segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

ONDE OS CIRURGIÕES SE ENCONTRAM

Os cirurgiões encontram-se, do ponto de vista profissional, em muitos sítios e em múltiplas situações. E esses encontros são fundamentais para o exercício da sua especialidade, que é como quem diz, para o tratamento dos doentes que a eles acorrem ou que lhes são confiados. Ninguém pode ter a veleidade – seja por sobranceria, por falta de tempo ou outra razão qualquer – de querer permanecer isolado, ou barricado no seu pequeno grupo, e ainda assim tratar os seus doentes da melhor maneira possível, isto é, tratá-los acompanhando toda a evolução que se vai passando na medicina. Quer dizer, não pode ignorar as experiências doutros e deve querer deles, ou através deles, tirar ensinamentos e obter os recursos cirúrgicos que no dia a dia, ou um dia, lhe possam ser tão úteis que justifiquem até salvar vidas, ou a vida dum só paciente que seja.

O trabalho em equipa é fundamental, e essa é uma forma de encontro. Diário, nas reuniões de sector, nas reuniões de serviço. Onde os mais experientes ensinem os mais novos, estes possam colocar dúvidas e ter opiniões, onde todos possam aprender uns com os outros. Projectos apresentados e discutidos (sejam mais gerais ou mais específicos), resultados avaliados, eventuais correcções planeadas. Que ninguém fique de fora, isento de aprender, impedido de sugerir, porque às vezes quem está mais longe dum determinado quadro, ou o vê menos vezes, consegue detectar alguns pormenores que quem o vê de muito perto e fixamente durante muito tempo deixou de perceber.

Os cirurgiões encontram-se também em cursos teóricos ou práticos focados num determinado assunto. E encontram-se em reuniões científicas de maior dimensão, simpósios, congressos, promovidos por serviços ou por outros grupos maiores ou menores de colegas associados entre si. Para além do que se ouve, se ensina e se aprende nas palestras e mesas redondas dessas reuniões, é usual dizer-se que se calhar uma das suas partes mais eficazes e importantes é o que se fala e se discute em termos médicos nos seus corredores. É aí outro ponto de encontro muito especial dos cirurgiões.

Não poucas vezes nas salas dos congressos se ouve sobretudo “contar vantagem”, fazer afirmações que se parecem muito menos com a verdade do que o rigor científico exigiria, dizer mais o que se gostaria que tivesse acontecido do que o que realmente aconteceu, fazer avaliações em causa própria que pecam por demasiado optimistas. Todos sabemos isso, e há que lhe estar com atenção, mas com certeza que, e apesar dessa realidade, esses encontros de cirurgiões são fundamentais para o nosso próprio progresso. Mas é verdade também que fora das salas de sessões, nos corredores e no bar, no espaço dos posters electrónicos, sempre disponíveis, é que muita discussão é feita, muitos resultados cotejados, alguns projectos imaginados. De maneira mais aberta, mais espontânea, sem ser para impressionar ninguém, unidos pelo que leva todos os cirurgiões realmente a encontrar-se: o seu amor pela cirurgia. O gostarem todos de contribuir para ela, e de a praticarem o melhor possível.

No último European Venous Forum, para que fui convidado, discutiu-se, naturalmente, a doença venosa crónica, a insuficiência venosa e as varizes dos membros inferiores, e as suas diferentes modalidades de tratamento, bem como os respectivos resultados. Trata-se duma patologia que, como se sabe, ainda não tem cura mas tem tratamento, podendo os doentes manter a doença sem sintomatologia durante muito tempo, desde que adequadamente tratados. Devo dizer que pouco de novo surgiu, a não ser alguma investigação em curso, mas mesmo essa aparentemente não muito promissora. É sem dúvida, por isso, uma área a precisar do maior empenho e do entusiasmo de todos os que a ela se dedicam. E que interessa transversalmente várias especialidades médicas e cirúrgicas (umas existentes entre nós, outras não): desde a cirurgia vascular e a cirurgia geral à dermatologia, à angiologia, à flebologia, entre outras.

Pois nesse Venous Forum o trabalho que me impressionou mais foi o dum serviço de cirurgia plástica duma universidade de Taiwan (a “nossa” Formosa), a Kohsiun Medical University, liderado pelo Prof. Sin-Daw Lin. Esses colegas excisam veias varicosas subcutâneas por meio dum pequeno corte na pele e dissecção endoscópica da hipoderme circundante, laqueando as varizes e retirando-as em bloco através da incisão cutânea, sem necessitar de qualquer arrancamento e sem hemorragia. É mais uma aplicação de técnica endoscópica para tratamento de varizes, esta com abordagem supra-aponevrótica, enquanto que a laqueação endoscópica de perfurantes insuficientes que o nosso serviço pratica é subaponevrótica, abordando as veias abaixo da aponevrose.

Não conhecíamos a operação deles, e eles não conheciam a que fazemos. Da conversa informal sobre elas resultaram informações técnicas mútuas, com proveito para as duas partes, e o plano de partilhar experiências e resultados neste campo. E como hoje é muito mais fácil aprender seja o que for, logo mostrámos filmes das intervenções, discutindo face às imagens pormenores de cada uma das técnicas, e até o modo de ultrapassar alguns problemas e dificuldades. E é neste aspecto que os cirurgiões também se encontram. No da cirurgia e das técnicas cirúrgicas, no campo dos recursos técnicos que um cirurgião deve ter para aplicar sempre que for necessário.

Não é com certeza a prática mais habitual em Taiwan um cirurgião plástico operar varizes. Mas eis que este grupo conseguiu translacionar skills e know-how da sua área cirúrgica videoassistida mais específica para a patologia varicosa, fazendo investigação, tratando doentes, avaliando resultados (vd. bibliografia respectiva neste número), contribuindo com uma técnica cirúrgica para outros desconhecida, e que a poderão aproveitar se para isso tiverem abertura de espírito e capacidade, desse modo aumentando o seu armamentário cirúrgico para uso especializado.

E é assim que os cirurgiões também se devem encontrar. Não se deve cada um acantonar no seu pequeno mundo, ignorando e mesmo desprezando, senão guerreando, tudo o resto. Todos devem manter o espírito aberto, e procurar aprender da cirurgia e com os cirurgiões que os rodeiam. E o cirurgião geral, no meio de todos os cirurgiões, é seguramente o que tem melhores condições para o fazer. Mesmo que se vá progressivamente focando mais num só tipo de cirurgia, é dele com certeza que se espera a capacidade de abarcar todos os recursos cirúrgicos da sua profissão e fazê-los aplicar quando necessários. Seja onde e quando o forem.

Julho 2017, in Newsletter da Cirurgia C, 2018


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