tratadas directamente pelo cirurgião, no que já se chama
de cirurgia metabólica, numa evolução ao arrepio da habitual, que era de
tratamento cirúrgico até haver tratamento médico.
Como reflexão final, é natural que algumas
instituições se dediquem mais a uma determinada patologia, e assim se
transformem em centros de referência, pela sua elevada diferenciação, pelos
meios de que dispõem, e a colaboração directa, multidisciplinar, entre várias
especialidades, pelos resultados conseguidos, pela ajuda e treino fornecidos a
outros centros menos diferenciados, pelos trabalhos publicados e o contributo
para o progresso nessa área. Os centros de referência para uma determinada
cirurgia devem, assim, ganhar o direito a essa designação, e não ser-lhes
outorgada pela benévola simpatia de alguém ou apenas por se restringirem a
praticar essa cirurgia. E também aqui não deve ter lugar o monopólio, afastando
todos os outros centros da cirurgia em causa. Porque o monopólio é, repito,
factor de perda de qualidade: pela falta de emulação e competitividade, pela
falta de oportunidades dadas a mais cirurgiões, por uma reduzida massa crítica
a nível nacional, com apenas um punhado de especialistas a falar sempre do
mesmo assunto da mesma maneira. Outra coisa é ter uma massa crítica maior, com
uma hierarquização de competências e meios, permitindo tratar casos simples em
centros menos diferenciados e os mais complicados em centros de maior
diferenciação. Aproveitando-se assim toda a capacidade cirúrgica instalada por
todo o território nacional, estimulando os cirurgiões de todo o país a serem
cada vez melhores, tirando o máximo rendimento das condições existentes.
In
Revista Portuguesa de Cirurgia, Março 2015
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