VAMOS ÀS CARREIRAS – II*
Ouvimos há dias na televisão
uma enfermeira portuguesa das que mudaram o seu local de trabalho para o Reino
Unido dizer que o tinha feito não principalmente pelo dinheiro mas sobretudo
pela “possibilidade de progredir na carreira”. Reconfortante, ouvir isto. As
carreiras profissionais não são apenas uma obrigatoriedade incómoda de
concursos trabalhosos que filtram e dificultam a progressão profissional; ou
uma maneira de ir periodicamente aumentando de ordenado; são acima de tudo um
estímulo para quem quer aperfeiçoar-se e ser cada vez mais capaz, com esse
aperfeiçoamento reconhecido e premiado.
A progressão profissional
enquadrada numa carreira faz-se por patamares, correspondentes a capacidades e
experiência adquiridas pelo exercício profissional e reconhecidas pelos pares
mediante análise criteriosa do trabalho realizado e dos conhecimentos
evidenciados. Quer dizer, o reconhecimento da evolução e do valor demonstrados
pelo profissional é da responsabilidade de quem tem condições também
profissionais para o fazer. Quem avalia e classifica tem obrigatoriamente de
ter sido já avaliado antes, de ter dado provas cabais e igualmente reconhecidas
das suas competências no grau ou categoria para que agora é avaliador. É esta
progressão estruturada, apoiada, de acumulação de conhecimentos, experiência e
trabalho realizado condicionando mais autonomia, mais liberdade, mais
autoridade mas também mais responsabilidade, que basicamente constitui as
carreiras. Pelo menos as carreiras médicas que defendemos, que no nosso país
existiram por três dezenas de anos e cuja falta se começa rapidamente a sentir.
É despiciendo voltar a falar da importância
dessas carreiras na evolução altamente positiva que a saúde e a medicina
portuguesas tiveram nos anos em que elas realmente existiram. Sobretudo no que
aos hospitais diz respeito – e por eles eu falo - em que elas permitiram a
consecução de um facto notável: a homogeneização por todo o território nacional
da qualidade e das condições de trabalho, estas como incentivo profissional
maior. Fazendo só por si com que médicos altamente preparados e de grande
capacidade intelectual e técnica se permitissem sair dos três grandes centros
de referência existentes até então e espalhar-se por todo o país. Numa
descentralização que os que não percebem do assunto teimam em forçar, seja por
uma obrigatoriedade de capatazes seja pelos chamados estímulos financeiros. Os
médicos sempre foram mal pagos no Estado, mas era aí que ainda iam tendo mais
condições para exercer a profissão que os entusiasma, para se realizarem
profissionalmente, para subirem degraus de diferenciação, de responsabilidade,
de organização, de gestão, de autoridade. Isso os ia compensando, para além de
lhes ser dada a possibilidade de trabalharem muito e assim poderem ganhar mais
alguma coisa.
E tudo isto teve o óptimo
resultado que se conhece. E que ao fim e ao cabo acabou agora por ser
finalmente reconhecido pelo Ministério da Saúde deste Governo, com uma médica
como ministra, ao apresentar um projecto de reconstrução das carreiras médicas.
Mas convenhamos que com a lógica política seguida é difícil conseguir que sejam
reconstruídas, desvirtuadas e inutilizadas que foram precisamente por
legislação entretanto produzida e implementada na área da gestão hospitalar.
Para além de que é evidente que para muitos dos nossos políticos (e não só),
habituados não a carreiras mas a carreirismo, aquelas são um estorvo para este.
Ao obrigar-se a uma
progressão na carreira, com funções, responsabilidades e prerrogativas de
autonomia e chefia dependentes dos respectivos graus e categorias, estaríamos a
inviabilizar os lugares de favor, de nomeação política ou por amigos políticos
ou de mesa de café (ou ambos). Em suma, estaríamos (ou estaremos, se formos
optimistas, apesar de tudo) a impedir a descida de pára-quedas nas chefias
técnicas das instituições de muitos que na verdade nem chegaram a levantar voo…
E isso, na actual conjuntura, torna difícil um projecto adequado de carreiras,
carreiras médicas incluídas.
Para além de que os nomeados
para os lugares de nomeação política nos hospitais, e a quem foi concedido um
poder quase absoluto (a que deveria corresponder uma responsabilidade máxima,
mas esta sempre iludida…), desde logo divulgaram a ideia de que tudo dependeria
das suas escolhas pessoais para as chefias técnicas intermédias. E como tal
escolheram quem melhor acharam, sem atender minimamente – em muitos casos – à
diferenciação profissional e provas dadas dos escolhidos e dos recusados e
afastados, às vezes acintosamente. Com certeza que houve excepções
dignificantes, mas o que sucedeu mostrou à saciedade que nos hospitais EPE as
carreiras médicas deixaram de contar. A não ser para satisfazer as expectativas
dos que nelas entraram há muitos anos, satisfação que as administrações não
podem legalmente ignorar, tendo por isso que dar seguimento aos concursos
dentro delas e aumentar as remunerações dos médicos envolvidos, de acordo com a
sua subida de categoria.
Durante dezenas de anos a
função pública foi um esteio da nossa sociedade, e uma referência em múltiplos
aspectos, nomeadamente de entrada por concurso, de estabilidade de emprego, de
remunerações, de condições de trabalho, de qualidade (sempre discutida mas
sindicável, sujeita a queixas, a avaliações e a correcções). Quem puser esta
última característica em causa recorde-se que a formação médica pós-graduada
dentro das carreiras era totalmente pública, e a boa qualidade da nossa saúde,
reconhecida mundialmente em 2002, era de responsabilidade quase exclusivamente
estatal. Havia com certeza indicação para se mudarem algumas coisas, mas o que
se passou foi o mudar a tónica do público para o privado. Quer dizer, a
orientação política actual parece ser a de diminuir drasticamente a função
pública e aumentar na mesma proporção a privada. E, concomitantemente ou por
isso mesmo, as regras da actividade privada é que se tornaram na referência
nacional, legislando-se sucessivamente para que essa mudança seja efectivada à
face da lei.
Não vou aqui seguramente
apreciar opções políticas, individuais e muito menos dum governo eleito, mas o
liberalismo que rapidamente se tem vindo a instalar entre nós, nomeadamente no
campo da saúde, desaconselha por certo soluções possíveis e desejáveis noutro
tipo de sociedade, e exigirá outras. Sem discutir minimamente a bondade dum
qualquer sistema político de gestão do nosso país, mas como médicos – isto é,
técnicos fundamentais na área da saúde -, devemos questionar se opções
claramente vencedoras num sistema podem ser sequer minimamente adequadas
noutro. Há transplantações em que a rejeição é fatal.
A existência duma carreira
médica pressupõe – exige – que os seus graus e categorias sejam reconhecidos
nas diversas instituições em que os médicos trabalham. Reconhecimento que
implica consequências. Nas entidades públicas empresariais já assim não é: ele
existe apenas no que respeita aos vencimentos, e num quadro a extinguir quando
vagar. Em que medida nas empresas privadas o poderá vir a ser?
Como poderão coexistir
carreiras médicas e um sistema de avaliação eventualmente tão
extraordinariamente aberrante como o dos professores ou o do SIADAP? Em que as remunerações não terão que
ver com o lugar na carreira mas sim com a avaliação feita por um qualquer
nomeado como chefe? No próximo artigo continuaremos.
*Artigo escrito em 2009.
In Farpas pela nossa Saúde, 2009, ed. MinervaCoimbra
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