quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

                                 VAMOS ÀS CARREIRAS – VI*

Terminamos hoje esta série de seis artigos sobre as carreiras médicas. Neles  procurámos elencar o que elas tinham e conseguiram de bom, e mostrar o que as colocou em agonia. E o que o seu desaparecimento previsivelmente arrastará. Procurando ao mesmo tempo mostrar o que há a fazer, e também a não fazer, para eventualmente as ressuscitar. Duma forma positiva, e para que não nos acusem de estarmos entre todos os que se calaram, ou acomodaram ou, pior ainda, se aproveitaram. Façamos uma resenha final.

 A nova lei de gestão hospitalar conduziu acima de tudo a uma “administradorização” dos hospitais, com passagem da gestão clínica para um plano totalmente secundário, perfeitamente subsidiário da gestão administrativa, da contabilidade pura e dura, tornada o centro de tudo. Foi uma mudança radical em instituições que deveriam estar centradas na actividade clínica, desempenhada e gerida pelos médicos, com o contributo directo do pessoal dos laboratórios e de enfermagem. Assistiu-se, por via dessa lei, a um aumento enorme do número de administradores nos hospitais, assumindo eles o papel de capatazes dos médicos. Sem que nada, absolutamente nada, os qualifique para essas funções. Quer dizer, o acessório tornou-se a si próprio central, e secundarizou o que é o âmago imprescindível e nuclear duma empresa para ser um hospital. 

Em termos económico-financeiros as coisas não melhoraram, já vimos. Em França procura-se reduzir custos com a saúde – recordemos que era a melhor da Europa nesse campo (quando Portugal era 6º), mas com uma despesa de 14 % do seu PIB, contra os nossos 10%, do nosso pobre PIB. Para isso eles têm procurado recriar e desenvolver os hospitais públicos, no sentido do que nós tínhamos e ao invés do que temos vindo a fazer. A primeira medida de contenção que tomaram foi reduzir drasticamente as despesas com administradores e administrativos – também ao arrepio do que por cá se tem feito…

Em termos médicos desencadeou-se uma total desierarquização nos serviços hospitalares, com chefes nomeados apenas porque alguém “achou” que sim. Só isso levaria ao colapso das carreiras, assentes na hierarquia profissional conferindo autoridade e responsabilidade. Foi, mais uma vez, a ideia de substituir líderes por capatazes: o resultado está à vista. Toda a prática da medicina hospitalar foi posta em causa, e isso vai-se reflectir na qualidade dos serviços prestados. Que diminuirá ainda mais à medida que a formação for sofrendo, por essa mesma ausência de estruturação baseada nos conhecimentos científicos, na diferenciação técnica, nas provas dadas.

As carreiras soçobraram, os internatos estão em perigo, o Serviço Nacional de Saúde torna-se periclitante. Como já referimos, o grande responsável por isto continua a dizer que faria tudo igual – ainda não se apercebeu do que fez. Um Secretário de Estado diz que não sabe o que vai ser do Serviço Nacional de Saúde – já se começou a aperceber.

O Ministério da Saúde, agora liderado por uma médica, reconhece finalmente que as carreiras médicas estão acabadas mas fazem falta (o que durante muito tempo afirmámos quase sozinhos, criticados até por quem não queria que se falasse sequer nisso). Mas, em vez de aceitar modificar o que veio provocar a derrocada, insiste apenas em tentar remediar os estragos. Será que isso é possível? Ou estar-se-á, também aqui, a trocar o essencial pelo acessório?

Pretende-se que as carreiras sejam baseadas num acordo colectivo de trabalho, dele derivando um contrato colectivo a que só pode aceder quem estiver inscrito no sindicato que subscreveu o acordo. Quer dizer, quem quiser entrar numa carreira terá de estar obrigatoriamente sindicalizado. E no sindicato certo. Isto é, um médico, para além de ter de estar inscrito na Ordem, para poder exercer medicina, passa a ter de ser sócio dum sindicato para poder percorrer a sua carreira profissional.

Uma orientação política na saúde, que pareceu conduzir a uma liberalização nessa área, acabou por redundar na proletarização dos médicos. Tão grande e completa que, para poderem trabalhar integrados numa carreira, terão de estar sindicalizados. Quem não o quiser estar poderá tentar um contrato individual de trabalho, mas sem acesso à carreira.

É isto que parece desenhar-se para o futuro, e que levanta, obviamente, várias dificuldades. Desde logo, e se os sindicatos existentes não se entenderem? Se um fizer um acordo com o Ministério e o outro não? Se a carreira passar a ser tão dependente dum sindicato, que razão impedirá os médicos de se juntarem em sindicatos que melhor defendam os seus interesses na sua área ou modo de trabalho específicos?

O estabelecimento de graus baseados em concursos inter-pares, como os que havia, não levanta dificuldades. Mas o que obrigará cada unidade empresarial hospitalar, que contrata quem quer, do modo que entende, para fazer o que achar melhor, sem quadro fixo, a pagar mais a um médico por ter subido na carreira, ainda por cima para continuar a  fazer o mesmo que fazia antes?

Quem obrigará as empresas-hospital, geridas com independência quase absoluta, por administrações lá colocadas como se fossem donos, a atribuir mais responsabilidade, mais autonomia, funções de chefia e de direcção técnica, aos médicos que forem subindo na sua carreira? É evidente que a lei de gestão aqui em causa teve como um dos seus fins, precisamente, quebrar essa hierarquia de competência, paralela e atentatória das nomeações pelos chamados “bons serviços”. Daí a avaliação SIADAP que se prepara para os médicos, o que, como também desde logo dissemos a quem nos quis ouvir, já se previa após a desagregação das carreiras.

Trata-se de um sistema de classificação que existe para si próprio, que não deriva naturalmente da actividade normal dos trabalhadores. Quer dizer, obriga a que cada um faça o que é bom para a classificação, embora isso não corresponda ao seu trabalho normal. É algo estranho enxertado na actividade clínica do hospital, que consome esforço e tempo a esses trabalhadores e veio obrigar a toda uma burocracia extra – também aqui mais administradores e funcionários administrativos – usada depois por quem rege o hospital do modo que quiser. O que é que isto tem a ver com uma carreira profissional? Nada. Quando ainda por cima os avaliadores são os chefes nomeados “ad hoc” pelas administrações.

É evidente, a nosso ver, que a progressão na carreira tem de ser a base da progressão no hospital, justificando a evolução remuneratória. Os chefes terão de ser os mais graduados, com a autoridade que daí deriva, liderando a equipa com a aceitação de todos, e orientando depois a avaliação do desempenho dos seus colaboradores. Qualquer coisa que não leve a isto não fará reviver as carreiras. Reconhecemos as suas virtualidades e acreditamos que seria possível recriá-las, mas em convivência com o que as matou é que não cremos que possam ter muita saúde e vitalidade. Continuaremos a lutar por elas, com o apoio que temos sentido dos colegas, dizendo frontalmente o que pensamos. Mesmo que isso nos afaste dos que tomam decisões e dos que participam nelas. Mas com a consciência tranquila, e esperança no futuro. 

*Artigo escrito em 2009.

In Farpas pela nossa Saúde, 2009, ed. MinervaCoimbra

                                 VAMOS ÀS CARREIRAS – V*

Outra influência notável que as carreiras médicas tiveram foi nos internatos médicos. Eram duas estruturas que, pode-se dizer, se completavam, imbuídas do mesmo sentido de progressão pela formação, pela aquisição de conhecimentos, pelo trabalho feito, tudo avaliado periodicamente e conferindo cada vez mais autonomia e responsabilidade.

Os internatos, as suas regras e programas, os orientadores, os responsáveis pela formação, tudo isso assentava nas carreiras, e vai sobrevivendo porque, pelo menos teoricamente, elas se mantêm. Mas à medida que os mais velhos forem saindo - e estão a sair de forma acelerada e prematura – corre o risco de rapidamente estiolar e perder valor e sentido.

Já há sinais claros dessa tendência, para quem os quiser ver. Um dos pontos altos no começo duma carreira era quando pela primeira vez um especialista se via designado para integrar um júri de exame final de internato. Não só isso traduzia o reconhecimento pelos seus pares de que estava em condições de avaliar outros, àquele nível, como era um factor de enriquecimento curricular na sua vida profissional. Pois agora há jovens especialistas que, pura e simplesmente, recusam desempenhar essas funções. Recusam interromper o seu trabalho diário hospitalar, deslocar-se a outro hospital, “perder tempo” a examinar candidatos a especialistas na sua área. E, vendo bem, não terão razão? Vejamos: não estão integrados em nenhuma carreira, são contratados para fazer um determinado trabalho clínico, ganham em grande medida à peça ou à hora, quantos mais doentes tratarem mais bem vistos serão por quem dirige o hospital, não precisam dum currículo diferente desse para poderem ser nomeados por esses dirigentes para lugares de responsabilidade, até mesmo directores de serviço ou de departamento. É assim ou não é? Poderá achar-se incorrecta a atitude daqueles colegas?!   

A preocupação com a aprendizagem e o ensino era uma constante comum aos internatos e às carreiras, enformados, na realidade, à volta disso, conduzindo à evolução profissional e à ascensão a funções e lugares cada vez de maior importância, responsabilidade e poder e obrigação de decisão. No início, aliás, o internato era o primeiro grau da carreira. Num dado momento, o Ministério da Saúde retirou os internos da carreira médica, por razões administrativas, e agora retirou todos os médicos, por razões do mesmo tipo. Ficaram apenas os que já estavam integrados nelas, ocupando lugares a extinguir quando vagarem, uma vez que não há novas entradas. Curiosamente, nestas condições os concursos para os graus e lugares vão-se multiplicando nos vários hospitais, numa autêntica girândola de fim de festa. Unicamente porque quem entrou tinha a expectativa e tem por isso o direito de tentar progredir até ao topo.

Os especialistas contratados pelos hospitais EPE não pertencem às carreiras médicas, não podem por isso concorrer nesses concursos nem, por maioria de razão, integrar os respectivos júris. Antes desta nova lei de gestão, a sua entrada na carreira fazia-se no fim do internato, agora não se faz nunca. Pertencem ao colégio da sua especialidade, e é só por isso que podem fazer parte de júris de fim de internato. Já vimos que com razão para grande falta de motivação – a mesma que para o ensino, seguramente.

Também seria legítimo pensar que a desierarquização hospitalar provocada pela lei de gestão EPE iria reflectir-se negativamente na prossecução dos internatos. Vejamos: quem é o responsável máximo pela formação em cada Serviço? O director de serviço, naturalmente. Mas é natural que esse não seja o mais diferenciado no Serviço? Ou, pelo menos, um dos mais diferenciados? Aceite como tal pelos outros? Isso corresponde obviamente a uma desestruturação, que é a maneira melhor de destruir uma estrutura.

A pouca ou nenhuma preocupação evidenciada com a desestruturação na área da formação ressalta desde logo, também, do facto de se nomearem como presidentes de júris finais de internato assistentes hospitalares em júris que integram, para além deles, chefes de serviço. É uma antevisão do futuro imediato: como serão formados, e estruturados, os júris de fim de internato? Com que critérios? Quando não houver necessidade de progredir numa carreira técnica para se ser seja o que for dentro de um hospital? E em qualquer júri?

Ao longo desta série de artigos temos vindo a enumerar as consequências negativas da actual lei de gestão hospitalar nas carreiras médicas. E na formação pós-graduada e no serviço nacional de saúde. A Saúde no nosso país assentava num tripé: carreiras médicas, internatos médicos, Serviço Nacional de Saúde. Com este conjunto conseguiram-se resultados notáveis, num país pequeno e de poucos recursos, pondo-o a ombrear nesta matéria com os melhores, gastando muito menos que eles. Um dia alguém resolveu mudar a parte administrativa, por razões exclusivamente desse foro. Dessa mudança intempestiva – e parece que pouco pensada – resultou a aniquilação de um daqueles pés, as carreiras, carcomido por uma doença (a dita lei de gestão), em vias de se propagar rapidamente aos outros (os internatos e o SNS). Coxo dum pé, o tripé abana e tomba rapidamente. Pretendeu-se, na prática, substituir a gestão clínica por uma gestão preponderantemente administrativa, e disso não se vislumbram quaisquer ganhos, nem sequer administrativos e económico-financeiros. Como consequência directa, apenas um incremento notável da burocracia, acompanhando o aumento galopante do número de administradores nos hospitais e a sua actividade, recompensada, aliás, com aumentos de ordenado e bónus pecuniários.

O responsável principal pelo descalabro diz a quem o convida para dizer que faria tudo da mesma maneira – ainda não se apercebeu. Um dos Secretários de Estado da Saúde afirma que não sabe o que o Serviço Nacional de Saúde virá a ser no futuro – começou a aperceber-se. Os médicos já sabem, os doentes virão rapidamente a saber.

Se algo bem estruturado, tendo passado no teste do tempo, operacional, com um resultado global invejável num país em que tudo o mais anda por baixo quando comparado com o que se passa lá fora, é alterado nalguns aspectos e fica por isso, de repente, desestruturado e cambaleante, seria lógico pensar que haveria de se corrigir o que se fez e que perturbou severamente o conjunto. Quer dizer – e temo-lo dito nas raríssimas vezes que fomos chamados a emitir opinião – seria lógico esperar-se que algo na lei de gestão hospitalar fosse corrigido. Mas não, pretende-se teimosamente enveredar pelo caminho de mudar tudo o resto.

Na verdade, acabou por se entender agora que há necessidade de recuperar o que ficou lesado, nomeadamente as carreiras médicas. Mas, a manterem-se inalteradas as mudanças desestruturantes, afigura-se muito improvável vir-se a obter um novo equilíbrio eficaz e duradouro, isto é, um novo tripé com pés fortes e estáveis. Parece-nos um tratamento unicamente sintomático e não etiológico, quando se conhece a etiologia e se tem cura para ela. Os médicos não actuam assim. Ou não devem.

Carreiras assentes num contrato colectivo de trabalho são a proposta actual. Será possível compatibilizá-las com a gestão EPE? E com a avaliação SIADAP que se anuncia para os médicos? Da próxima vez terminaremos esta série de artigos de opinião sobre o problema das Carreiras Médicas em Portugal em 2009.

*Artigo escrito em 2009.

In Farpas pela nossa Saúde, 2009, ed. MinervaCoimbra 

                                  VAMOS ÀS CARREIRAS - IV*

Todos concordam que as carreiras médicas são necessárias no nosso país, uma necessidade que foi demonstrada ao longo de três dezenas de anos de resultados notáveis em termos de saúde e de formação médica. E o “todos” inclui agora o ministério da saúde – “agora” significando que temos um ministro médico que percebe realmente o que se passa nesta área. Há, portanto, um consenso alargado neste ponto, embora suspeite que alguns dos mais novos ainda não sentiram essa necessidade, lá no fundo aliviados com o que se traduz de início por menos trabalho, menos estudo, menos provas a prestar. E é natural que se procure optar pelo caminho mais fácil; mas compete a todos perceber o que faz falta e que a formação contínua na nossa profissão é fundamental, daí derivando a ascensão a lugares de maior responsabilidade e mais autoridade profissional por parte dos que demonstraram ser mais capazes e estar mais preparados. O que não fará sentido é uns terem o trabalho e outros serem guindados a tais lugares. Se assim for, então é bem verdade que o caminho a escolher pela maioria será, naturalmente e sem se poder criticar, o mais fácil. 

A recriação duma carreira com os mesmos graus que existiam, a que se tem acesso por concursos julgados pelos pares, não me parece de grande dificuldade. Na verdade, ao fim e ao cabo, será suficiente deixar tudo como está no papel nesse aspecto. Onde está o busílis da questão é naquilo que na verdade matou as carreiras, apesar de elas continuarem teoricamente a existir. E que é a lei de gestão hospitalar EPE que, por um lado, impede a entrada de novos profissionais nessas carreiras e, por outro, fez tábua rasa dos graus e categorias ainda existentes.

À luz dessa lei cada hospital contrata quem quiser, quando quiser, para fazerem o que entender ao preço que estipular. Onde é que se encaixa aqui uma carreira? E não oiço o governo querer mudar este estado de coisas.

Pela mesma lei, e pela interpretação que as administrações hospitalares EPE fazem dela, os lugares de direcção, de chefia, de responsabilidade quer na assistência quer no ensino e formação, são distribuídos por quem os administradores “acham”, sem qualquer relação com graus ou categorias. E esta atitude está tão disseminada, diria é tão homogénea no país, que por certo tem algo comum a todos os hospitais a motivá-la. Faz sentido nestas condições falar-se em carreiras? Para além de que os resultados, em termos de assistência e formação, não se afiguram nada bons a médio e muito menos a longo prazo. Não se as carreiras tiverem a importância fundamental que se lhes atribui. E que leva agora a querer fazê-las renascer.

A salvação invocada baseia-se no contrato colectivo de trabalho. Não em mudar uma lei que destruiu algo que funcionava muito bem, mas sim em alterar o que estava bem para se adaptar de alguma maneira ao que, intencionalmente ou por inépcia, o veio destruir. A qualidade que fez triunfar a espécie humana foi a adaptabilidade activa, isto é, os humanos serem capazes de modificar o meio exterior e adaptá-lo a si próprios. Essa é uma capacidade individual, não da espécie, a qual vive, assim, da acção de alguns dos seus nessa matéria. Esperemos que, neste assunto das carreiras, os intervenientes directos consigam traduzir o que os outros pensam e querem e logrem chegar aos resultados almejados por todos. 

O contrato colectivo de trabalho poderá vir pôr alguma ordem na desordenação total das contratações feitas agora, em que se chega a conceder licenças sem vencimento a médicos logo de seguida contratados pelo mesmo hospital, para fazerem o mesmo ou menos do que faziam por muito mais dinheiro. Dinheiro de nós todos, já agora; quando se apregoou mudar a lei de gestão para se conseguirem os mesmos resultados a um custo mais baixo. Mas em que é que isso poderá, só por si, ser decisivo nas carreiras médicas?

Ao contrato colectivo apenas poderão aceder os médicos inscritos num sindicato que o tenha subscrito, e logo aí se antevêem dificuldades numa classe tão arreigada ao liberalismo de actividade. Será mais um passo na tentativa da sua completa proletarização, e ainda por cima agora em nome de algo que ela não vem necessariamente resolver: as carreiras médicas. Se a lei EPE se mantiver como foi delineada, os hospitais-empresas continuarão a não ter quadro de pessoal definido, com lugares por categoria profissional. Os contratos a efectuar serão “à la demande” de cada administração, pelos critérios que escolherem como bons para a empresa que foram postos a dirigir. E do mesmo modo os hospitais privados. Quem garante que escolherão preferencialmente os mais graduados, sobretudo se pelo contrato colectivo de trabalho lhes tiverem de pagar mais? E quem os obrigará a dar mais responsabilidades e funções de orientação aos mais graduados que eventualmente tiverem a trabalhar para eles? É claro que o contrato colectivo poderá tentar acautelar algo semelhante, mas lá estará a classificação de desempenho feita pelo próprio hospital – quer dizer, pelo conselho de administração, directamente ou por interposto chefe por eles nomeado – para colocar nos lugares as pessoas desejadas. Neste panorama será difícil falar-se em carreiras.

Foi sintomática a apresentação conjunta feita pelo ministério da saúde do projecto das “novas” carreiras médicas e do projecto de classificação intra-hospitalar de desempenho dos médicos. Aliás, as carreiras anunciadas só tinham realmente de novo o facto de não terem repercussão na actividade hospitalar de cada um, parecendo ter sido planeadas apenas para manter os médicos ocupados a estudarem e a fazerem trabalhos, ao mesmo tempo que se retirava importância prática do ponto de vista do seu emprego  a tudo o que conseguissem ser capazes de fazer nesse campo. Quer dizer, aceita-se que devem manter um esforço constante de progressão, o que implica que uns possam ir mais longe que outros, mas as administrações, depois daqueles concursos todos, reservam-se o direito de escolher quem bem entenderem, pelos critérios que lhes apetecer, nomeadamente das simpatias pelos colegas “dentro do mesmo projecto de gestão”, eufemismo habitual para compadrio e pagamento de favores. Como vai o contrato colectivo lidar com isso? Como vai evitar que na vida hospitalar dos médicos se instale o princípio que melhor que ser político é ser amigo do político certo para cada momento? Carreiras médicas?!... Quando muito carreiras iguais às existentes para o resto da administração pública, para subida de escalão de vencimento de acordo com a opinião do chefe. Sem qualquer relação com formação.

E todos aqueles que optarem por um contrato individual de trabalho? Por não quererem estar forçosamente na dependência dum sindicato, ou por assim conseguirem ganhar mais? Ficam fora das carreiras?

No meio de tudo isto há um aspecto fulcral também, que é a formação de internos. De que as carreiras médicas até há dois anos existentes eram como que uma continuação natural, e que continua a funcionar sem problemas de maior pela vis a tergo que traz, mas que se irá necessariamente ressentir a breve trecho. Disso falaremos na próxima vez, e também da anunciada classificação de desempenho dos médicos.

*Artigo escrito em 2009.

In Farpas pela nossa Saúde, 2009, ed. MinervaCoimbra

                                   VAMOS ÀS CARREIRAS - III*

A actual lei de gestão hospitalar, criando os hospitais EPE, derivou do facto de quem administra os hospitais públicos considerar que não era capaz de o fazer bem com a lei previamente existente. Teve, portanto, uma causa puramente administrativa, isto é, mudou-se a lei de gestão para quem administra ser capaz de administrar. O problema é que com esse objectivo atropelaram toda a organização clínica hospitalar, desestruturando-a e conduzindo à inactivação e destruição das carreiras médicas. Isto sem aumentar visivelmente a eficácia administrativa, mas com um aumento exponencial do número de administradores circulando nos gabinetes e corredores dos hospitais. Dito de outro modo: alteraram as regras do jogo para o poderem ganhar mas, além de não o conseguirem, baralharam-no, e suspeito que no momento actual já ninguém sabe muito bem que jogo se está a jogar e como vai acabar. 

Quer dizer, com uma alteração de gestão que no fundo traduziu uma incapacidade, destruíram algo que funcionava bem, tão bem que foi considerado como a base do Serviço Nacional de Saúde, o qual, por sua vez, levou a que um país pobre e em geral desorganizado e ineficaz como o nosso pudesse ser considerado o 12º no mundo, a contar de cima, na área da saúde. E o problema maior é que a modificação foi feita de tal forma, de tal maneira impensada – ou tão elaborada… -, que tornou muito difícil uma adaptação das carreiras médicas de modo a salvá-las. Mas falemos sobre isso, sem derrotismo, antes com os pés bem assentes na realidade.

Uma das alterações impostas foi que as administrações dos hospitais empresarializados podem contratar quem quiserem, pelos critérios que estabeleceram como necessários para o hospital que foram postos a dirigir. Seria com certeza inteligente para um empresário se procurasse contratar profissionais bem preparados, com provas dadas, no topo da carreira. Mas isso implicaria duas coisas: pagar-lhes mais, por um lado, e, por outro, ter um projecto de desenvolvimento da “sua” empresa-hospital que a levasse a evoluir e a fazer cada vez mais e melhor. Talvez haja algum conselho de administração assim, ou venha a haver, mas a rotina não tem sido essa: antes se pretende apresentar muitos doentes vistos e tratados a baixo custo, descartando-se para os vizinhos tudo o que custe mais caro ou implique mais investimento. Incluindo em pessoal especializado mais capaz e diferenciado.

Lá se vai, assim, a lógica do quanto mais diferenciado melhor. Algumas excepções talvez o pudessem ainda justificar, mas não passariam disso mesmo: excepções. E não se pode gerir um país com base nalgumas excepções. Que, louváveis que sejam, não serão com certeza um estímulo para uma carreira.

A grande esperança dentro do “status quo” criado reside no contrato colectivo de trabalho, que se pretende abranja tudo, hospitais privados e hospitais empresarializados. Estes adquiriram as regras e a liberdade da medicina privada, embora com capital do Estado. Mas este apenas pode intervir na dotação orçamental, na nomeação dos conselhos de administração e na avaliação dos relatórios finais, não pode dirigir ou alterar a gestão propriamente dita. Veja-se, por exemplo, que todos os conflitos eventualmente existentes com os trabalhadores – já não funcionários públicos – não são resolvidos em sede do Ministério da Saúde, terão de ser dirimidos nos tribunais, civis ou administrativos. Os trabalhadores – médicos incluídos – terão de se queixar ao sindicatos, onde, aliás, pelas novas regras, terão de estar inscritos.  

As novas leis de gestão hospitalar e da administração pública, ao acabar a função pública tal como a conhecíamos, vieram, na verdade, curiosamente, proletarizar mais os médicos e indirectamente aumentar a intervenção dos sindicatos. Estes são os interlocutores legais do governo e dos patrões, e os representantes dos médicos face aos tribunais em problemas laborais. O contrato colectivo insere-se nesse campo e, dadas as especificidades e as diferenças entre os vários tipos de actividade médica, não sei se a evolução não passará também por uma diferenciação de sindicatos e pelo consequente aumento do seu número. 

No que respeita à actividade hospitalar – que interessa especificamente à nossa  Associação – o contrato colectivo virá impedir o que agora se passa com contratos individuais feitos à completa vontade dos gestores dos hospitais, contratando quem querem, pelo ordenado que decidem, com a diferenciação que entenderem, sem prestarem contas a ninguém. E sem os contratados saberem mesmo quanto ganham os outros. Quer dizer, pelas mesmas funções – independentes do seu grau e categoria obtidos nas carreiras médicas moribundas - podem auferir vencimentos absolutamente diferentes, e sem sequer o saberem. Nestas condições, qual o estímulo para procurarem ascender numa carreira profissional? Estímulo, sim, para terem amigos políticos que lhes facultem de algum modo uma contratação que tem muito de política, no sentido óbvio da “politiquice”. E que lhes permitam, por exemplo, obter uma licença sem vencimento e acto contínuo serem contratados para fazer o mesmo que faziam antes mas pelo triplo do pagamento… Mais uma vez discricionariamente e sem qualquer relação com quaisquer carreiras passadas e muito menos futuras.

Mas se o contrato colectivo pode pôr alguma ordem nisto, continuará a não haver quadro de trabalhadores em cada uma das empresas-hospital, entregues que estão pela actual lei de gestão hospitalar à actuação individual de cada um dos conselhos de administração. Consoante o que planearem para o “seu” hospital (e pode ser deles tão pouco tempo como 3 anos, ou até menos), assim poderão contratar estes ou aqueles médicos, mais ou menos diferenciados. Preferindo os mais diferenciados, claro, se lhes pudessem pagar tão pouco como aos menos diferenciados. Mas se o contrato colectivo não permitir isso, terão de investir nos mais baratos, que esses irão com certeza progredir por si próprios, ganhando experiência ao tratarem muitos doentes, de preferência com pouca despesa... E quem subir no grau de diferenciação, irá passar a receber mais? Ou terá de procurar outra instituição que lhe queira pagar o correspondente ao novo grau? Quem passará a receber mais? Quem for nomeado por serviços prestados? Ao hospital, ou a um ocasional conselho de administração?...

Em que medida poderão coexistir, na actual gestão hospitalar, graus e categorias obtidos por concurso (sejam quem forem os júris para tal) e a avaliação burocraticamente feita por chefes nomeados discricionariamente em cada instituição, com regras como as do SIADAP, que, se não fossem desmotivantes e geradoras de irritação, conflitos e desinteresse, seriam risíveis por ridículas?

E qual a repercussão de tudo isto na formação médica contínua?

É todo um conjunto de problemas que foram criados há menos de dois anos e que estão por resolver. De que continuaremos a falar na próxima vez.

*Artigo escrito em 2009.

In Farpas pela nossa Saúde, 2009, ed. MinervaCoimbra

                                   VAMOS ÀS CARREIRAS – II*

Ouvimos há dias na televisão uma enfermeira portuguesa das que mudaram o seu local de trabalho para o Reino Unido dizer que o tinha feito não principalmente pelo dinheiro mas sobretudo pela “possibilidade de progredir na carreira”. Reconfortante, ouvir isto. As carreiras profissionais não são apenas uma obrigatoriedade incómoda de concursos trabalhosos que filtram e dificultam a progressão profissional; ou uma maneira de ir periodicamente aumentando de ordenado; são acima de tudo um estímulo para quem quer aperfeiçoar-se e ser cada vez mais capaz, com esse aperfeiçoamento reconhecido e premiado.

A progressão profissional enquadrada numa carreira faz-se por patamares, correspondentes a capacidades e experiência adquiridas pelo exercício profissional e reconhecidas pelos pares mediante análise criteriosa do trabalho realizado e dos conhecimentos evidenciados. Quer dizer, o reconhecimento da evolução e do valor demonstrados pelo profissional é da responsabilidade de quem tem condições também profissionais para o fazer. Quem avalia e classifica tem obrigatoriamente de ter sido já avaliado antes, de ter dado provas cabais e igualmente reconhecidas das suas competências no grau ou categoria para que agora é avaliador. É esta progressão estruturada, apoiada, de acumulação de conhecimentos, experiência e trabalho realizado condicionando mais autonomia, mais liberdade, mais autoridade mas também mais responsabilidade, que basicamente constitui as carreiras. Pelo menos as carreiras médicas que defendemos, que no nosso país existiram por três dezenas de anos e cuja falta se começa rapidamente a sentir.

 É despiciendo voltar a falar da importância dessas carreiras na evolução altamente positiva que a saúde e a medicina portuguesas tiveram nos anos em que elas realmente existiram. Sobretudo no que aos hospitais diz respeito – e por eles eu falo - em que elas permitiram a consecução de um facto notável: a homogeneização por todo o território nacional da qualidade e das condições de trabalho, estas como incentivo profissional maior. Fazendo só por si com que médicos altamente preparados e de grande capacidade intelectual e técnica se permitissem sair dos três grandes centros de referência existentes até então e espalhar-se por todo o país. Numa descentralização que os que não percebem do assunto teimam em forçar, seja por uma obrigatoriedade de capatazes seja pelos chamados estímulos financeiros. Os médicos sempre foram mal pagos no Estado, mas era aí que ainda iam tendo mais condições para exercer a profissão que os entusiasma, para se realizarem profissionalmente, para subirem degraus de diferenciação, de responsabilidade, de organização, de gestão, de autoridade. Isso os ia compensando, para além de lhes ser dada a possibilidade de trabalharem muito e assim poderem ganhar mais alguma coisa.

E tudo isto teve o óptimo resultado que se conhece. E que ao fim e ao cabo acabou agora por ser finalmente reconhecido pelo Ministério da Saúde deste Governo, com uma médica como ministra, ao apresentar um projecto de reconstrução das carreiras médicas. Mas convenhamos que com a lógica política seguida é difícil conseguir que sejam reconstruídas, desvirtuadas e inutilizadas que foram precisamente por legislação entretanto produzida e implementada na área da gestão hospitalar. Para além de que é evidente que para muitos dos nossos políticos (e não só), habituados não a carreiras mas a carreirismo, aquelas são um estorvo para este.

Ao obrigar-se a uma progressão na carreira, com funções, responsabilidades e prerrogativas de autonomia e chefia dependentes dos respectivos graus e categorias, estaríamos a inviabilizar os lugares de favor, de nomeação política ou por amigos políticos ou de mesa de café (ou ambos). Em suma, estaríamos (ou estaremos, se formos optimistas, apesar de tudo) a impedir a descida de pára-quedas nas chefias técnicas das instituições de muitos que na verdade nem chegaram a levantar voo… E isso, na actual conjuntura, torna difícil um projecto adequado de carreiras, carreiras médicas incluídas.

Para além de que os nomeados para os lugares de nomeação política nos hospitais, e a quem foi concedido um poder quase absoluto (a que deveria corresponder uma responsabilidade máxima, mas esta sempre iludida…), desde logo divulgaram a ideia de que tudo dependeria das suas escolhas pessoais para as chefias técnicas intermédias. E como tal escolheram quem melhor acharam, sem atender minimamente – em muitos casos – à diferenciação profissional e provas dadas dos escolhidos e dos recusados e afastados, às vezes acintosamente. Com certeza que houve excepções dignificantes, mas o que sucedeu mostrou à saciedade que nos hospitais EPE as carreiras médicas deixaram de contar. A não ser para satisfazer as expectativas dos que nelas entraram há muitos anos, satisfação que as administrações não podem legalmente ignorar, tendo por isso que dar seguimento aos concursos dentro delas e aumentar as remunerações dos médicos envolvidos, de acordo com a sua subida de categoria. 

Durante dezenas de anos a função pública foi um esteio da nossa sociedade, e uma referência em múltiplos aspectos, nomeadamente de entrada por concurso, de estabilidade de emprego, de remunerações, de condições de trabalho, de qualidade (sempre discutida mas sindicável, sujeita a queixas, a avaliações e a correcções). Quem puser esta última característica em causa recorde-se que a formação médica pós-graduada dentro das carreiras era totalmente pública, e a boa qualidade da nossa saúde, reconhecida mundialmente em 2002, era de responsabilidade quase exclusivamente estatal. Havia com certeza indicação para se mudarem algumas coisas, mas o que se passou foi o mudar a tónica do público para o privado. Quer dizer, a orientação política actual parece ser a de diminuir drasticamente a função pública e aumentar na mesma proporção a privada. E, concomitantemente ou por isso mesmo, as regras da actividade privada é que se tornaram na referência nacional, legislando-se sucessivamente para que essa mudança seja efectivada à face da lei.

Não vou aqui seguramente apreciar opções políticas, individuais e muito menos dum governo eleito, mas o liberalismo que rapidamente se tem vindo a instalar entre nós, nomeadamente no campo da saúde, desaconselha por certo soluções possíveis e desejáveis noutro tipo de sociedade, e exigirá outras. Sem discutir minimamente a bondade dum qualquer sistema político de gestão do nosso país, mas como médicos – isto é, técnicos fundamentais na área da saúde -, devemos questionar se opções claramente vencedoras num sistema podem ser sequer minimamente adequadas noutro. Há transplantações em que a rejeição é fatal.

A existência duma carreira médica pressupõe – exige – que os seus graus e categorias sejam reconhecidos nas diversas instituições em que os médicos trabalham. Reconhecimento que implica consequências. Nas entidades públicas empresariais já assim não é: ele existe apenas no que respeita aos vencimentos, e num quadro a extinguir quando vagar. Em que medida nas empresas privadas o poderá vir a ser?

Como poderão coexistir carreiras médicas e um sistema de avaliação eventualmente tão extraordinariamente aberrante como o dos professores ou o do  SIADAP? Em que as remunerações não terão que ver com o lugar na carreira mas sim com a avaliação feita por um qualquer nomeado como chefe? No próximo artigo continuaremos.

*Artigo escrito em 2009.

In Farpas pela nossa Saúde, 2009, ed. MinervaCoimbra

                                 VAMOS ÀS CARREIRAS - I*

O Ministério da Saúde apresentou um projecto de Carreiras Médicas, o que não é de admirar sendo a actual ministra médica. Todos os médicos – apenas com as excepções que confirmam a regra, e sem outro significado – reconhecem a utilidade que elas tiveram nos últimos 25 anos e o que em matéria de medicina e de saúde através delas se conseguiu em Portugal. Surpreende é que o projecto ministerial contenha obviamente em si todos os ingredientes para a sua falência total, como se fosse esse o seu objectivo final ou, então, como se não tivesse sido elaborado por médicos.

A Associação dos Médicos de Carreira Hospitalar sempre defendeu, e defende, que é forçoso modificar a actual Lei de Gestão Hospitalar para que as carreiras médicas possam ser reconstituídas adequadamente. Não sei se por isso, mas a verdade é que o ministério da saúde nunca mostrou qualquer interesse em nos ouvir. Ao reduzir o número de interlocutores nesta matéria, redu-la também a um assunto meramente sindical, o que claramente não é. Trata-se antes de um assunto que interessa profundamente a toda a sociedade médica, e por isso todos os médicos deverão ser ouvidos. Com certeza através da Ordem e dos sindicatos médicos, mas também individualmente ou organizados noutras associações, sobretudo as mais ligadas à área em causa. Como a nossa, especificamente de Médicos de Carreira Hospitalar, e que tão activa e interventiva se tem mostrado.

O ministério ouvirá quem quiser, tem esse direito. Mas nós não deixaremos de partilhar com os colegas as nossas opiniões e os nossos projectos sobre as carreiras médicas, porque as consideramos fulcrais para a medicina no nosso país. Já há tempos avisámos para não se brincar às carreiras, e nunca como agora esse aviso foi tão oportuno. Postos fora da discussão, iniciaremos com este uma série de artigos de carácter eminentemente prático, objectivo, concreto, tendentes a levar a alguma conclusão realizável e adequada. Começaremos hoje com uma avaliação global do projecto governamental apresentado.

As carreiras médicas não acabaram por ao fim de 25 anos se ter descoberto que estavam mal estruturadas: acabaram porque a nova lei de gestão hospitalar as esvaziou e inviabilizou - acabaram porque cada grau ou categoria não corresponde a uma função institucional diferente, e mais diferenciados estão a ser chefiados e dirigidos por menos diferenciados, escolhidos por razões no mínimo pouco claras.

Os graus e as categorias da carreira agora projectados apenas repetem os que já existiam, e isso é bom. Mas a exigência extra na sua manutenção, por recertificação, contrasta dramaticamente com o facto de a sua posse não ter repercussão nem na contratação, nem na remuneração, nem na avaliação dos médicos pelas instituições onde trabalham. Pelo contrário, tudo isso fica subordinado aos administradores, como se fossem eles o ponto-chave das instituições de saúde. Quer dizer, deixa-se profissionais que desde os seus tempos de alunos do liceu se mostraram com muita capacidade intelectual e de trabalho, e que obtiveram depois uma diferenciação técnico-científica elevada numa área difícil, exigente e complexa como é a medicina, serem dirigidos, governados e avaliados por outros que não são nem fizeram nada disso. É claro que não se pode esperar um bom resultado, e surpreende-nos que a ministra da saúde, sendo médica, possa subscrever tal coisa.

As aparentes grandes preocupações técnicas e científicas demonstradas neste projecto chocam também com o que está a ser exigido aos médicos nos hospitais EPE, de sobretudo muitos números, de grande “produção”, não em termos científicos mas de doentes vistos e tratados, nem que seja apenas por, a título de exemplo, muitas pequenas operações em cirurgia do ambulatório, ocupando-se com isso os blocos operatórios onde se deveriam fazer intervenções de grande cirurgia. Como compatibilizar tudo isto? Não jogam umas coisas com as outras, a não ser que seja só para ficar no papel algo que nem sequer é exequível, como essa avaliação complexa prevista periodicamente para cada consultor conseguir ser recertificado.

Repare-se que não foi ingénuo fazer-se a apresentação do projecto de carreiras médicas ao mesmo tempo e conjugadamente com um projecto para a avaliação dos médicos. Esta declaradamente não vai ter que ver com as carreiras, mas é através dela que se paga mais ou menos, se contrata ou descontrata, se atribuem ou não funções directivas em cada instituição... Atente-se por uma vez que a hierarquização técnico-profissional, fundamental para o exercício institucional da medicina mas que com a aplicação desta lei de gestão hospitalar desapareceu, não é compatível com essa avaliação feita por pessoas não credenciadas utilizando factores administrativo-pessoais. Avaliação do género das que vamos vendo na função pública e nos professores, entregues a pessoas nomeadas por razões pessoais e políticas misturadas com outras, e que não podem realmente avaliar do ponto de vista profissional e técnico uma vez que não têm idoneidade expressamente reconhecida para tanto.

A pedra base de qualquer sistema de avaliação é o reconhecimento pelos avaliados dos avaliadores enquanto tal. Isso é conseguido nos concursos das carreiras, e terá de ser através deles que se singra nas instituições. Mas já assim não é agora, imperando o “achismo” dos conselhos de administração, e estes projectos apenas vêm consagrar esse facto, condenável mas espantosamente ignorado, excepção feita a alguns Colégios da Ordem, honra lhes seja feita.

 Os médicos do quadro estão a desaparecer a olhos vistos, por reformas antecipadas ou licenças sem vencimento, dada a enorme insatisfação que sentem mercê da lei que rege os hospitais públicos. Os outros são reféns da necessidade dum contrato de trabalho, e cada administração contratará quem quiser ao preço que quiser, ao livre arbítrio de quem manda e com base nas disponibilidades remuneratórias, sendo as remunerações dependentes não do grau ou categoria do médico mas sim duma avaliação exercida na própria instituição por quem foi posto a administrar. Esta avaliação só pode ser contestada pelo funcionário no tribunal administrativo: repare-se que o próprio ministério da saúde não tem capacidade de intervenção, ele também refém da sua infeliz lei de gestão hospitalar.

Pelo que vamos vendo à nossa volta, não nos parece que as administrações dos hospitais empresas queiram contratar os mais graduados e diferenciados, a não ser que lhes possam pagar tão pouco como a outros menos diferenciados… E para conseguir isso, sempre terão à disposição as quotas na avaliação… de modo a reduzir as remunerações dos não queridos, mesmo que muito diferenciados.

Veja-se a importância fulcral nesta lei dos administradores de hospital. A propósito, como é feito o seu recrutamento?... E a sua avaliação?

No meio de tudo isto, para que servem as carreiras médicas? Para nos manter entretidos? Ou será uma maneira de o governo alijar mais uma responsabilidade cara, a da formação médica contínua, e entregar essa despesa, trabalho e incómodos à Ordem dos Médicos? Com que contrapartidas para os médicos? Com que incentivos? Com que meios de execução prática? O esforço, tempo perdido e despesa dos concursos das carreiras servirão para quê? No próximo artigo voltaremos a falar.

*Artigo escrito em 2008.

In Farpas pela nossa Saúde, 2009, ed. MinervaCoimbra

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

         E SE PARÁSSEMOS PARA PENSAR? E QUEM SABE VOLTAR ATRÁS?

O Serviço Nacional de Saúde britânico (NHS) anuncia-se naquele país a caminho do fracasso. Ele que serviu de exemplo ao nosso e que, tal como o português, durante anos funcionou muito bem. No caso dele, literalmente de modo exemplar.

O que aconteceu? Basicamente foram-lhe sendo introduzidas alterações que se mostraram negativas, depois desastrosas, a médio e longo prazo. E chegámos a este momento. E aos que se lhe seguirão, na senda do caminho percorrido até agora, se não for modificado.

Para nós o mais preocupante é que, para além de ser um serviço de que o nosso basicamente foi decalcado, as alterações que levaram à sua degradação também foram copiadas para o nosso SNS. Mais tarde, de modo que os mesmos efeitos se seguirão às mesmas causas no seu tempo próprio...

 É claro que o facto de o nosso serviço nacional de saúde ser uma espécie de cópia tardia do britânico, poderia dar-nos a possibilidade de ir atempadamente corrigindo o que naquele se mostrou mal feito. Mas, para isso, seria necessário que quem levou aos maus resultados, e quem os acompanhou, e eventualmente os agravou, os reconhecesse como tal, os assumisse, os anunciasse à sociedade. Para que se alterassem de imediato as causas, de modo a evitar e a reverter os efeitos indesejáveis. Ora, surpreendentemente, não é isso que tem acontecido! Lá como cá. Mesmo que, e relutantemente, os responsáveis pela Saúde vão reconhecendo que o que funcionava bem em tempos agora não funciona (porque há termo de comparação!), as razões apontadas para tal procura-se, sistematicamente, que se mantenham externas ao que se fez nas mais variadas áreas (incluindo na organização médica), ao que nelas se mudou, ao que se alterou, e que obviamente levou ao que se tem agora. Nada de aceitar que foram erros, nada de entender que nem tudo o que se pensou ser para melhor assim resultou! Teimosamente invoca-se apenas que as condições mudaram… Quando muito dessa mudança, que é óbvia, foi condicionada também, e nalguns aspectos até sobretudo, pelo que foi feito mudar na estrutura que suporta os serviços de saúde, nomeadamente na gestão hospitalar, clínica e administrativa, na rede nacional de instituições públicas de saúde e nas carreiras profissionais, acima de tudo nas carreiras médicas.

E essa incapacidade de reconhecer os erros (muitas vezes próprios, por parte dos dirigentes e profissionais na área da Saúde) é acompanhada por outra, ainda mais preocupante: a de vislumbrar uma solução. Na realidade, as duas juntas consubstanciam a situação: está-se dentro dum túnel, não se sabe como para lá se entrou nem, portanto, como se poderá de lá sair…

A situação no Reino Unido é complicada, e a portuguesa acompanha-a paralelamente. Não será altura de pararmos para pensar? Diz o povo que, quando se está dentro dum buraco que escavámos e de que não se sabe já para que lado é a saída, a primeira coisa a fazer é parar de cavar. Que tal se, em vez de continuarmos pelo caminho que, em muitos aspectos do que se anunciava “moderno”, e “diferente”, como “lá fora” (Reino Unido?...), se revelou errado, procurarmos perceber, sem complexos, o que correu mal? E, quem sabe, recuar nalgumas áreas? Para posições confortáveis e seguras (e que se sabe que o são, porque já lá estivemos antes…), donde se possa então progredir doutro modo para um futuro melhor do que o presente que temos agora. 

As guerras têm-nos demonstrado uma coisa às vezes esquecida na ânsia cega de avançar: recuar nem sempre é sinal de derrota ou de fraqueza, pode ser, pelo contrário, o começo dum avanço vitorioso. E quer parecer que para a saúde dos Serviços Nacionais de Saúde britânico e português é o que se precisa, quando o que se tinha antes era melhor que o que se tem agora. Esperemos que quem de direito acabe por perceber isso, e parem de cavar e de nos meter cada vez mais no buraco, cada vez mais longe da saída. A não ser que o objectivo de quem de direito seja mesmo esse… Mas vamos acreditar que não.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

                                       A REQUALIFICAÇÃO DAS URGÊNCIAS

O maior problema das urgências médicas no nosso país é que elas se transformaram na porta habitual de acesso aos cuidados médicos. Isto porque o nosso sistema de saúde se “urgencializou”, face à dificuldade de os doentes obterem consulta doutro modo. Por outro lado as urgências “hospitalizaram-se”, e tudo isto no seu conjunto, e não por outras causas quaisquer, faz com que doentes se acumulem à espera em serviços de urgência hospitalares que, doutro modo, estariam perfeitamente equipados, em material e recursos humanos, para dar a melhor das respostas.

Este é o diagnóstico há muito feito. A terapêutica implica resolver os problemas a montante das urgências hospitalares, em dois aspectos: consulta a tempo e horas dos doentes que dela entendem precisar, e acesso a urgência eventualmente não hospitalar, aquela que também se chama de consulta urgente, que em grande medida deveria estar a cargo do médico de família. Começar pelo fim ou, como diz o nosso povo, “pôr a carroça à frente dos bois”, não pode dar bons resultados, se o que se pretende realmente é fazer a carroça andar…

A reestruturação das urgências terá, pois, que incluir, logo no seu início, as consultas urgentes, as quais só o médico que vê o doente poderá classificar como urgência hospitalar, ou não. Esses doentes só deveriam ir ao hospital depois de observados pelo seu médico, ou por um médico num serviço de atendimento permanente. Não é eticamente lícito querer dificultar o seu acesso aos hospitais por qualquer outro modo, embora se reconheça a tentação administrativa de o fazer, embalada pela asserção que a maior parte não são verdadeiras urgências. E se o forem? Deveria bastar que apenas uma fosse e o doente sucumbisse por isso para tal nos repugnar. Talvez não se justifique ter uma instituição aberta toda a noite para ver dois ou três doentes, mas esses têm também de ser vistos por um médico a tempo e horas, o que não inclui, com certeza, uma deslocação obrigatória de 40 ou 50 quilómetros, em táxi ou ambulância, para lhe dizerem eventualmente que não tem nada de urgente…

Grande visão, médica e económico-financeira, de quem nos locais agora abandonados – e a abandonar - pelo SNS instalou locais privados de atendimento médico e de enfermagem. Fazem aí o que o Estado se demitiu de fazer, e os contribuintes, que pensariam ter direito a acesso à saúde tendencialmente gratuito, passam a pagar directamente esses cuidados, de que necessitam.

E estes são os pontos fulcrais nesta matéria. O trabalho de “requalificação” das urgências hospitalares, pese embora a boa vontade e empenho da comissão nomeada para o efeito, só deveria ter lugar depois daquele primeiro passo ter sido dado. Então, e só então, se veria quais as que faziam ainda falta, aonde e como. Não haveria o período de vazio, de insegurança, que se está a criar para as populações mais isoladas no campo da saúde, e que nem sempre são só as que estão muito longe de grandes centros. Compreende-se a sua angústia, fruto não propriamente do trabalho apresentado mas da má planificação da sua aplicação. Planificação sem ter em conta minimamente nada do que atrás é apontado.

Embora o trabalho da comissão apresentasse alguns erros e incongruências, corrigíveis com certeza, a verdade é que dele de imediato resultaram unicamente encerramentos e desqualificações, alguns evitados ou negociados declaradamente apenas por razões de política local, e não de natureza técnica. O plano de requalificação assume-se, assim, antes de mais como um plano de poupança, dentro do objectivo geral do governo de poupar dinheiro com a saúde. Como a saúde era muito melhor que o resto do país, parece estar-se a procurar nivelá-la aos poucos, com economia substancial conforme anunciado pelos responsáveis pela saúde nacional. O resultado final ver-se-á em breve. Não se diga depois é que a responsabilidade é dos médicos.

In Farpas pela nossa Saúde, 2009, Ed. MinervaCoimbra

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

              UMA HISTÓRIA CONTADA A PROPÓSITO DOUTRAS HISTÓRIAS,

OU A SUPERESPECIALIZAÇÃO GLOBAL

Durante um bom número de anos o senhor Sarmento (nome fictício) foi lá a casa, no início de cada Inverno, fazer a limpeza e afinação da caldeira a gasóleo do aquecimento central e, ao mesmo tempo, verificar o funcionamento do sistema complementar e integrado de aquecimento por painéis solares. Sem problemas, com eficiência, tornou-se o nosso técnico habitual nessas áreas, quer naquela intervenção de rotina quer nos ocasionais episódios de desregulação ou mau funcionamento daqueles dois sistemas. Com o senhor Sarmento. assunto resolvido no que respeita a aquecimento da casa.

Mas desta vez, este ano, o senhor Sarmento, doente e de cama, segundo nos informou, e não sabendo quando poderia voltar ao trabalho, fez o favor de nos indicar um jovem técnico, duma outra empresa dedicada a esse tipo de trabalho. O dito técnico apareceu e limpou e afinou a caldeira. Naturalmente pedimos-lhe, quando deu esse trabalho por concluído, que fizesse a verificação habitual do sistema de painéis solares. Ah não, isso não podia fazer, porque não era a área dele, não sabia, essa teria de ser realizada por um outro colega lá da empresa dedicado especificamente a esse trabalho. E, enquanto o senhor Sarmento levava cinquenta euros, ele levou setenta. O que nós compreendemos: afinal ele é especialista, só sabe mesmo daquilo, e o Sarmento não… E também compreendemos que se o Sarmento deixar de trabalhar ou, pior ainda, deixar de existir, passaremos a precisar de dois especialistas para o substituir, a setenta euros cada um.

É óbvia a comparação possível desta situação com outras situações e outras profissões também com instituição duma superespecialização crescente, ou uma grande fragmentação do conhecimento. Evidenciando todas elas que a delimitação cada vez mais estreita das áreas especializadas, com a consequente multiplicação do seu número, multiplicará também o número total de especialistas necessários, assim como aumentará os custos com o pessoal especializado. O que não é com certeza despiciendo nas áreas de actividade em que dois problemas fulcrais sejam falta de profissionais e falta de verba.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

                                                  PODIAM AVISÁ-LO?...

A propósito da discussão da Petição para Devolver a Autonomia ao Hospital dos Covões.

A história é simples. Coimbra teve durante 40 anos dois Hospitais Centrais que, sem terem exactamente as mesmas valências, eram ambos Hospitais Gerais, e como tal assistindo as populações de Coimbra e da Região Centro, num total de cerca de dois milhões e trezentas mil pessoas. Cada hospital central deve ter na sua zona de influência à volta de oitocentos mil utentes, que foi o que esteve destinado ao Hospital dos Covões nesse período de tempo. A existência de outros hospitais grandes nessa sua zona de influência nunca tornou o seu apoio desnecessário, nem sequer pouco necessário, antes o oposto, para mais quando uma super-especialização criada na medicina e na cirurgia actuais afastou bastantes doentes de poderem ser seguidos em hospitais mais periféricos e com menos recursos.

Os dois hospitais gerais centrais de Coimbra trabalhavam a par e em complementaridade, quer em áreas só existentes num deles quer em áreas comuns, em que a possibilidade de troca de opiniões e a variedade de soluções apresentadas e executadas é um factor de enriquecimento de conhecimentos e de progresso clínico e científico. Numa cidade relativamente pequena, a concentração de escolas de saúde, de hospitais, de laboratórios de investigação, com o correspondente grande número de profissionais de saúde, formados e em formação, de investigadores, de professores, de estudantes, todos interagindo em proximidade uns com os outros, e de doentes procurando auxílio médico, na realidade traduzia a essência duma cidade universitária. Ambos os hospitais colaboravam no ensino pré-graduado e universitário, fornecendo a diversidade que é fundamental numa Universidade.

Eis senão quando, há dez anos atrás, o governo, sem estudo prévio e sem plano de execução, resolveu fundir os dois hospitais gerais centrais em Coimbra, e o CHC e o HUC passaram a ser um único, a que foi chamado centro hospitalar (CHUC). Quer dizer, de dois passou a haver apenas um, já que, como bem se sabe, o Hospital dos Covões foi progressivamente desactivado e esvaziado da capacidade que tinha instalada, levando às dificuldades de resposta clínica do CHUC sobejamente conhecidas de todos, e sentidas por muitos, utentes e profissionais, e que, em última análise, conduziram à Petição em apreço. E que foram reconhecidas e bem expostas por quase todos os deputados que tomaram a palavra na sua discussão no Parlamento, por isso dando razão aos peticionários e concordando com o peticionado: reverter a fusão levada a cabo, “devolver a autonomia ao Hospital dos Covões, como Hospital Geral Central”, para que possa voltar a desempenhar as suas funções enquanto tal. “Pelo direito ao acesso a cuidados de saúde de qualidade, porque o acesso à saúde é um direito e um dever."

Os deputados de seis partidos (PSD, CHEGA, PCP, BE, LIVRE, PAN) apoiaram expressamente a Petição, mostrando conhecer bem as condições de deterioração da Saúde em Coimbra e na Região Centro que da fusão resultaram, e concordando com a reversão desta.

A deputada da IL que interveio, embora compreendendo as razões apresentadas, e os problemas existentes em Coimbra na área da Saúde, e decorrentes da fusão hospitalar, entendeu que, para a sua correcção, haverá que fazer estudos e planos, em vez de simplesmente reverter o que deu origem aos maus resultados evidentes nas instituições hospitalares públicas. Isto é, na verdade a preocupação da Iniciativa Liberal será de avaliar as consequências da reversão da fusão, uma vez que esta não foi má para a iniciativa privada em saúde na cidade.

Mas houve um deputado que destoou destes todos: o do PS. Inesperadamente (digo eu, porque é deputado por Coimbra…), não reconheceu as dificuldades surgidas da redução de dois hospitais a um, falando antes dos investimentos do governo na saúde de Coimbra, dando como exemplo disso a construção de novas instalações dum centro de saúde para substituir as degradadas, e juntando-lhe o projecto de construção duma nova maternidade em cima do já esgotado HUC (com as consequências negativas que daí se esperam, aliás). E teve o desplante de falar nos “objectivos” duma fusão sem estudos nem plano prévios, que, disse ele, pretendia “melhorar a prestação de cuidados de saúde às populações”, quando foi precisamente por levar ao contrário disso que agora se pede que seja revertida! E a desfaçatez de dizer que a redução de dois hospitais a apenas um, com a consequente redução drástica de meios técnicos e humanos, veio contribuir “para a diversificação da oferta e acentuar a importância do ensino universitário e da investigação”!... E quis referir o que de novo se tem feito no Hospital dos Covões (?!), citando o bloco de ambulatório (que já existia antes da fusão, e que por acaso era único em Coimbra, já que o HUC não dispunha de nenhum), o Centro de Sono (com tantos anos de existência e de renome antes da fusão), o Centro de Audiologia ligado aos Implantes Cocleares (quando Implantes Cocleares foi sempre SÓ com os Covões, sem nunca se fazerem no HUC). Com o Serviço de Cardiologia esvaziado de doentes, é verdade que foi criada uma unidade de reabilitação cardíaca. E poderão fazer-se muitas mais coisas, como um lar para idosos ou um centro de dia, mas hospital geriátrico não, seguramente, a não ser que os Covões voltem a ser um hospital, porque agora não são!

Quer dizer, o deputado em questão, numa discussão que se queria séria, na procura da solução para um problema grave que aflige tanta gente na cidade que ele representa na Assembleia da República, limitou-se a repetir frases feitas que os conselhos de administração do CHUC foram propalando, sem se querer inteirar da realidade do assunto ou, pior, deturpando-a, numa intervenção meramente publicitária manifestamente encomendada. Mas mesmo neste desempenho não se preparou bem, não se actualizou na propaganda, já que se esqueceu de referir a celebrada recente “inauguração” da Consulta de Pé Diabético no Hospital dos Covões, que já lá existia há 30 anos!... Mau serviço prestado à cidade e ao partido, cuja Comissão Política local, aliás, apoiou expressamente os peticionários e o peticionado.

Podiam avisá-lo? Ao PS. Mas ao PS nacional, ao de Lisboa, ao que manda nos outros, ao do governo. Ao que se mostra indiferente aos problemas locais, às dificuldades criadas, e aumentadas, e mantidas, por decisões de gestão governamental socialista desajustadas e mal implementadas, por gente que não percebe que as ordens que lhe estão a dar não vão colher bom resultado. Ou, pior, que não colheram bom resultado. E que é preciso verem quando se deve voltar atrás, reverter o que foi mal feito. Sem receio de assumir um erro que já há vários anos é óbvio para todos e que, a ser mantido, vai tornar mais evidente a incapacidade de quem o cometeu e o continua. Podem avisá-lo, por favor? É que esta teimosia, cheia de desculpas mal-alinhavadas, acabou de adquirir uma marca partidária. Contra todos. E contra Coimbra e a Região Centro.

In Campeão das Províncias

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

                                            PETIÇÃO PÚBLICA

"Devolver a autonomia ao Hospital dos Covões (Coimbra). Pelo direito ao acesso a cuidados de saúde de qualidade. Porque o acesso à saúde é um direito e um dever."

Esta Petição Pública vai ser votada na Assembleia da República no próximo dia 30 de Novembro de 2022. Dois anos e meio depois de ter sido apresentada.

https://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=AUTONOMIADOSCOVOES&fbclid=IwAR16iTcfMJ-jParQwCpA8CgVvOM5RCdUJ2fFgUlcQ9Meemrdwhya94OsrUw

"Desde a criação do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) pela junção do Centro Hospitalar de Coimbra (onde se engloba o Hospital dos Covões) com o Hospital da Universidade de Coimbra (HUC), que se tem assistido não a uma fusão mas a uma destruição de um hospital central. Sem qualquer razão assistencial, social, urbanística, científica, ou outra razão aceitável, o Hospital dos Covões tem sido progressivamente desprovido de recursos humanos e recursos materiais, despido de serviços médicos, reduzindo significativamente a capacidade de prestar cuidados de saúde com a qualidade que habituou a população. A centralização de cuidados e serviços médicos não foi solução, apenas trouxe dificuldade no acesso (listas de espera enormes), o “amontoar” de doentes num só hospital sem aparente capacidade de resposta, a redução da qualidade e um risco acrescido para os doentes e profissionais.

Se o Hospital dos Covões já tivesse sido encerrado, o colapso da saúde em Coimbra teria sido muito maior do que foi nesta era COVID. Sim, foi o Hospital dos Covões o epicentro do combate à pandemia em Coimbra. É preciso aprender com os erros de gestão em saúde do passado, para que o presente não se repita no futuro.

É imperativo reverter a "pseudo" fusão do Hospital dos Covões com o HUC, restabelecendo a autonomia e a capacidade que estava há anos instalada naquele hospital central e que resolvia todos os problemas de saúde da população que a ele recorria. Os trabalhadores do Hospital dos Covões estão tristes, desmotivados e revoltados pelo reiterado assédio moral a uma instituição com 47 anos de existência, que é acarinhada por profissionais e doentes. Insistir na continuação desta fusão é continuar a insistir na negligencia de gestão em saúde que se assiste em Coimbra há anos, e num crime contra o direito constitucional do acesso a cuidados de saúde. É um dever do poder político assegurar que todos os portugueses tenham acesso a cuidados de saúde de qualidade e atempados num serviço público. Um Hospital dos Covões a funcionar em pleno é essencial para se cumprir esse dever, continuar a destruí-lo é um crime que lesa a pátria.

Por tudo isto e muito mais: Dizemos SIM ao Hospital dos Covões!"

terça-feira, 22 de novembro de 2022

    COIMBRA, A SAÚDE E A ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA

Coimbra é uma cidade universitária há mais de sete séculos, com uma marcada importância da Saúde na sua actividade, e que ainda há uns anos era tão grande que lhe chamaram “capital da saúde”.  A esse nível era dotada de dois dos Hospitais Gerais Centrais de Portugal, o Hospital da Universidade (HUC) e o Centro Hospitalar de Coimbra (CHC), referência cada um em várias áreas da Medicina e da Cirurgia, e, por isso, atraindo a Coimbra profissionais de saúde, doentes, professores, investigadores, estudantes. E foi desta cidade, com esse peso e esse reconhecimento na Saúde nacional, que dois homens conduziram directamente a criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS): o Dr. António Arnaud e o Professor Mário Mendes.

Mas Coimbra não conseguiu manter a riqueza que tinha. Desconsiderada por governantes, aquelas duas instituições coimbrãs sofreram um rude golpe quando foi resolvido que iriam desaparecer, engolidas por uma fusão num chamado “centro hospitalar”… mas dum hospital só! E assim surgiu o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), o qual, na prática, mais não passou a ser que o antigo HUC, mas sozinho, sem a presença na cidade do outro, o Hospital dos Covões, parte fulcral do extinto CHC. Esse, progressivamente eliminado como Hospital, desactivado enquanto tal passo a passo, desaproveitada e destruída a sua capacidade instalada, foi transformado numa espécie de nada, que é o que é uma estrutura que vai servindo de muleta ao outro Hospital que, assoberbado com muito mais trabalho e utentes do que tinha, se esforça com dificuldade por cumprir a obrigação que era de dois hospitais centrais públicos. E, por isso, as dificuldades redobradas, o desencanto, os atrasos, as listas de espera, as esperas e as falhas na Urgência, os exames, as consultas e as cirurgias realizados quando podem ser e fora do Hospital… E “inaugurações” nos Covões do que já lá funcionava há muitos anos mais não é que sinal de encerramento dessa actividade no HUC! Quer dizer, redução dos serviços públicos em matéria de cuidados de saúde hospitalares oferecidos aos utentes de Coimbra e da Região Centro.

Essa progressiva desactivação do polo de saúde do Hospital dos Covões, na margem oposta à do HUC, fora do centro da cidade, com espaço para crescer e acessos fáceis, fez concentrar a Saúde no polo HUC, ele próprio também perto doutro Hospital, esse especializado, o IPO. E assim se concentrou tudo em Celas, no meio de Coimbra, com as dificuldades acrescidas de acesso e de estacionamento que se reconhecem há muito tempo. Com o ainda maior agravamento pela projectada construção duma maternidade em cima do espaço esgotado do HUC! Em vez de se manter o que Bissaya Barreto tinha concebido, e conseguido, para a cidade, isto é, dois polos de saúde, um em cada margem, um deles na periferia, que é por onde as cidades crescem, fez-se convergir tudo para um ponto central e sem capacidade de expansão. Como se a real e canhestra intenção fosse atrofiar o que durante anos notabilizou Coimbra no plano nacional, com reconhecimento internacional: a sua actividade em Saúde.

E é o que temos. Mas em 2020, face a esta evolução desastrosa dos cuidados de saúde hospitalares da cidade, surgiu uma Petição “Pela devolução da autonomia ao Hospital dos Covões como Hospital Geral Central - Porque o acesso de todos à saúde em Coimbra e na Região Centro é um direito e um dever”, dirigida à Assembleia da República, que a recebeu. Foi discutida e avaliada pela Comissão Parlamentar de Saúde, para o que foram ouvidos dois dos peticionários (por duas vezes), os três presidentes do conselho de administração do CHUC desde a sua criação em 2012, a presidente da ARS Centro e os dois últimos ministros da saúde. Foi depois elaborado pelo relator dessa Comissão um relatório, aprovado por unanimidade, dando razão total ao peticionado, relatório esse que foi apresentado publicamente no jardim do Hospital dos Covões, porque a sua apresentação no auditório do Hospital foi negada pelo actual conselho de administração do CHUC.

E ficou-se à espera da sua apresentação e votação em plenário da Assembleia da República. Que vai finalmente ter lugar no dia 30 de Novembro de 2022. Dois anos e meio depois.

Veremos o que a Assembleia da República, agora com uma maioria absoluta dum partido, pensa e decide sobre a Saúde em Coimbra. Quando é cada vez mais evidente que o caminho certo da Saúde em Coimbra e na Região Centro é o contrário do que foi tomado, e é o que a Petição a votar solicita, AUTONOMIA PARA O HOSPITAL DOS COVÕES COMO HOSPITAL GERAL CENTRAL, porque o acesso de todos à saúde em Coimbra e na Região Centro é um direito e um dever:

“Desde a criação do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) pela junção do Centro Hospitalar de Coimbra (onde se engloba o Hospital dos Covões) com o Hospital da Universidade de Coimbra (HUC), que se tem assistido não a uma fusão mas a uma destruição de um hospital central. Sem qualquer razão assistencial, social, urbanística, científica, ou outra razão aceitável, o Hospital dos Covões tem sido progressivamente desprovido de recursos humanos e recursos materiais, despido de serviços médicos, reduzindo significativamente a capacidade de prestar cuidados de saúde com a qualidade que habituou a população. A centralização de cuidados e serviços médicos não foi solução, apenas trouxe dificuldade no acesso (listas de espera enormes), o “amontoar” de doentes num só hospital sem aparente capacidade de resposta, a redução da qualidade e um risco acrescido para os doentes e profissionais.

Se o Hospital dos Covões já tivesse sido encerrado, o colapso da saúde em Coimbra teria sido muito maior do que foi nesta era COVID. Sim, foi o Hospital dos Covões o epicentro do combate à pandemia em Coimbra. É preciso aprender com os erros de gestão em saúde do passado, para que o presente não se repita no futuro.

É imperativo reverter a "pseudo" fusão do Hospital dos Covões com o HUC, restabelecendo a autonomia e a capacidade que estava há anos instalada naquele hospital central e que resolvia todos os problemas de saúde da população que a ele recorria. Os trabalhadores do Hospital dos Covões estão tristes, desmotivados e revoltados pelo reiterado assédio moral a uma instituição com 47 anos de existência, que é acarinhada por profissionais e doentes. Insistir na continuação desta fusão é continuar a insistir na negligencia de gestão em saúde que se assiste em Coimbra há anos, e num crime contra o direito constitucional do acesso a cuidados de saúde. É um dever do poder político assegurar que todos os portugueses tenham acesso a cuidados de saúde de qualidade e atempados num serviço público. Um Hospital dos Covões a funcionar em pleno é essencial para se cumprir esse dever, continuar a destruí-lo é um crime que lesa a pátria.

Por tudo isto e muito mais: Dizemos SIM ao Hospital dos Covões!”