VAMOS ÀS CARREIRAS - I*
O Ministério da Saúde
apresentou um projecto de Carreiras Médicas, o que não é de admirar sendo a
actual ministra médica. Todos os médicos – apenas com as excepções que
confirmam a regra, e sem outro significado – reconhecem a utilidade que elas
tiveram nos últimos 25 anos e o que em matéria de medicina e de saúde através
delas se conseguiu
A Associação dos Médicos de
Carreira Hospitalar sempre defendeu, e defende, que é forçoso modificar a
actual Lei de Gestão Hospitalar para que as carreiras médicas possam ser
reconstituídas adequadamente. Não sei se por isso, mas a verdade é que o
ministério da saúde nunca mostrou qualquer interesse em nos ouvir. Ao reduzir o
número de interlocutores nesta matéria, redu-la também a um assunto meramente
sindical, o que claramente não é. Trata-se antes de um assunto que interessa
profundamente a toda a sociedade médica, e por isso todos os médicos deverão
ser ouvidos. Com certeza através da Ordem e dos sindicatos médicos, mas também
individualmente ou organizados noutras associações, sobretudo as mais ligadas à
área
O ministério ouvirá quem
quiser, tem esse direito. Mas nós não deixaremos de partilhar com os colegas as
nossas opiniões e os nossos projectos sobre as carreiras médicas, porque as
consideramos fulcrais para a medicina no nosso país. Já há tempos avisámos para
não se brincar às carreiras, e nunca como agora esse aviso foi tão oportuno.
Postos fora da discussão, iniciaremos com este uma série de artigos de carácter
eminentemente prático, objectivo, concreto, tendentes a levar a alguma
conclusão realizável e adequada. Começaremos hoje com uma avaliação global do
projecto governamental apresentado.
As carreiras médicas não
acabaram por ao fim de 25 anos se ter descoberto que estavam mal estruturadas:
acabaram porque a nova lei de gestão hospitalar as esvaziou e inviabilizou -
acabaram porque cada grau ou categoria não corresponde a uma função
institucional diferente, e mais diferenciados estão a ser chefiados e dirigidos
por menos diferenciados, escolhidos por razões no mínimo pouco claras.
Os graus e as categorias da
carreira agora projectados apenas repetem os que já existiam, e isso é bom. Mas
a exigência extra na sua manutenção, por recertificação, contrasta
dramaticamente com o facto de a sua posse não ter repercussão nem na
contratação, nem na remuneração, nem na avaliação dos médicos pelas
instituições onde trabalham. Pelo contrário, tudo isso fica subordinado aos
administradores, como se fossem eles o ponto-chave das instituições de saúde.
Quer dizer, deixa-se profissionais que desde os seus tempos de alunos do liceu
se mostraram com muita capacidade intelectual e de trabalho, e que obtiveram
depois uma diferenciação técnico-científica elevada numa área difícil, exigente
e complexa como é a medicina, serem dirigidos, governados e avaliados por
outros que não são nem fizeram nada disso. É claro que não se pode esperar um
bom resultado, e surpreende-nos que a ministra da saúde, sendo médica, possa
subscrever tal coisa.
As aparentes grandes
preocupações técnicas e científicas demonstradas neste projecto chocam também
com o que está a ser exigido aos médicos nos hospitais EPE, de sobretudo muitos
números, de grande “produção”, não em termos científicos mas de doentes vistos
e tratados, nem que seja apenas por, a título de exemplo, muitas pequenas
operações em cirurgia do ambulatório, ocupando-se com isso os blocos
operatórios onde se deveriam fazer intervenções de grande cirurgia. Como
compatibilizar tudo isto? Não jogam umas coisas com as outras, a não ser que
seja só para ficar no papel algo que nem sequer é exequível, como essa
avaliação complexa prevista periodicamente para cada consultor conseguir ser
recertificado.
Repare-se que não foi
ingénuo fazer-se a apresentação do projecto de carreiras médicas ao mesmo tempo
e conjugadamente com um projecto para a avaliação dos médicos. Esta
declaradamente não vai ter que ver com as carreiras, mas é através dela que se
paga mais ou menos, se contrata ou descontrata, se atribuem ou não funções
directivas em cada instituição... Atente-se por uma vez que a hierarquização
técnico-profissional, fundamental para o exercício institucional da medicina
mas que com a aplicação desta lei de gestão hospitalar desapareceu, não é
compatível com essa avaliação feita por pessoas não credenciadas utilizando factores
administrativo-pessoais. Avaliação do género das que vamos vendo na função
pública e nos professores, entregues a pessoas nomeadas por razões pessoais e
políticas misturadas com outras, e que não podem realmente avaliar do ponto de
vista profissional e técnico uma vez que não têm idoneidade expressamente
reconhecida para tanto.
A pedra base de qualquer
sistema de avaliação é o reconhecimento pelos avaliados dos avaliadores
enquanto tal. Isso é conseguido nos concursos das carreiras, e terá de ser
através deles que se singra nas instituições. Mas já assim não é agora,
imperando o “achismo” dos conselhos de administração, e estes projectos apenas
vêm consagrar esse facto, condenável mas espantosamente ignorado, excepção
feita a alguns Colégios da Ordem, honra lhes seja feita.
Os médicos do quadro estão a desaparecer a
olhos vistos, por reformas antecipadas ou licenças sem vencimento, dada a
enorme insatisfação que sentem mercê da lei que rege os hospitais públicos. Os
outros são reféns da necessidade dum contrato de trabalho, e cada administração
contratará quem quiser ao preço que quiser, ao livre arbítrio de quem manda e
com base nas disponibilidades remuneratórias, sendo as remunerações dependentes
não do grau ou categoria do médico mas sim duma avaliação exercida na própria
instituição por quem foi posto a administrar. Esta avaliação só pode ser
contestada pelo funcionário no tribunal administrativo: repare-se que o próprio
ministério da saúde não tem capacidade de intervenção, ele também refém da sua infeliz
lei de gestão hospitalar.
Pelo que vamos vendo à nossa
volta, não nos parece que as administrações dos hospitais empresas queiram
contratar os mais graduados e diferenciados, a não ser que lhes possam pagar
tão pouco como a outros menos diferenciados… E para conseguir isso, sempre
terão à disposição as quotas na avaliação… de modo a reduzir as remunerações
dos não queridos, mesmo que muito diferenciados.
Veja-se a importância
fulcral nesta lei dos administradores de hospital. A propósito, como é feito o
seu recrutamento?... E a sua avaliação?
No meio de tudo isto, para que servem as carreiras
médicas? Para nos manter entretidos? Ou será uma maneira de o governo alijar
mais uma responsabilidade cara, a da formação médica contínua, e entregar essa
despesa, trabalho e incómodos à Ordem dos Médicos? Com que contrapartidas para
os médicos? Com que incentivos? Com que meios de execução prática? O esforço,
tempo perdido e despesa dos concursos das carreiras servirão para quê? No
próximo artigo voltaremos a falar.
*Artigo escrito em 2008.
In Farpas pela nossa Saúde, 2009, ed. MinervaCoimbra
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